quarta-feira, 22 de outubro de 2025

Cabo do Elevador da Glória não estava certificado para transportar pessoas

 

O relatório preliminar Gabinete de Prevenção e Investigação de Acidentes com Aeronaves e Acidentes Ferroviários (GPIAAF) sobre o descarrilamento do Elevador da Glória, em Lisboa, divulgado a 20 de outubro, aponta que o cabo de tração/equilíbrio entre as duas cabinas “não estava certificado para utilização em instalações para o transporte de pessoas”, nem para “utilização no Ascensor da Glória”. Foi esse o cabo que sofreu uma rutura, “após 337 dias de uso”, devendo ser, ainda, necessário determinar o “exato mecanismo de cedência do material e fatores causais” que estiveram na base dessa ocorrência e do consequente descarrilamento.
O Elevador da Glória, que faz o percurso entre os Restauradores e o Miradouro de São Pedro de Alcântara, em Lisboa, descarrilou, na calçada com o mesmo nome, a 3 de setembro, pouco depois das 18 horas, tendo sido os serviços de emergência a mobilizados, imediatamente, para o local.
Sobre a inadequação do referido cabo que cedeu, o relatório preliminar considera que esse “não era indicado para ser instalado com destorcedores nas suas extremidades, como é o sistema no Ascensor da Glória”, nem no Ascensor do Lavra.
O GPIAAF sustenta que a “utilização de cabos multiplamente desconformes com as especificações e restrições de utilização” se deveu a “diversas falhas acumuladas no seu processo de aquisição, aceitação e aplicação”, por parte da Carris. Porém, visto que “cabos iguais estiveram em uso, durante 601 dias, no Ascensor da Glória”, e “606 dias, no Ascensor do Lavra”, sem registo de incidentes, “não é possível, neste momento, afirmar se as desconformidades na utilização do cabo são ou não relevantes para o acidente”.
No atinente à manutenção do ascensor, registaram-se “evidências de que tarefas de manutenção registadas como cumpridas nem sempre correspondem às tarefas efetivamente realizadas”, bem como de terem sido executadas “tarefas críticas para a segurança de forma não padronizada, com parâmetros de execução e validação díspares”. Assim, aponta-se para que esses procedimentos tenham sido, de certo modo, falseados.
Além do mais, destaca-se que as “inspeções previstas para o dia do acidente e antecedentes estão registadas como executadas e o pessoal do prestador de serviço esteve presente”. Contudo, “as evidências não suportam o período horário indicado nas folhas de trabalho para a sua execução”.
Sobre o “modo específico de execução dos trabalhos especializados no ascensor”, o GPIAAF esclarece que “não há, por parte do quadro técnico do prestador de serviços de manutenção, qualquer orientação aos trabalhadores ou supervisão”, no atinente ao desempenho da tarefa. Porém, frisa que, nesta fase da investigação, “não é possível afirmar se algum indício de anomalia no cabo poderia ou não ser observado, algum tempo antes da rotura numa inspeção à parte visível junto ao trambolho”, peça metálica robusta, de engate, entre o cabo do funicular e o veículo.
O relatório nota, ainda, na sequência do incidente que provocou 16 vítimas mortais e 21 feridos, que “o sistema incorporado no Ascensor da Glória de deteção de rotura do cabo atuou devidamente, cortando a energia elétrica às cabinas, a fim de desencadear nelas uma frenagem de emergência com vista à sua imobilização segura”. Todavia, de forma contrastante, o “sistema de frenagem das cabinas não foi eficaz para as imobilizar, apesar de, na cabina 1 [a que descarrilou], todos os existentes, automáticos e manuais, terem sido aplicados”.  Além disso, não há registo de que, “alguma vez, tenha sido testado o freio de emergência na situação de falha no cabo”.
O relatório conclui que, entre diversos técnicos e trabalhadores da Companhia Carris de Ferro de Lisboa (CCFL) ou, simplesmente, Carris, ligados aos ascensores, “havia a perceção de que a segurança do sistema dependia inteiramente do cabo e que o sistema de freio não era eficaz para imobilizar as cabinas, sem o cabo”, pelo que “havia um elevado cuidado no controlo do cabo, nomeadamente, limitando a sua utilização a 600 dias, muito abaixo da duração expectável para aquele componente, mas esta perceção nunca se materializou, organizacionalmente, numa reavaliação das condições de segurança do sistema”.
O GPIAAF, na sua avaliação preliminar do acidente, revela que os aspetos de segurança da operação de ambos os ascensores se encontravam “à exclusiva responsabilidade da CCFL [Carris], enquanto entidade operadora”, não sendo “supervisionados por qualquer entidade independente, pública ou privada”.
Segundo a RTP, o diretor de Manutenção do Modo Elétrico da Carris foi demitido, embora a empresa tenha rejeitado a exclusiva responsabilidade pela segurança dos ascensores, como é o caso do Elevador da Glória. Aliás, a Carris recordou que tais procedimentos estiveram a cargo da MNTC, empresa de manutenção que operava como prestadora de serviços, desde 2019.
Por seu turno, o presidente da Câmara Municipal de Lisboa, Carlos Moedas, citado pela CNN Portugal, considerou, com base nas conclusões do relatório, que “a infeliz tragédia do elevador da Glória foi derivada de causas técnicas e não políticas”. Por isso, criticou a “politização que alguns fizeram durante a campanha” para as eleições autárquicas de 12 de outubro.

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Conhecidas as conclusões deste relatório preliminar do GPIAAF, a Carris reagiu, vincando que, no mesmo, se pode ler que “[...] não é possível, neste momento, afirmar se as desconformidades na utilização do cabo são ou não relevantes para o acidente”. Num comunicado, a empresa afirma que o processo de aquisição dos cabos, “com alegadas inconformidades, que condicionaram todo o processo de substituição dos cabos, ocorreu em mandato anterior ao do presente conselho de administração”.
O atual mandato, presidido por Pedro Bogas, foi viabilizado pelo Partido Socialista (PS), em maio de 2022. Os cabos que não estavam em conformidade com o que era recomendado, e que eram diferentes dos utilizados até então, entraram em operação a 20 de dezembro de 2022, operando, durante 601 dias, até 26 de agosto. O segundo, igual ao anterior, entrou em operação, no dia 1 de outubro de 2024. Durou 337 dias, até ao dia do acidente.
No entanto, o processo de aquisição do mesmo iniciou-se em março de 2022, “quando estavam em curso trabalhos de remotorização do elevador de Santa Justa”. No dia 17 desse mês, a Direção de Manutenção do Modo Elétrico (DME) da CCFL constatou a inexistência em armazém dos cabos necessários e sinalizou a “necessidade da sua compra urgente à Direção de Logística e Património (DLP) da empresa”.
Os vereadores do PS na Câmara Municipal de Lisboa (CML), no dia 21, em comunicado, exigiram a demissão da administração da Carris, pois consideram “muito graves” as conclusões do relatório preliminar do GPIAAF, que detetou falhas e omissões na manutenção do ascensor, apontando também a falta de formação dos funcionários e de supervisão dos trabalhos efetuados pela empresa prestadora do serviço.
Segundo os vereadores do PS, o relatório, ao “revelar falhas e negligência inaceitáveis num equipamento público sob responsabilidade municipal”, desmente a versão inicial da Carris de “que todos os procedimentos de manutenção tinham sido cumpridos”.
“Os vereadores socialistas consideram que a liderança da Carris perdeu as condições para continuar em funções, face às contradições e à gravidade das conclusões conhecidas. Se o presidente do conselho de administração não apresentar a sua demissão, cabe ao presidente da Câmara Municipal de Lisboa tomar essa decisão, assumindo a responsabilidade política que lhe compete, enquanto tutela da empresa”, defenderam os vereadores, exigindo que sejam assumidas as devidas responsabilidades, sem exceções, nem encobrimentos” e que “o executivo camarário assegure total transparência na investigação, implemente todas as medidas de correção e segurança recomendadas”, com reforço dos “mecanismos de controlo interno e externo da empresa municipal, garantindo que situações semelhantes não se repitam”.
“Não é admissível que um acidente com vítimas mortais e feridos ocorra num equipamento público e que as consequências se limitem a sanções intermédias ou a um mero passa-culpas”, acrescentaram.
Antes de o comunicado do PS-Lisboa ser conhecido, já Alexandra Leitão dava conta deste posicionamento, em declarações à TSF. A vereadora socialista na CML já defendia que “o presidente do conselho de administração da Carris não tem condições para continuar no cargo, [que] há uma quebra absolutamente inultrapassável de confiança”. Apesar de pressionar o recém-reeleito presidente da CML a agir, Alexandra Leitão manteve a posição de não pedir a demissão do autarca, face às revelações do relatório preliminar.
Também os vereadores do partido Chega e do Partido Comunista Português (PCP) pediram responsabilidades políticas à liderança de Carlos Moedas.
Bruno Mascarenhas, vereador do Chega, qualificou o documento de “arrasador” e afirmou à TSF: “Naturalmente que um relatório destes nunca poderia apontar falhas políticas. Agora, é preciso perceber que tem de se deduzir um conjunto de responsabilidades políticas, porque o relatório é arrasador.” O vereador frisou que “o relatório aponta para a informação de que a empresa de manutenção informou a Carris que o cabo não estava adequado à função” e que “é preciso perceber se a Carris soube, antecipadamente, que este cabo que se rompeu não estava ajustado àquilo que era a função para a qual foi adquirido”.
João Ferreira, vereador do PCP, reforçou à TSF que “é uma responsabilidade do presidente da Câmara, que tutela a empresa, garantir que estas recomendações são efetivamente implementadas, [que] há uma responsabilidade também, perante o que está para trás, que é explicar porque é que elas não tinham sido até agora implementadas” e destacou que as desconformidades apontadas pelo relatório “são graves”.
O vereador acrescentou que, “ainda que não tivesse acontecido o acidente, é suficientemente grave que equipamentos da Carris, e não foi só o elevador da Glória, tenham funcionado em condições em que não deveriam ter funcionado e que representavam risco para os utilizadores. Isto, por si só, justifica a assunção de responsabilidades no plano técnico e no plano político e justifica medidas, desde logo, de correção e de garantia de que toda a segurança é restabelecida”.
Ao invés, a reação do presidente da CML foi vincar que o relatório preliminar aponta para que o acidente tenha “causas técnicas e não políticas”.

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Pedro Bogas sabia que não ia ser reconduzido do cargo, mas antecipou-se, apresentando a sua demissão ao presidente da CML, informou a autarquia, em comunicado.
No dia 22, Pedro Bogas – que estava na administração da Carris, desde o verão de 2022, uma escolha já de Carlos Moedas, depois de ter vencido as eleições autárquicas de há quatro anos – esteve reunido com o presidente da CML. “Neste encontro, foi apresentada a renúncia ao cargo de presidente da CARRIS, extensível a todos os restantes elementos do Conselho de Administração da empresa”, lê-se no comunicado enviado pela CML.
“O presidente Carlos Moedas destaca a forma profissional e corajosa com que, no momento mais duro do mandato, na sequência do trágico acidente do Elevador da Glória, o atual Conselho de Administração defendeu os interesses da empresa e, apesar de terem colocado o lugar à disposição desde a primeira hora, aceitaram manter-se em funções”, prossegue o comunicado.
A atual administração garantirá a gestão da empresa municipal, até que haja uma nova administração, que o presidente da Câmara diz que deve assumir funções, em breve, para “restabelecer, o mais depressa possível, a total confiança e credibilidade de uma empresa fundamental para a cidade de Lisboa”.

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Só por fatores ainda não determinados, o mesmo não sucedeu no ascensor do Lavra e no elevador de Santa Justa. Os cabos não eram os apropriados, a fixação não seguia as regras, o processo administrativo falhou, os travões não foram eficazes, a manutenção não era feita e não havia fiscalização externa.
O cabo foi um dos fatores, mas não o único a contribuir para o acidente. Com efeito, “houve outros fatores que tiveram forçosamente de intervir”. Era o chamado cabo com alma em fibra, ou seja, além de ser composto por aço tem o seu núcleo em fibra e, como tal, tem especificações técnicas diferentes do que era até aí usado com “satisfação” pela Carris. E, como “não era o adequado” para equipamentos de transportes de pessoas, “não estava certificado” para o efeito, nem estava de acordo com as normas da própria Carris. Porém, havia outros elementos inadequados, como o destorcedor; a pinha de amarração; o aumento do comprimento do cabo, com o peso das cabinas, o que implicou um corte de 4,5 metros; a manutenção com tarefas não realizadas; a não testagem dos travões de eficiência; e a monitorização feita a nível unicamente interno, sem qualquer supervisão externa.
É óbvio que um relatório desta natureza não se pronuncia sobre responsabilidades políticas. No entanto, como aponta falhas que têm a ver com falta de qualidade de materiais, com duvidosa regularidade em termos processuais e com deficiência de manutenção e de supervisão, os decisores políticos, que não andaram a boicotar o sistema, devem tomar medidas políticas junto das administrações que deixam andar o pessoal e os equipamentos na corda bamba.
Assim, embora não se devam assacar responsabilidades políticas a priori, os decisores políticos, que exercem a tutela de uma empresa municipal (que é política) não podem, após uma ocorrência sinistra desta magnitude, circunscrever as responsabilidades ao campo técnico. As políticas da empresa falharam. Por isso, têm de ser corrigidas e os administradores têm de ser responsabilizados. Morreram pessoas (portuguesas e estrangeiras) e, só por acaso, não houve acidente similar noutros equipamentos do género. Não me digam, pois, que os poderes políticos – autárquico e central (governo, parlamento, Presidente da República, poder judicial) – não têm de se interrogar sobre se devem (ou não) intervir e em que medida. “Salus Reipublicae lex suprema esto” (“A salvação do Estado seja a lei suprema”), clamavam os políticos e os juristas romanos.

2025.10.22 – Louro de Carvalho

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