segunda-feira, 21 de julho de 2025

Educação para a Cidadania tem guião “desideologizado”

 

A nova Estratégia Nacional de Educação para a Cidadania (ENEC), tornada pública a 17 de julho, visa substituir a atual, de 2017, e vem com um guião – que não existia – das aprendizagens essenciais, com menos realce para temas, como a sexualidade ou o bem-estar animal, e com ênfase para a literacia financeira e para o empreendedorismo.

O novo guião desta Estratégia Nacional, vulgarmente, conhecida como disciplina de Cidadania e Desenvolvimento (pois os temas são transversais a todo o currículo e só é disciplina autónoma em alguns níveis de educação e ensino), está em consulta pública, entre 21 de julho e 1 de agosto, um período demasiado curto. Porém, é a pressa para entrar no sistema escolar no próximo ano letivo.

A medida surge em cumprimento de uma promessa eleitoral da nova Aliança Democrática (AD), resultante de alegados protestos de pais-encarregados de educação, não tendo o titular da pasta da Educação conseguido indicar um caso. Não obstante, já para as eleições legislativas de 2024, o então “candidato a primeiro-ministro” (a expressão não é exata) prometia “desideologizar” a “disciplina” de Cidadania e Desenvolvimento, respondendo às críticas feitas pelos setores mais conservadores de que a disciplina estava demasiado focada em temas que classificam como ideologia de género (mais concretamente, a igualdade de género e a identidade de género).

Em conferência de imprensa, a 8 de julho, Fernando Alexandre, ministro da Educação, Ciência e Inovação, com a justificação de “discrepâncias” na lecionação da disciplina de Cidadania e Desenvolvimento, durante os 20 anos em que está em vigor (Onde estão os 20 anos? Desde 2011 a 2017, nem vê-la.), anunciou que, agora, passará a haver um “foco no que são direitos e deveres de cidadania numa sociedade democrática”, que “orientou a revisão desta disciplina”.

Por isso, haverá oito dimensões obrigatórias nesta disciplina, por oposição aos “domínios obrigatórios e facultativos”, de antes. É caso para questionar se a mudança de designação de “domínios” para “dimensões” se justifica ou se é relevante,

Os alunos poderão contar com conteúdos nesta disciplina que passam por “Direitos Humanos”, “Democracia e Instituições Políticas”, “Desenvolvimento Sustentável”, “Literacia Financeira e Empreendedorismo”, Saúde, Órgãos de Comunicação, “Risco e Segurança Rodoviária” e “Pluralismo e Diversidade Cultural”.

Para a concretização destas oito dimensões, o governante afirma que as escolas poderão contar com a “colaboração de entidades externas”, que assegurarão a regulação da disciplina.

Com uma alusão a “alarme”, no passado, dado por “famílias normalizadas”, face a “intervenções dentro da escola” por entidades que eram convidadas pelos diferentes estabelecimentos de ensino para ajudar a ensinar estes conteúdos, o ministro da Educação promete, agora, “acabar com esse alarme”, com o fim da autonomia das escolas nos conteúdos desta disciplina. Contudo, questionado pelo Diário de Notícias (DN) sobre exemplos concretos deste alarme, preferiu não os dar, referindo apenas que estiveram na base da revisão da disciplina. E, com a ideia de que “é prioritário acabar com este debate em torno da disciplina”, com “este ruído”, explicou que “os temas da sexualidade são tratados nas disciplinas de Biologia”, enquanto o domínio da Saúde abordará as “doenças sexualmente transmissíveis” e os “comportamentos seguros”.

Em relação a igualdade de género, o ministro garantiu que “não é polémica”. “A polémica surgiu mais nas questões de identidade de género”, explicou, destacando que o tema “tem de ser tratado de outra forma”, “pela sua complexidade”, por pessoas especializadas.

Questionado sobre a intervenção de Rita Matias, deputada do partido Chega, que divulgou, nas redes sociais, vários nomes de crianças com ascendentes estrangeiros na educação pré-escolar, Fernando Alexandre lamentou, vincando a “riqueza” da pluralidade e o “respeito pelo outro”, pela “diferença”. “Querem salientar um aspeto que achamos positivo, que é a diversidade”, disse o governante sobre o Chega, apontando, porém, desafios.

Verificando que “tivemos mais 700 turmas do que tivemos no ano anterior, concluiu que “o nosso país está a crescer” e sustentou que é necessário integrar todas as crianças, “sempre de acordo com os valores da nossa Constituição”.

Em relação aos nomes divulgados, disse apenas, em tom de brincadeira que “alguns deles eram bonitos”.

Lamento dizer que o governante cai em vários equívocos. Desde logo, a educação não se dirige a famílias normalizadas ou não normalizadas, pois, na escola democrática, têm cabimento as pessoas, independentemente do tipo de família de procedam, do sexo, da orientação sexual, da nacionalidade, da etnia, da religião, da condição económica ou social.  Depois, não é crível que um partido, ao publicitar nomes de crianças com ascendentes estanheiros, esteja a querer salientar a diversidade, a não ser que o ministro fosse ingénuo, o que é impossível. E dizer que alguns do nomes publicitados eram bonitos é uma afirmação de mau gosto politica e até uma enormidade desumana, neste contexto.

Também o titular da pasta da Educação entra em contradição: acusa a autonomia da escola, em relação à atual ENEC, mas sustenta que a escola pode optar por alguns conteúdos. Por outro lado, a regulação não cabe a entidades externas, mas ao governo e, no quadro da sua autonomia e do seu contexto, à escola.   

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Na apresentação do documento, a página Web da Direcção-Geral da Educação (DGS), releva a adoção da ENEC de uma “abordagem integrada e articulada”, centrando-se na interdependência entre “Direitos Humanos”, “Democracia e Instituições Políticas”, “Desenvolvimento Sustentável”, e “Literacia Financeira e Empreendedorismo”, enquanto dimensões fulcrais para uma cidadania ativa e participativa num Estado de Direito e em sociedades justas e sustentáveis. Enfatiza a integração de temáticas prioritárias, como a “Saúde”, o “Risco e Segurança Rodoviária”, os “Media” e o “Pluralismo e Diversidade Cultural”, com vista a “uma visão mais abrangente e completa do exercício pleno de cidadania”.

Quanto às “Aprendizagens Essenciais de Cidadania e Desenvolvimento”, salienta que, no atinente a “Conhecimentos, Capacidades, Atitudes e Valores”, bem como às “Ações Estratégicas”, estão organizadas em oito dimensões de Educação para a Cidadania, que se dividem em dois grupos. O primeiro, obrigatório em todos os anos de escolaridade do Ensino Básico e do Ensino Secundário, é constituído pelas dimensões “Direitos Humanos”, “Democracia e Instituições Políticas”, “Desenvolvimento Sustentável” e “Literacia Financeira e Empreendedorismo”; o segundo, obrigatório no 1.º Ciclo do Ensino Básico, no conjunto dos 2.º e 3.º ciclos do Ensino Básico, e no Ensino Secundário, é composto pelas dimensões “Pluralismo e Diversidade Cultural”, “Media”, “Saúde”, e “Risco e Segurança Rodoviária”, cabendo à escola escolher o(s) ano(s) de escolaridade em que cada uma das dimensões vai ser desenvolvida, em conformidade com a respetiva ENEC.

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“Enquanto espaço de desenvolvimento individual e coletivo, a escola assume-se como local privilegiado para a construção de uma cultura de cidadania ativa, democrática e responsável, partilhada por todos, promovendo a coesão social”, lê-se no texto da ENEC.

“A sociedade portuguesa, no seu contexto nacional, europeu e global, enfrenta inúmeros desafios que exigem respostas alicerçadas em valores éticos, conhecimento das regras cívicas e das instituições democráticas, empatia e solidariedade social”, refere o documento, vincando que a “Educação para a Cidadania permite aos mais jovens desenvolver capacidades de diálogo, de sentido crítico e de consciência sobre o seu papel”.

Nos temas obrigatórios e transversais, a proposta do governo destaca os direitos humanos, democracia e instituições políticas, desenvolvimento sustentável e literacia financeira e empreendedorismo. E, num segundo nível de destaque está a saúde, risco e segurança rodoviária, pluralismo e diversidade cultural e os media. “Num contexto global em que se assiste a crescentes riscos de fragmentação social, de desinformação e de polarização, educar para a cidadania corresponde a investir na coesão social, à volta de valores comuns dos direitos humanos, da igualdade e não-discriminação, que estão a base do Estado de Direito democrático português e das sociedades livres”, diz o texto.

Comparando a nova ENEC e a atual, conclui-se que deixa de existir a atenção à sexualidade ou à orientação sexual, sendo tratada apenas no contexto de violações dos direitos humanos.

Apenas no guião de aprendizagens essenciais para o 3.º Ciclo e no capítulo dos direitos humanos, os alunos são chamados a “analisar casos históricos e atuais de violação dos direitos humanos (incluindo, entre outros, o tráfico de seres humanos, os abusos sexuais, a violência de género, bem como a violência contra pessoas com orientação sexual e identidade e expressão de género não normativas)”. E também só entre o 7.º e o 9.º ano, o programa prevê “debater a (des)igualdade de género em contextos como a educação, o trabalho e o exercício de cargos políticos”.

No caso dos maus-tratos a animais, que é destaque no atual programa, a nova ENEC prevê que seja um dos temas a abordar no capítulo do desenvolvimento sustentável, para os alunos do 2.º Ciclo, levando-os a “refletir sobre situações em que a ação humana pode comprometer o bem-estar animal”.

O convívio com outras culturas mantém-se como um dos pontos relevantes, com a proposta atual incluir o termo diversidade cultural, em vez da interculturalidade, que consta da atual ENEC.

O governo defende que os alunos do 1.º Ciclo sejam ensinados a “manifestar abertura e curiosidade em conhecer o outro” e a “participar em iniciativas de celebração e valorização da sua cultura, bem como de outras culturas, no quadro dos valores constitucionais da sociedade portuguesa”, entre outras matérias.

Aos alunos dos 2.º e 3.º Ciclos é pedido que valorizem “a diversidade cultural no contexto escolar”, debatam “a relevância da proteção dos direitos das minorias e das suas culturas”, reconheçam os “desafios que as pessoas migrantes vivenciam na sociedade de acolhimento”.

Só no Ensino Secundário os alunos serão chamados a “refletir, criticamente, sobre consequências culturais dos atuais processos de globalização (homogeneização versus diferenciação e fragmentação)”, a “analisar diferentes formas de discriminação, como racismo, xenofobia, anticiganismo, Islamofobia, antissemitismo, misoginia” e a “debater o papel do diálogo intercultural e do pluralismo na coesão de sociedades culturalmente diversas”.

Uma das novidades é a literacia financeira e o empreendedorismo, com os alunos mais novos a serem chamados a “compreender a importância da poupança e os seus objetivos” ou a “diferenciar entre contrair empréstimos (junto de familiares, de amigos ou de bancos) e conceder empréstimos”. E os alunos mais velhos elaborarão orçamentos pessoais, familiares e de “um projeto empreendedor, tendo em conta as parcerias estratégicas e os recursos necessários”, bem como validarão “ideias inovadoras que possam gerar valor”.

Também o tema dos media tem algum destaque, na proposta do governo, procurando “incentivar as crianças e os jovens a interpretar a informação e a utilizar os meios de comunicação social [TIC], nomeadamente, no acesso e na utilização das tecnologias de informação e comunicação, visando a adoção de atitudes e comportamentos adequados a uma utilização crítica e segura das tecnologias digitais, da informação e dos conteúdos gerados por inteligência artificial [IA]”.

Aos mais velhos serão pedidas propostas para “transformar e melhorar o ambiente online e o bem-estar na relação com o digital, como forma de prevenção dos riscos online (dependência, cyberbullying, discurso de ódio, polarização, trolling, sexting, sextorsão…)”.

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Na sequência da promessa do primeiro-ministro, em outubro de 2024, que iria “libertar [a disciplina de Cidadania] das amarras dos projetos ideológicos”, o Ministério da Educação e da Ciência (MECI) apresentou a nova ENEC e as aprendizagens essenciais que substituirão os guiões e referenciais em vigor.

Fernando Alexandre, que tinha assegurado que nenhum dos 17 temas da ENEC iria cair, falhou, pois lendo as novas orientações e procurando palavras ou expressões, como “sexualidade” e “saúde sexual e reprodutiva”, não se encontra nenhuma referência a elas.

Há duas semanas, na conferência de imprensa em que o ministro e o respetivo secretário de Estado apresentaram as linhas gerais do que se pretende mudar na ENEC, foi explicado que as questões da sexualidade passariam a estar integradas no domínio da Saúde. Porém, olhando para o documento em consulta pública, nesta dimensão, em particular, nada é explicitado, em relação à sexualidade, em nenhum dos anos de escolaridade, nem sequer no que diz respeito a doenças sexualmente transmissíveis ou à contraceção. Para o 2.º e 3.º Ciclos do Ensino Básico, define-se apenas como aprendizagem essencial saber “respeitar questões relacionadas com a intimidade e a privacidade de cada pessoa”.

Nesta área, definia-se como um dos objetivos ajudar os alunos a “compreender, respeitar e aceitar a diversidade na sexualidade e na orientação sexual”, ensinando que “a identidade de género é a experiência interna e individual de género profundamente sentida por cada pessoa que pode, ou não, corresponder às expectativas sociais” e que os jovens não devem ser limitados na forma como se expressam a este nível.

Os conteúdos relacionados com a sexualidade, em particular, com a orientação sexual e com a identidade de género, geraram contestação junto da direita conservadora, a ponto de levar um pai a querer retirar os filhos da disciplina, num caso que foi presente a tribunal.

partido do Centro Democrático Social - Partido Popular (CDS-PP), que se coligou com o Partido Social Democrata (PSD), chegou a defender que a disciplina fosse de frequência facultativa, cabendo aos pais a decisão de matricular ou não os filhos. E o Chega apresentou na uma proposta nesse sentido. O governo, porém, decidiu manter a “disciplina” obrigatória, mas reviu o programa e estabeleceu novas orientações para o que deve ser ensinado.

De acordo com as linhas orientadoras, as únicas referências a “identidade de género” e a “orientação sexual” surgem no âmbito do tema “Direitos Humanos”, estabelecendo-se que os professores devem abordar com os alunos, no 3.º Ciclo, “casos históricos e atuais de violação dos direitos humanos, incluindo, entre outros, tráfico de seres humanos, abusos sexuais, violência de género, bem como violência contra pessoas com orientação sexual e identidade e expressão de género não normativas”. Fora isso, não há qualquer indicação sobre o tema.

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Enfim, substituiu-se uma ideologia por outra. E temas relevantes passaram a ser abordados em contexto técnico-científico ou em situações-limite. Perde-se a atitude cidadã. Esperemos que o Conselho da Europa faça a sua crítica.

2025.07.21 – Louro de carvalho


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