domingo, 13 de julho de 2025

Revogar lei da violência obstétrica é “ato de violência institucional”

 
A Lei n.º 33/2025 de 31 de março, que promove os direitos na gravidez e no parto e que altera a Lei n.º 15/2014, de 21 de março (de consolidação da legislação sobre direitos e deveres do utente dos serviços de saúde), está em vigor, nos termos do artigo 14.º. desde o dia 1 de abril (dia seguinte ao da publicação), mas “produz efeitos com a entrada em vigor do Orçamento do Estado subsequente à sua publicação”, isto é, com o Orçamento do Estado para 2026.
O artigo 13.º estabelece que o governo procede à sua regulamentação “no prazo de 60 dias”. Porém, a Assembleia da República (AR) tem em discussão na especialidade a sua revogação, o que mereceu, da parte de várias associações, o lançamento de carta aberta a exigir à AR que não revogue a lei que inscreve, pela primeira vez, o conceito de violência obstétrica na legislação portuguesa, classificando a revogação de “ato de violência institucional”.
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A lei “visa promover os direitos na preconceção, na procriação medicamente assistida, na gravidez, no parto, no nascimento e no puerpério, através da criação de medidas de informação e proteção contra a violência obstétrica e da criação da Comissão Multidisciplinar para os Direitos na Gravidez e no Parto, e procede à alteração à Lei n.º 15/2014, de 21 de março” (artigo 1.º). E define violência obstétrica como “a ação física e verbal exercida pelos profissionais de saúde sobre o corpo e os procedimentos na área reprodutiva das mulheres ou de outras pessoas gestantes, que se expressa num tratamento desumanizado, num abuso da medicalização ou na patologização dos processos naturais, desrespeitando o regime de proteção na preconceção, na procriação medicamente assistida, na gravidez, no parto, no nascimento e no puerpério” (artigo 2.º).
Cabe ao governo, através do Ministério da Educação, a responsabilidade “por incluir informação sobre violência obstétrica nos conteúdos da educação sexual, promovendo o respeito pela autonomia sexual e reprodutiva e a eliminação da violência de género, de forma adequada aos diferentes níveis de ensino” (ver artigo 3.º). E incumbe às instituições de ensino superior conexas com a formação em saúde e em políticas sociais a responsabilidade “por incluir conteúdos curriculares e formativos sobre direitos humanos, que assegurem o respeito pela autonomia sexual e reprodutiva e a sensibilização contra as práticas que configuram violência obstétrica”, aspetos que, na formação de profissionais de saúde, “devem ser complementados pelo enriquecimento curricular para uma prática dissuasora de atos de violência obstétrica” (ver artigo 4.º).
O artigo 5.º, alterando o artigo 15.º E da lei referida, estipula que os desvios ao plano de nascimento “são, obrigatoriamente, registados e justificados pelos profissionais de saúde”.
Além disso, cabe aos estabelecimentos de saúde que prestam atendimento ao parto e nascimento a obrigação de “afixar cartazes com informações sobre o regime de proteção na preconceção, na procriação medicamente assistida, na gravidez, no parto, no nascimento e no puerpério”, com informação relativa às entidades às quais devem ser denunciadas situações de violência obstétrica” (artigo 6.º). “Todos os atos médicos ou de enfermagem que sejam realizados durante o parto são, obrigatoriamente, registados, com a devida justificação, em conformidade com as orientações e normas técnicas da Direção-Geral da Saúde [DGS]” (artigo 7.º).
A realização de episiotomias de rotina e de outras práticas reiteradas não justificadas, sem prejuízo das responsabilidades civis e criminais, são objeto de: “penalizações no financiamento e sanções pecuniárias a aplicar aos hospitais”, sempre que desrespeitem as recomendações da Organização Mundial de Saúde (OMS) e os parâmetros definidos pela DGS; e “de inquérito disciplinar aos profissionais de saúde” (ver artigo 8.º).
“O Ministério da Saúde e o ministério com a tutela da igualdade de género são responsáveis por garantir os meios necessários à elaboração de um relatório anual com dados oficiais sobre satisfação relativamente aos cuidados de saúde e no parto e cumprimento dos planos de nascimento”. Tal relatório e as campanhas de sensibilização contra a violência obstétrica “ficam a cargo da Comissão Multidisciplinar para os Direitos na Gravidez e no Parto” (CMDGP) (ver artigo 9.º), que tem as seguintes incumbências: “promover campanhas de informação sobre os direitos na preconceção, na procriação medicamente assistida, na gravidez, no parto, no nascimento e no puerpério”; “promover campanhas de sensibilização pelo respeito dos direitos no parto e pela sua humanização, de modo a pôr fim a atitudes e a práticas que configuram a violência obstétrica”; e “elaborar um relatório anual com dados oficiais sobre satisfação, relativamente aos cuidados de saúde e no parto e cumprimento dos planos de nascimento” (ver artigo 10.º).
A CMDGP é composta por: “um presidente designado pelo Conselho de Ministros, sob proposta dos membros do governo responsáveis pela área da saúde e pela área da igualdade”; “quatro representantes dos utentes”, eleitos pela AR, “por maioria absoluta dos deputados em efetividade de funções, incluindo representantes das associações de defesa dos direitos na gravidez e no parto”; e quatro membros nomeados pela DGS, incluindo profissionais da saúde materno-infantil e da ginecologia / obstetrícia (ver artigo 11.º).
A CMDGP funciona junto do Ministério da Saúde e do ministério com a tutela da igualdade, que devem garantir os meios necessários ao seu funcionamento” (ver artigo 12.º).
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Lido, ainda que em diagonal, o teor do diploma, não surpreende que, logo nos primeiros dias de abril, surgisse a clara rejeição pelos médicos, a crítica dos enfermeiros e a contestação, em alguns pontos, das associações que representam as grávidas, lamentando não ter havido consulta prévia à sua aprovação e temendo a criação de tensão e de desconfiança entre os profissionais de saúde e as utentes. Assim, os bastonários dos médicos e dos enfermeiros lançaram uma petição pela revogação da lei e apelaram à intervenção da ministra da Saúde, a quem pediram reunião urgente.
A Ordem dos Médicos (OM) contesta o facto de a CMDGP integrar representantes de utentes, que não têm competência para analisar procedimentos técnicos. E o termo ‘violência obstétrica’ caiu mal entre os clínicos, por “insultuoso”, para os profissionais de saúde, e por criar “medo nas grávidas”, de acordo com José Manuel Furtado, presidente do Colégio de Ginecologia e Obstetrícia, sustentando que a designação não é usada pela OMS nem por nenhum país europeu.
Independentemente da intenção, o certo é que chegaram à Entidade Reguladora da Saúde (ERSE) nos últimos dois anos, 75 reclamações formais. E “várias centenas” de relatos de más práticas têm chegado a organizações, como o Observatório da Violência Obstétrica (OVO) e a Associação para os Direitos da Mulher na Gravidez e no Parto.
O obstetra Diogo Ayres de Campos reconhece que ainda ocorrem episiotomias, sem justificação, e outras práticas desaconselhadas pela OMS, como as manobras de Kristeller (pressão externa sobre o útero para acelerar a expulsão do feto), sobretudo, fora dos grandes centros urbanos, por estarem “muito enraizadas”. Não obstante, tais procedimentos têm vindo a diminuir, de forma acentuada, de acordo com números do Consórcio Português de Dados Obstétricos (CPDO), que reúne informação de 13 hospitais públicos. “Há 20 anos fazia-se episiotomia a todas as mulheres para evitar a laceração (rasgão não controlado do períneo), mas, hoje, só se realiza em 30% dos partos vaginais”, assegura José Manuel Furtado. A OMS recomenda que a taxa de episiotomias seja abaixo de 10%. Um estudo publicado na revista “Lancet”, em 2022, comparou os dados de 12 países da Europa, concluindo que, em Portugal, se faziam 10% mais manobras de Kristeller do que na média e o dobro das episiotomias.
Contudo, um dos maiores receios tem a ver com as consequências da lei no comportamento dos profissionais de saúde, pelo facto de prever punições. “Tememos que, para evitar complicações legais, os profissionais optem, mais facilmente, por cesarianas”, diz Carla Pita Santos, cofundadora do Observatório da OVO, criticando o “foco excessivo” na responsabilização individual dos médicos e enfermeiros.
Apesar de considerar que a nova lei tem “aspetos positivos”, como o facto de introduzir o termo “violência obstétrica” e de referir especificamente a necessidade de “erradicação da episiotomia de rotina”, a Associação Portuguesa para os Direitos da Mulher na Gravidez e Parto, defende que, sendo uma lei “punitiva”, não convida ao diálogo entre os profissionais de saúde e as utentes”. Por seu turno, a OM quer “uma reflexão séria com todos os profissionais envolvidos no parto, para diminuir as experiências negativas”, segundo José Manuel Furtado.
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Em junho, o partido do Centro Democrático Social – Partido Popular (CDS-PP) avançou com um projeto de lei de revogação da Lei n.º 33/2025, de 31 de março, por considerar que o conceito de violência obstétrica não está alinhado com os padrões seguidos noutros países da União Europeia [UE]. E, a 4 de julho, o Partido Social Democrata (PSD) avançou com projeto de lei similar, por o conceito da lei ser excessivamente lato e indesejavelmente vago e por cuja aplicação poder redundar na criação de “inaceitável estigma sobre médicos e profissionais de saúde”, incentivando “indesejáveis e perigosas práticas médicas defensivas.
Pelo CDS-PP, o deputado João Almeida sustentou que a lei é desfasada da realidade, porque introduz um conceito que não existe e que não está definido cientificamente. Por outro lado, não há uniformidade na sua interpretação e há “excesso de intervenção junto dos médicos. E, ainda, o diploma, que não defende as mulheres nem os seus filhos, é obstáculo à natalidade.
A lei aprovada, com votos contra do PSD e do CDS-PP, considera violência obstétrica os atos físicos e verbais exercidos por profissionais de saúde que tenham por base comportamento desumanizado, abuso de medicalização ou patologização dos processos naturais, desrespeitando o regime de proteção, da pré-conceção ao nascimento. Mais: a lei criou um enquadramento legal para a episiotomia (incisão para facilitar o parto), promovendo a sua erradicação. Agora, o PSD considera que a criação do enquadramento legal para a realização de episiotomias compromete e degrada a necessária e imprescindível autonomia dos profissionais de saúde responsáveis pela decisão clínica. E o PSD e o CDS-PP entendem que a lei não teve a devida participação da comunidade científica, nem de entidades representativas dos profissionais de saúde.
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Em carta aberta, publicada a 9 de julho, 23 associações e coletivos feministas, com o apoio de 33 subscrições coletivas de organizações de direitos humanos, classificam tais projetos de lei como “ameaça real de retrocesso”. Com efeito, a lei, aprovada em março, representou “um marco histórico na defesa da dignidade, da integridade física e emocional das mulheres e das pessoas grávidas”. Pela primeira vez, referem, “o Estado português reconheceu, formalmente, [...] depois de anos de denúncias, estudos, relatórios e, sobretudo, do testemunho corajoso de milhares de mulheres [...] práticas abusivas, negligentes ou desrespeitosas, durante as fases reprodutivas das mulheres, principalmente, na gravidez, no parto e no pós-parto”.
Sustentam que o conceito de violência obstétrica não é uma invenção e que revogar a lei em vigor seria um “ato de violência institucional” que “iria perpetuar a normalização do sofrimento e da despersonalização no sistema de saúde”. É ignorar as vozes das mulheres, é proteger práticas desumanas, é perpetuar a normalização do sofrimento e da despersonalização no sistema de saúde. É dizer, alto e bom som, que o corpo das mulheres continua a não lhes pertencer”, lê-se na carta.
Por isso, as organizações exigem que a AR “rejeite, categoricamente, qualquer proposta de revogação ou de esvaziamento da lei”, e pedem “diálogo sério e construtivo, para regulamentar e melhorar a lei em diálogo com as organizações representativas dos utentes e dos profissionais de saúde”. Na verdade, como reza a carta, “milhares de grávidas e bebés em Portugal enfrentam um sistema onde ainda faltam condições básicas”, como “profissionais formados em cuidados respeitosos, estruturas com privacidade e dignidade, acompanhamento contínuo, informação clara e partilhada”. E, em vez de corrigirem estes problemas, “estamos a assistir a uma tentativa vergonhosa de apagar as conquistas recentes”.
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Também a Associação Portuguesa de Mulheres Juristas (APMJ) considera que a revogação da lei “representaria um grave retrocesso e um atentado aos princípios consagrados em instrumentos jurídicos internacionais” a que Portugal está juridicamente vinculado. Assim, em parecer enviado à Comissão Parlamentar de Saúde, a APMJ declara opor-se e “repudiar” o projeto de lei que pretende eliminar o conceito de “violência obstétrica”. Com efeito, no dizer da APMJ, “representa um insigne avanço civilizacional na defesa dos direitos humanos das mulheres, no contexto da sua saúde sexual e reprodutiva” e “está em sintonia” com instrumentos jurídicos internacionais, como a Resolução 2306 (2019) da Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa – que insta os estados-membros a adotarem medidas preventivas da violação dos direitos humanos na prestação de cuidados de saúde –, a Convenção de Istambul e a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres.
No parecer, a APMJ reconhece que a lei “deveria ver corrigida e aperfeiçoada a sua redação, designadamente, no que concerne à utilização de conceitos indeterminados ou ambíguos, expressões juridicamente imprecisas e à sua aplicabilidade”. Ainda assim, vinca: “Não se justifica a sua revogação.” Por outro lado, salienta que, embora o reconhecimento jurídico da expressão “violência obstétrica” seja recente na UE por se tratar de um conceito ainda em construção, “diferentes entidades e diversas organizações internacionais têm vindo a denunciar esta forma de violência e a apelar à sua criminalização”. É o caso da OMS, que, embora não reconheça a expressão “violência obstétrica”, publicou diretrizes sobre a necessidade de respeitar as mulheres no parto e de prevenir abusos, reconhecendo a prevalência dessas práticas em instituições de saúde em todo o Mundo.
Assim, de acordo com a APMJ, parece adequado não eliminar qualquer referência normativa a esta forma de violência, pois os factos que podem lesar ou pôr em crise os direitos humanos não desaparecem por existir um vazio normativo, mas “aperfeiçoar o diploma já existente, corrigindo algumas das suas disposições”.
Ao invés do CDS-PP, a APMJ sustenta que a lei não é obstáculo à natalidade, o qual decorre do receio de a mulher ser vítima de violência obstétrica, ficando com danos permanentes (físicos e/ou psíquicos) e desenvolvendo tocofobia. E a revogação constituiria violação dos princípios da dignidade humana, da autonomia pessoal e da integridade física e psíquica.
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Todavia, a disputa política e corporativa irá prevalecer, nem nome de falsos equilíbrios, o que é lamentável. É como encerrar uma estrada, em vez de a beneficiar.  

2025.07.13 – Louro de Carvalho


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