Cerca
de três mil pessoas de diferentes religiões farão uma oração silenciosa com o
papa Leão XIV, no dia 28 de outubro, para celebrar o 60.º aniversário da Nostra
aetate, Declaração do Concílio Vaticano II, sobre as relações da
Igreja Católica com religiões não-cristãs (hoje dizemos “diálogo
inter-religioso”).
Estarão
presentes representantes do judaísmo, do islamismo, do hinduísmo, do jainismo,
do sikhismo, do budismo, do zoroastrismo, do confucionismo, do taoísmo, do
xintoísmo e de religiões tradicionais africanas.
“Essa
é a primeira vez que um evento dessa natureza é feito”, disse Flavio Pace,
secretário do Dicastério para a Promoção da Unidade dos Cristãos, numa conferência
de imprensa no Vaticano.
Segundo
o padre Indunil Janakaratne Kodithuwakku Kankanamalage, secretário do Dicastério
para o Diálogo Inter-religioso, o evento, que terá momentos de reflexão,
testemunhos e apresentações culturais de diferentes continentes, revisitará “as
principais etapas de 60 anos de diálogo”, desde o papa São Paulo VI até ao
atual papa, Leão XIV.
O
evento, que acontecerá no Vaticano, terá uma série de cinco apresentações
artísticas de vários países, concebidas como uma “expressão visível de uma
espiritualidade comum”, segundo a autoridade da Santa Sé.
Entre
as apresentações, um espetáculo de dança do Sri Lanka com jovens italianos –
composto por cristãos e budistas – simboliza o encontro entre culturas e
crenças. Da Indonésia, outra coreografia tradicional evocará o hinduísmo, o
catolicismo e o islamismo, como sinal de harmonia inter-religiosa.
O
programa também terá uma apresentação de artistas da República Democrática do
Congo (RDC), que combinarão cantos religiosos tradicionais com poesia
espiritual africana. Por fim, haverá uma apresentação musical dos Estados Unidos
da América (EUA) intitulada We Are the New World, um hino
contemporâneo.
O
evento contará também com uma apresentação cultural do Nefesh Trio,
que apresentará música tradicional judaica combinada com melodias iemenitas,
simbolizando a diáspora e a interseção de culturas. No palco, haverá um pódio
com o texto original de Nostra aetate, um ramo de oliveira e uma
lâmpada.
***
A Nostra
Aetate é uma declaração do Concílio Vaticano II, promulgada
em 1965, que estabeleceu uma nova relação entre a Igreja Católica e as
religiões não cristãs. É um marco no diálogo inter-religioso, condenando o
antissemitismo e rejeitando a culpa coletiva dos judeus pela morte de Cristo.
Além disso, a declaração reconhece e respeita os valores verdadeiros e santos noutras
religiões, como o Judaísmo, o Islamismo, o Hinduísmo e o Budismo.
O
Concílio Vaticano II (1962-1965) ocorreu num período de crescentes
interconexões globais e de maior consciência sobre o pluralismo religioso. A
Igreja procurou, com este documento, responder aos desafios e oportunidades de
um Mundo mais unido, frisando os pontos em comum que unem a humanidade.
Os
principais pontos da Declaração são:
*
Busca pela verdade e santidade. A Declaração reconhece que todas as
religiões procuram a verdade e contêm elementos de santidade e de verdade,
mesmo que de forma incompleta, que a Igreja Católica olha com estima e
respeito.
*
Unidade do género humano. Parte do princípio de que todos os povos formam
uma única comunidade e têm uma origem comum, pois Deus criou o género humano à
sua imagem.
*
Hinduísmo e Budismo. A declaração reconhece a busca por libertação e
iluminação que anima estas religiões, embora não entre em pormenores
teológicos.
*
Islamismo. A Igreja olha com estima para os muçulmanos, reconhecendo que
adoram um Deus único e criador. O documento destaca aspetos comuns da fé, como
a submissão a Deus, a veneração por Jesus como profeta (embora não como Filho
de Deus) e a honra a Maria, além da importância da oração, esmola e jejum.
Judaísmo. A Nostra
aetate é particularmente importante para as relações judaico-cristãs.
Sublinha o vínculo espiritual entre o “povo do Novo Testamento” (os cristãos) e
a “descendência de Abraão” (os judeus); rejeita a acusação histórica de que os
judeus seriam coletivamente responsáveis pela morte de Jesus; condena o
antissemitismo; e incentiva o conhecimento e o respeito mútuo.
*
Condenação de qualquer discriminação. A Nostra aetate
rejeita qualquer forma de discriminação ou perseguição baseada na raça, na cor,
na condição social ou na religião, em nome de Deus, que é o Pai de todos.
O
seu legado é constituir-se como a “Magna Carta” do diálogo inter-religioso,
servindo de bússola para a reconciliação e para a cooperação entre diferentes
tradições religiosas. Promove a atitude de diálogo e de respeito, fundamental
para a construção da paz e da justiça no Mundo.
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Além
das apresentações artísticas, no dia 28, haverá três depoimentos pessoais que
mostram como a fé e o diálogo inter-religioso transformam vidas individuais. O
primeiro será do budista Hsin Tao, nascido em 1948, em Laikan, perto de Lashio,
em Myanmar, que teve uma infância profundamente marcada pela guerra e foi
recrutado como criança-soldado, aos nove anos de idade. Em 2001, fundou o museu
das Religiões do Mundo, em Nova Taipé, em Taiwan, concebido como um espaço para
o diálogo inter-religioso e para a compreensão entre os povos.
O
segundo testemunho virá da Terra Santa. Sarah Bernstein, diretora executiva do
Rossing Center, organização inter-religiosa com sede em Jerusalém, que promove
uma sociedade inclusiva para todos os grupos religiosos, étnicos e nacionais da
região, com foco no diálogo entre judeus, cristãos e muçulmanos, vai falar
nesse diálogo.
O
terceiro depoimento apresentará a experiência dos jovens do projeto Bel
Espoir, que navegaram juntos pelo mar Mediterrâneo, para promover a paz.
Uma
mensagem do papa alia-se ao gesto simbólico das sementes.
No
seu discurso, “o papa exortará todos a continuarem caminhando juntos com a
esperança que ele tem no diálogo, mesmo nos tempos difíceis que vivemos”,
anunciou o padre Indunil.
Antes
da oração final, crianças italianas vão distribuir pequenos sacos de sementes
aos participantes, como símbolo de seu compromisso em continuar a semear a paz.
“Há
60 anos, a semente da esperança foi plantada e hoje devemos continuar a
semeá-la, encorajando especialmente os jovens a se tornarem novos semeadores de
paz e amor”, disse o secretário do Dicastério para o Diálogo Inter-religioso.
O
encontro será concluído com um momento de oração silenciosa, evocando as
palavras do papa São João Paulo II, em Assis, na Itália, em 1986: “Toda a oração
autêntica é inspirada pelo Espírito Santo”.
Flavio
Pace concluiu a conferência de imprensa, enfatizando que, apesar do progresso,
a jornada iniciada com a Nostra aetate continua a ser um
trabalho em andamento. “Já se passaram 60 anos de conscientização, diálogo e
relacionamentos; embora tenha havido dificuldades e contratempos, não há como
voltar atrás. […] Só podemos avançar, semeando esperança para o futuro, como
nos lembram as crianças que participam desses eventos”, declarou.
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Outro
facto do diálogo inter-religioso ocorreu, quando Ayala Ferreira,
militante do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), deu ao papa
Leão XIV uma imagem de Ossanha feita com missangas do candomblé.
Ossanha
é o orixá – divindade de origem africana cultuada por religiões
afro-brasileiras, como umbanda e candomblé – associado às folhas e à cura.
Ayala
Ferreira estava entre cerca de 130 delegados que o papa Leão XIV recebeu, a 23
de outubro, na Sala Paulo VI, no âmbito do V Encontro Internacional de
Movimentos Populares e a sua peregrinação jubilar, que ocorrerá nos dias 25 e
26.
Do
Brasil, além do MST, participaram representantes do Movimento dos Trabalhadores
Sem Teto (MTST), o Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis
(MNCR) e o Centro Nacional de Africanidade e Resistência Afro-Brasileira
(CENARAB).
Os
movimentos populares participam no Jubileu dos Movimentos Populares, marcado pela
missa a que presidirá Leão XIV na praça de São Pedro, no dia 26.
No
seu discurso, o papa lembrou que os encontros no Vaticano com movimentos
sociais e organizações ligadas à luta por causas como terra e trabalho foram
iniciados pelo papa Francisco.
“Fazendo
eco aos apelos de Francisco”, enfatizou Leão XIV, “hoje digo: a terra, a casa e
o trabalho são direitos sagrados, pelos quais vale a pena lutar, e quero que me
ouçam dizer: Eis-me! Estou convosco!”
“A
Igreja deve estar convosco: uma Igreja pobre para os pobres, uma Igreja que
estende a mão, uma Igreja que assume riscos, uma Igreja corajosa, profética e
alegre!”, continuou.
“O
que considero mais importante é que o vosso serviço seja inspirado pelo amor”,
disse. “De facto, quando se formam cooperativas e grupos de trabalho para dar
de comer a quem tem fome, abrigar os desabrigados, socorrer os náufragos,
cuidar das crianças, criar postos de trabalho, ter acesso à terra e construir
casas, devemos lembrar-nos de que não estamos a promover ideologia, mas a viver
verdadeiramente o Evangelho”.
“No
centro do Evangelho está o mandamento do amor, e Jesus disse-nos que o seu
próprio rosto está escondido nos rostos e nas feridas dos pobres”, continuou.
“É belo ver que os movimentos populares, mesmo perante a reivindicação de
justiça, são movidos pelo desejo de amor, contra qualquer individualismo e
preconceito”, rematou.
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Por
fim, é de recordar que o samba-enredo da Beija-Flor, escola campeã do desfile
das escolas de samba do Carnaval do Rio de Janeiro (RJ), em 2025, foi cantado
numa missa da Paróquia Nossa Senhora Aparecida em Nilópolis (RJ) pertencente à
diocese de Nova Iguaçu, no domingo, 12 de outubro, dia de Nossa Senhora
Aparecida.
A
música Laíla de Todos os Santos, Laíla de Todos os Sambas cujo
refrão é “Da casa de Ogum, Xangô me guia, dobram atabaques no quilombo
Beija-Flor, terreiro de Laíla, meu griô” foi interpretada por alguns
integrantes da beija-flor e cantada pelo padre celebrante, frei Athaylton Jorge
Monteiro Belo, OFM (Ordem dos Frades Menores). Alguns participantes seguravam
uma bandeira da Beija-Flor. Toda a música tem elementos do candomblé, religião
afro-brasileira que cultua divindades de origem africanas chamadas orixás.
Não
obstante, a diocese de Nova Iguaçu publicou uma nota assinada pelo
chanceler, padre Ricardo Nunes da Silva, dizendo que o bispo de Nova Iguaçu, Dom
Gilson Andrade da Silva, manifesta a sua “perplexidade e profundo pesar pelo
ocorrido no último domingo”.
Segundo
a nota, frei Athaylson não pertence à diocese de Nova Iguaçu e cantou o samba
sem o conhecimento do pároco local, frei João Fernandes Reinert, OFM.
Frei
Athaylton “de modo isolado, autorizou e incentivou a execução de um
samba-enredo durante a Santa Missa”, continua a nota. “O bispo diocesano
lamenta profundamente que este gesto, absolutamente incoerente com o espírito
da liturgia e alheio a qualquer orientação da Igreja, tenha acontecido durante
a celebração da Santa Eucaristia”.
“Reiteramos
nossa comunhão com o povo de Deus e pedimos sinceras desculpas à comunidade
paroquial de Nossa Senhora Aparecida, em Nilópolis, e a todos os fiéis pela
ocorrência desse lamentável episódio”, diz a nota.
Segundo
o chanceler, a atuação de frei Athaylton é responsabilidade da Ordem dos Frades
Menores, “já devidamente notificada para as providências cabíveis conforme o
direito eclesiástico”.
***
A
Igreja é plural, mas a pluralidade não cabe em todas as cabeças. É certo que a
Liturgia católica é específica. Todavia, diante de Sumos Pontífices, como João
Paulo II e Bento XVI (para não falar do papa Francisco), em plena missa foram
cantadas e dançadas peças da tradição africana que não é própria imune a marcas
pagãs. Será que isso, por ser dançado e cantado diante do papa, já não tem mal?
Não
creio que uma proposta de uma Eucaristia ornada de peças musicais de alto valor
artístico seja rejeitada por qualquer bispo católico, apesar de, hoje, já não
serem fonte de inspiração, mas espécimes de uma cultura de outros tempos, na
qual se forjaram verdadeiros santos.
Ora,
se uma cultura ancestral pode ainda ser assumida como válida em liturgia, não
se percebe como peças de culturas contemporâneas têm de ser corridas da ação
litúrgica. É óbvio que a formação às pessoas deve acautelar as confusões, mas,
em vez da formação, prefere-se o anátema, esquecendo que muitas festas cristãos
resultaram de festas pagãs sacralizadas pela Igreja e, ao mesmo tempo, consentindo
que festas religiosas sejam quase totalmente paganizadas, ficando a missa e a
procissão como resíduos de cristianismo. Em alguns casos, quem assiste à missa são
os andores, que a maior parte das pessoas fica em casa ou no adro, se não vão à
tasca da comissão de festas.
Tanta
preguiça e tanta hipocrisia!
2025.10.24
– Louro de Carvalho
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