terça-feira, 29 de julho de 2025

Responsabilidade da comunidade internacional pelo que se passa em Gaza

 

Num editorial do Vatican News, Andrea Tornielli refere que o presidente Emmanuel Macron anunciou que a França reconhecerá o Estado da Palestina e que o anúncio solene será feito em setembro, na Assembleia Geral das Nações Unidas. Entretanto, trabalha-se na organização da “Conferência Internacional de Alto Nível para a Solução Pacífica da Questão Palestina e a Implementação da Solução de Dois Estados”, que devia ter sido realizada na sede da Organização das Nações Unidas (ONU), em Nova Iorque, em junho, sob a direção dos governos da França e da Arábia Saudita, mas que foi adiada, devido ao ataque israelita ao Irão.
Vale a pena assumir os dados fundamentais do referido editorial.  
O drama de Gaza, os repetidos massacres de dezenas de milhares de civis inocentes que perderam a vida, sob as bombas, e que morrem, agora, de fome e de privações (a fome foi escolhida como arma de guerra), ou são atingidos, enquanto tentam obter alguma comida, são, por si mesmos, um gravíssimo problema, que devia, no dizer do editorialista, “tornar evidente, aos olhos de todos, a urgência de parar os ataques militares que provocam uma carnificina”, ou um genocídio, como referem vários observadores, julgando insustentável que os Judeus estejam a fazer aos Palestinianos o mesmo (ou pior ainda) que os nazis fizeram ao povo judeu.  
Ao mesmo tempo, de acordo com Andrea Tornielli, “tornou-se imprescindível uma solução para a questão palestiniana, solução que a Santa Sé invoca, constantemente, há décadas, e que nunca pode acontecer sem a contribuição efetiva da comunidade internacional, além dos países diretamente envolvidos.
É de recordar que a Santa Sé assinou, há 25 anos, um acordo básico com a Organização para a Libertação da Palestina (OLP). Dez anos depois, assinou um Acordo Global com o Estado da Palestina, que entrou em vigor em janeiro de 2016. Uma decisão e um reconhecimento em linha com a preocupação dos Sumos Pontífices, desde 1948, pela situação dos Lugares Santos e pelo destino dos Palestinianos. São Paulo VI foi o primeiro Papa a afirmar, explicitamente, que “eles eram e são um povo, e não apenas um grupo de refugiados de guerra”. Na mensagem de Natal de 1975, o Papa Montini pedia aos filhos do povo judeu, que viam, agora, consolidado o seu Estado soberano de Israel, que “reconhecessem os direitos e as legítimas aspirações do outro povo que também sofreu durante muito tempo, o povo palestiniano”.
No início dos anos 90, São João Paulo II estabeleceu relações tanto com o Estado de Israel (em 1993) como com a OLP (em 1994), num momento em que parecia que as partes estavam próximas de um acordo e do reconhecimento dos dois Estados. Em fevereiro de 2000, alguns meses antes da entrada de Ariel Sharon, primeiro-ministro israelita, na Esplanada das Mesquitas, que iniciou a segunda Intifada, a Santa Sé assinou o já mencionado acordo básico com a OLP. Ao chegar a Belém, em março de 2000, São João Paulo II declarou: “A Santa Sé sempre reconheceu que o povo palestiniano tem o direito natural de ter uma pátria e o direito de viver em paz e em tranquilidade com os outros povos desta região. A nível internacional, os meus predecessores e eu proclamámos, repetidamente, que não seria possível pôr fim ao triste conflito na Terra Santa, sem garantias sólidas dos direitos de todos os povos envolvidos, com base no direito internacional e nas importantes resoluções e declarações das Nações Unidas.”
Nove anos depois, Bento XVI, em visita à Terra Santa, reiterou: “Que seja universalmente reconhecido que o Estado de Israel tem o direito de existir e de gozar de paz e de segurança dentro de fronteiras internacionalmente reconhecidas. Que seja, igualmente, reconhecido que o povo palestiniano tem direito a uma pátria independente e soberana, a viver com dignidade e a viajar livremente. Que a “solução de dois Estados” se torne realidade e não permaneça um sonho”. Em 2012, a Santa Sé apoiou a admissão do Estado da Palestina como membro observador na ONU.
Francisco, na viagem à Terra Santa, em maio de 2014, repetiu, ante Mahmoud Abbas, presidente palestiniano: “Chegou o momento de todos terem a coragem da generosidade e da criatividade ao serviço do bem, a coragem da paz, que se baseia no reconhecimento, por parte de todos, do direito de dois Estados a existirem e a gozarem de paz e segurança dentro de fronteiras internacionalmente reconhecidas”. E, pela primeira vez, referiu-se ao país que o acolhia como “Estado da Palestina”.
Assim se chegou ao Acordo Global entre a Santa Sé e o Estado da Palestina, de junho de 2015, que insiste na solução de dois Estados, já contemplada na resolução n.º 181 da ONU, de novembro de 1947. O preâmbulo do Acordo, em referência ao direito internacional, enquadra alguns pontos-chave, como: a autodeterminação do povo palestiniano, o objetivo da solução de dois Estados, o significado não apenas simbólico de Jerusalém e o seu caráter sagrado para judeus, cristãos e muçulmanos, o seu valor religioso e cultural universal como tesouro para toda a Humanidade. Depois, reafirma o direito do povo palestiniano “à liberdade, à segurança e à dignidade, num Estado independente próprio”, um “Estado da Palestina independente, soberano, democrático e viável, com base nas fronteiras anteriores a 1967, na Cisjordânia, incluindo Jerusalém Oriental, e em Gaza, que viva, lado a lado, em paz e segurança com todos os seus vizinhos”.
Recordando o Acordo Básico com a OLP de 2000, o Acordo Global renova o pedido de uma “solução justa para a questão de Jerusalém, baseada nas resoluções internacionais”, sustentando que “decisões e ações unilaterais que alteram o caráter e o status específicos de Jerusalém são moral e legalmente inaceitáveis” e que “qualquer medida unilateral ilegal, de qualquer tipo, é nula e sem efeito” e “constitui um obstáculo à busca da paz”.
Os factos, segundo o editorialista, atestam a linearidade e o realismo da posição contida nos apelos dos últimos Pontífices, nas declarações da Santa Sé à ONU e nos acordos assinados. Logo após o ataque perpetrado pelo Hamas, 7 de outubro de 2023, Francisco condenou o massacre e pediu, publicamente, por várias vezes, a libertação de todos os reféns. Porém, embora reconhecendo o direito de Israel de se defender, a Santa Sé pediu, repetidamente, em vão, que não fosse atingido, indiscriminadamente, todo o povo palestiniano presente na Faixa, e que fossem interrompidos os ataques dos colonos contra a população palestiniana que vive nos territórios do Estado da Palestina, comumente indicados como Cisjordânia. Infelizmente, como acentua Andrea Tornielli, isso não acontece: em Gaza, e não só em Gaza, assistimos a ataques que injustificáveis e que representam um massacre a pesar na consciência de todos.
Como disse, clara e inequivocamente, Leão XIV, no Angelus de 20 de julho, é urgente e necessário “observar o direito humanitário” e “respeitar a obrigação de proteger os civis, bem como a proibição da punição coletiva, do uso indiscriminado da força e da deslocação forçada da população”. A comunidade internacional não pode a assistir passivamente ao massacre em curso. Espera-se que a Conferência Internacional de Alto Nível para a Solução Pacífica da Questão Palestina e a Implementação da Solução de dois Estados, compreendendo a urgência de resposta comum ao drama dos Palestinianos, prossiga, com determinação, em busca de solução que garanta a este povo um Estado com fronteiras seguras, respeitadas e reconhecidas.

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Sobre o mesmo tema, pronunciou-se, a 28 de julho, o secretário de Estado do Vaticano, em conversa com jornalistas, à margem do evento que marcou o Jubileu dos Influenciadores, enfatizando a importância de reconhecer os dois Estados, Israel e Palestina, “a viver lado a lado, de forma autónoma, mas também em cooperação e segurança”. O seu pensamento também se voltou para a “solução para o conflito” na Ucrânia, para as relações com o Patriarcado de Moscovo e para a dor pelo ataque a uma igreja católica na República Democrática do Congo.

De tal conversa de Pietro Parolin entabulada com os jornalistas, dá conta Giada Aquilino no referido órgão de comunicação social do Vaticano.

A Santa Sé “já o reconheceu”, há algum tempo, clamou o cardeal Secretário de Estado, após o anúncio do presidente, Emmanuel Macron, sobre o Estado da Palestina, de que a França o reconhecerá, em setembro. E, interpelado por jornalistas à margem de um evento para o Jubileu dos Influenciadores, o purpurado recordou que a solução é “o reconhecimento de dois Estados, a viver lado a lado, de forma autónoma, mas também em colaboração e segurança”.

Respondendo a uma pergunta sobre as alegações dos que julgam “prematuro” reconhecer o Estado da Palestina, o cardeal afirmou: “Porquê prematuro? Ou seja, em nossa opinião, a solução reside no diálogo direto entre as duas partes, com vista ao estabelecimento de dois Estados autónomos.”

Certamente – observou – “está a tornar-se cada vez mais difícil, também devido à situação que surgiu e está a surgir na Cisjordânia”, em relação aos assentamentos israelitas nesses territórios: “Isso, certamente, não favorece, do ponto de vista prático, o estabelecimento do Estado da Palestina”. Daí a esperança de que as reuniões, por ocasião da Conferência Internacional de Alto Nível para a Resolução Pacífica da Questão Palestiniana e a Implementação da Solução de Dois Estados, deem “algum fruto”.

Em relação à investigação sobre o ataque israelita contra a Igreja da Sagrada Família em Gaza, a 17 de julho, cujas conclusões iniciais indicam que o tiro disparado contra o prédio, que matou três pessoas e feriu 10, não só não terá sido intencional, nem tampouco causado por erro humano –, mas pelo mau funcionamento do projétil ou do mecanismo da peça de artilharia que o lançou –, o cardeal Parolin declarou não ter “outros elementos para fazer uma avaliação diferente”. “Não pudemos realizar uma investigação independente. Consideramos como válidas as conclusões apresentadas pelo exército israelita e pelo governo israelita, mas insistindo que se preste atenção, porque – sustentou – a impressão é de que esses erros se repetem com frequência. E será necessário colocar particular atenção para evitar que locais de culto e instituições humanitárias sejam, novamente, atingidos pela violência”, discorreu o secretário de Estado. “Cabe a Israel encontrar uma maneira de garantir que esses erros não se repitam. Acredito que, caso se queira, pode-se encontrar uma maneira”, reforçou.

Também enfatizou a gravidade da crise em Gaza e a necessidade de ajuda humanitária: “Espero que chegue [a ajuda humanitária], porque a situação é insustentável. E, de facto, como muitas agências internacionais vêm relatando, uma nova arma agora é a da starvation (fome), a da carestia e da falta de alimentos.”

Sobre a outra frente de guerra, uma mediação e um encontro de paz entre Rússia e Ucrânia, Pietro Parolin declarou não acreditar que “o Vaticano possa ser acusado de não ser neutro. Sempre procuramos, mesmo dizendo as coisas como elas são, estar próximos de ambos os lados e, acima de tudo, ajudar a encontrar uma solução para o conflito.”

Respondendo a uma pergunta sobre a audiência do Papa Leão XIV, no dia 26, no Vaticano, com o Metropolita de Volokolamsk, Antonij, responsável pelas Relações Exteriores do Patriarcado de Moscovo, o chefe da diplomacia vaticana classificou o encontro como “positivo”, porque “é importante dialogar, é importante manter contacto e, portanto, tudo isso pode ajudar a restabelecer, gradualmente, as relações com o Patriarcado de Moscovo de forma mais cordial e construtiva”.

O pensamento do purpurado também se dirigiu para o “sinal perigoso”, para os cristãos, que foi o ataque do fim de semana contra uma igreja católica em Ituri, no Leste da República Democrática do Congo (RDC), que resultou em dezenas de vítimas. O ataque, feito por homens armados das Forças Armadas Democráticas Africanas (ADF), “forças que são, praticamente, uma expressão da Jihad Islâmica e que se impõem com força e violência”, como observou Pietro Parolin, ocorreu na região, “onde há já tantos conflitos de natureza étnica, cultural e sociopolítica”. Somar-lhe o aspeto religioso, vincou, “agrava ainda mais o problema”.

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Não faltam alertas de organizações humanitárias e internacionais, nem imagens, nem relatos de quem vive o desespero em Gaza. Contudo, o Mundo tem convivido, quase passivamente, com o que lá se passa. O horror se vive no enclave palestiniano resultante dos ataques de Israel, com o argumento da defesa contra as ações terroristas do Hamas, atingiu proporções impensáveis e intoleráveis, que suscitam, cada vez mais, tomadas de posição oficiais contra a ação do governo israelita, a apelar ao fim do conflito e à garantia de condições para a chegada de alimentos, de água e de medicamentos a centenas de milhar de adultos e de crianças já em estado de desnutrição ou que para lá caminham. Até Donald Trump disse que algo tem de mudar: “Há fome a sério em Gaza. Temos de garantir que aqueles miúdos são alimentados”, declarou no dia 28.

Quase uma em cada três pessoas não come, há vários dias, segundo o Programa Alimentar Mundial (PAM), da ONU; uma em cada quatro crianças entre os seis meses e os cinco anos sofre de desnutrição – são números que falam por si. A fome mata crianças, a alta velocidade, em Gaza, o que é trágico, até por ser morticínio “completamente causado pelo homem”.

A 28 de julho, duas reconhecidas organizações não-governamentais (ONG) israelitas – B’Tselem e Médicos pelos Direitos Humanos – declararam, inequivocamente, que o seu país está a cometer “genocídio”, em gaza, “atuando, de forma sistemática e intencional, para destruir a sociedade palestiniana, matando em massa, causando danos físicos e mentais severos e gerando condições catastróficas que impedem a continuação da sua existência em Gaza”. Enfim, Israel promove – e di-lo abertamente – “uma limpeza étnica e a destruição das infraestruturas que permitem a sobrevivência dos indivíduos e do grupo, com dois milhões de pessoas a passar fome, deslocadas, bombardeadas e deixadas morrer pelo Mundo. O genocídio tem de ser parado”, lê-se na apresentação do relatório “Our Genocide”, da B’Tselem. E, no dizer de Yuli Novak, sua diretora, “isso não poderia acontecer sem o apoio do Mundo ocidental.
Até agora, o que tem sido feito são palavras de condenação e de apelo. Porém, recentemente, 25 países, entre os quais Portugal, através dos ministros dos Negócios Estrangeiros assinaram um documento a exigir o fim da guerra. Condenam a construção de colonatos, em toda a Cisjordânia, e o aumento da violência contra os Palestinianos, por parte dos colonos (como o retratou a última reportagem da edição impressa do Expresso) e manifestaram a sua oposição a “qualquer alteração territorial ou demográfica na região”.
No dia 28, na sede da ONU, numa conferência internacional dedicada à questão palestiniana e à solução dos dois Estados, a França, um dos mais recentes países a anunciar que reconheceria oficialmente o Estado da Palestina e o primeiro membro permanente do Conselho de Segurança da ONU a fazê-lo, apelou a que mais países sigam este caminho. Portugal não o fez, mas está aberto a tal possibilidade, declarou Paulo Rangel, há alguns dias.
Que os países passem das palavras aos atos e que esta “conferência não seja mais um exercício de retórica bem-intencionada” foi o voto do secretário-geral da ONU, António Guterres, que merece todo o apoio.

2025.07.29 – Louro de Carvalho


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