O problema da habitação é, propositadamente, estrutural em Portugal e na Europa.
Com efeito, a União Europeia (UE) tem em consulta pública um projeto europeu para a Habitação e, de acordo com algumas estatísticas, em Portugal, há cerca de 700 mil casas desocupadas e a construção continua a crescer, com programas de habitação, a nível dos municípios (alguns têm a Carta Municipal para a Habitação), com projetos de habitação social e com programas de construção a custos controlados. Não obstante, os custos de acesso à habitação continuam a disparar, quer a nível da compra de casa, quer a nível de arrendamento. E as medidas tomadas, até agora, ou são cirúrgicas ou de cosmética, beneficiando, não tanto quem precisa, mas quem tem a necessária esperteza para alocar, em seu proveito, o estatuto de jovem e o pecúlio familiar.
Por outro lado, a casa transformou-se em objeto do mercado, altamente precioso, disponível para alojamento local, para nómadas digitais, para hotéis de charme e quejandos e para fundos imobiliários. E quem é pobre ou obrigado à mobilidade, por motivos de estudo ou de trabalho, paga preço inacessível a carteiras médias por quarto ou por apartamento.
Paralelamente, há grupos a coletar-se para uma renda alta e sobrelotam apartamentos ou moradias, enquanto outros ocupam, a preço não convidativo, garagens e armazéns e outros erigem a sua barraca, a partir de materiais que recolhem (alguns reciclados) e de mão-de-obra própria.
É claro: intervir em habitações sobrelotadas ou em garagens-armazéns é melhor nem pensar. Porém, barracas, porque dão mau aspeto, é conveniente demoli-las.
Antigamente, a demolição de barracas (algumas com telefone, com água canalizada e com eletricidade – habitadas por agentes policiais e, até, por magistrados) pressupunha uma alternativa melhor e imediata que se oferecia em troca; hoje, basta o horizonte de eleições autárquicas, por via de eventual recandidatura ou por via de eventual termo de mandato.
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A 14 de julho, verificou-se
que a Câmara Municipal da Amadora (CMA)
procedera à demolição de duas casas autoconstruídas (16 habitações) na Estrada
Militar, em Mina de Água, tendo anunciado a demolição de 22 construções ilegais
e prometido assegurar resposta de emergência aos moradores, inclusive crianças.Flávio Almada, porta-voz do movimento Vida Justa, falou de aparato “muito agressivo”, no cerco do bairro pela Equipa de Intervenção Rápida da PSP (Polícia de Segurança Pública): “Ninguém entrava, os moradores não podiam nem sequer sair.”
Em declarações à agência Lusa, disse que “duas casas foram demolidas” e acusou a CMA de ignorar as providências cautelares apresentadas pelos moradores e de falhar na disponibilização de soluções de habitação. E, em resposta escrita à agência Lusa, a CMA, presidida por Vítor Ferreira, do Partido Socialista (PS), esclareceu que, na Estrada Militar da Mina de Água, no antigo bairro de Santa Filomena, “serão demolidas a totalidade das 22 construções ilegais”, indicando que foram identificados, como ocupantes, “cerca de 30 adultos e 14 crianças/jovens”. “Estas construções estão a ser demolidas, pois representam um retrocesso nos esforços que o município tem vindo a desenvolver, ao longo dos últimos anos. O processo de hoje está a decorrer com a normalidade possível de um processo exigente como este”, afirmou a CMA, sem adiantar quantas construções foram já demolidas.
De acordo com o movimento Vida Justa, os moradores das casas de autoconstrução apresentaram providências cautelares para travar as demolições e “a câmara tinha conhecimento disso”, nomeadamente, através de notificação por parte dos advogados sobre a decisão do tribunal de ordenar a suspensão das demolições. Contrapondo, a CMA referiu que, “sempre que o tribunal dá conhecimento, por vias oficiais, à autarquia do deferimento da providência cautelar”, a câmara “respeita e acata a decisão do órgão judicial, fornecendo, posteriormente, a resposta à mesma”.
Questionada sobre se, caso as construções abrangidas por estas providências cautelares sejam demolidas, a autarquia incorre num crime de desobediência, a autarquia reiterou que “a providência tem de ser deferida pelo tribunal e remetida, apenas por este órgão judicial, à CMA”.
O movimento Vida Justa criticou, ainda, a ausência de técnicos do serviço social do município no bairro, durante as demolições, inclusive, para disponibilizarem soluções de habitação aos moradores. Em resposta, a CMA informou que a junta de freguesia e a divisão de ação social do município asseguraram o devido atendimento, esclarecimento e encaminhamento dos moradores.
Flávio Almada, do Vida Justa, lamentou também a falta de diálogo da câmara com os moradores, afirmando que há pessoas que vivem naquele bairro, há mais de 20 anos, e indicou que os editais do município a comunicar as demolições foram afixados no dia 11, à tarde, para procederem às desocupações, em 48 horas, impedindo uma reação em tempo útil.
A câmara disse que o edital com vista à desocupação e demolição de 22 construções ilegais foi afixado há 13 dias, concretamente, a 1 de julho, com a Polícia Municipal a contactar alguns dos ocupantes para que recorressem ao atendimento social e procurassem soluções alternativas. E, a 11 de julho, foi afixado um aviso nestas construções ilegais, dando 48 horas para as desocuparem e informando que, terminado o prazo, a autarquia procederia à demolição, tendo a Polícia Municipal voltado ao local, no dia 12, “alertando os ocupantes para a iminência da demolição [e] sensibilizando, uma vez mais, para a procura de alternativas, especialmente, para os mais idosos e [para] as crianças”.
A CMA não sabe que isto não se resolve com avisos intempestivos, nem com a denúncia de que há muitas pessoas a viver em moradas irregulares.
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Em declarações à Lusa, fonte da CML, do distrito de Lisboa, adiantou que, no primeiro dia, foram destruídas cerca de 30 casas autoconstruídas, retomando o trabalho, no dia 15, “até estarem demolidas as 64 habitações previstas”.
Segundo indicou a autarquia, nas 64 habitações, viviam 161 pessoas, sendo que, destas, 62 são crianças, que têm, agora, de procurar alternativa habitacional, devendo os moradores deslocar-se aos serviços sociais, na Casa da Cultura, em Sacavém, e solicitar apoios, a disponibilizar no mercado de arrendamento, com possibilidade de apoio financeiro à caução e à primeira renda.
Em Loures, as operações decorreram no Talude Militar, onde já houve demolições no final de junho. A autarquia afixou, a 11 de julho, editais no bairro, anunciando novas demolições, e deu aos moradores 48 horas para as desocupações.
Contactada pela agência Lusa, no fim de semana, a CML disse que as suas atuações são “sempre dentro da legalidade e em respeito absoluto pelas decisões judiciais e com prioridade à segurança, à saúde pública e à dignidade humana”. E sustentou que o movimento Vida Justa continua “a instrumentalizar pessoas em situação de vulnerabilidade”, mas não apresenta “qualquer solução concreta para o problema grave da proliferação descontrolada de construções ilegais”. “A Câmara Municipal de Loures continuará a agir com responsabilidade, apoiando quem demonstra vontade de cumprir e rejeitando liminarmente a edificação desordenada de barracas no concelho”, lê-se na resposta da autarquia.
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Entretanto, o Tribunal administrativo de Lisboa
aceitou, a 14 de julho, à noite, uma providência cautelar, interposta por
várias famílias (incluindo “dois doentes, sete crianças e uma grávida”), para
interromper as demolições de barracas em Loures. De acordo com o despacho, os
requerentes e as suas famílias encontram-se “em risco de ficar sem habitação e
em situação de sem-abrigo”, “sem qualquer alternativa habitacional”. Assim,
está em risco a “integridade física e moral” das mesmas, o que “não é possível
afastar, sem medidas judiciais urgentes”.Segundo o tribunal não há “qualquer interesse público imediato que justifique a criação de situação de risco atual das famílias despejadas”.
Por conseguinte, as demolições de casas autoconstruídas no Bairro do Talude Militar estão “suspensas, enquanto se analisa” um despacho judicial, indicou fonte da CML, referindo que, de manhã, algumas casas (51) “foram abaixo”.
A informação foi dada à agência Lusa pelas 10h50 e a suspensão das demolições foi confirmada pelo movimento Vida Justa, que tem estado a acompanhar os moradores.
O tribunal aceitou, “provisoriamente, a providência cautelar de suspensão da eficácia de ato administrativo” – ou seja, de demolições de habitações – interposta por uma advogada, em representação de 14 moradores do bairro, no distrito de Lisboa.
O despacho determina, ainda, que “a entidade requerida [a Câmara Municipal de Loures] [fica] impedida de executar o ato de demolição, devendo abster-se de qualquer conduta que coloque em causa e/ou contrarie o ora determinado”. O tribunal considera “verificada a situação de especial urgência”, decretando a notificação da sua decisão, “de imediato e da forma mais expedita”.
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Não é só o movimento
Vida Justa ou o Tribunal Administrativo de Lisboa a contestar a demolição das
casas autoconstruídas. Também o dia 15 de julho trouxe a público uma carta
aberta intitulada “Sobre a demolição de princípios e de barracas”, subscrita
por de militantes e por simpatizantes do PS, a denunciar a demolição de barracas sem soluções alternativas, a criticar a
falta de resposta social e a apelar à coerência com os valores humanistas do
partido.Face à recente demolição de habitações precárias, que deixou dezenas de famílias sem teto, este grupo, com profunda indignação, acusa autarcas socialistas de ignorarem o direito constitucional à habitação e solicita ao PS que retome o seu compromisso com a justiça social e com a dignidade humana, exigindo políticas que coloquem as pessoas no centro das decisões.
O documento, assinado por ex-governantes, por deputados e por ex-eurodeputados – João Costa, Catarina Silva, Frederico Francisco, Maria João Dornelas, António Mendonça Mendes, Margarida Marques, Catarina Marcelino, João Albuquerque, Isabel Moreira, António Leite e Rosa Monteiro – mostra o desagrado dos subscritores, perante a “demolição do teto de dezenas de famílias, autorizada por autarcas do Partido Socialista, sem que tivesse sido, previamente, acautelada a proteção destas famílias empurradas para a condição de sem-abrigo”.
Mais do que o desagrado, os subscritores expressam a sua “profunda indignação e preocupação”, por assistirem “ao fim da linha – da insalubridade e precariedade de uma barraca, para a rua”.
Nestes termos, consideram que “a decisão de proceder à demolição das barracas, sem garantir soluções habitacionais alternativas, adequadas e imediatas, não só contraria os princípios constitucionais e estatutários, como mancha a credibilidade e o compromisso ético que o Partido Socialista deve assumir perante os cidadãos”.
Cônscios da necessidade de “eliminar a construção ilegal e clandestina e de evitar um novo crescimento de bairros de barracas”, não ignoram “o trabalho desenvolvido pelas autarquias socialistas na promoção de habitação pública”, nem desvalorizam “os desafios técnicos, legais e financeiros que enfrentam”. É por isso que apelam “à coerência”, no pressuposto de que “a política socialista começa pelas pessoas, nunca contra elas”, bem como à mobilização das estruturas do PS para refletirem sobre estas práticas e para defenderem, com coerência, os valores que o definem.
Com efeito, querem “um PS que seja, verdadeiramente, um instrumento de transformação social, justiça e solidariedade, não apenas nas palavras, mas sobretudo nos atos”. Na verdade, segundo os subscritores, Portugal requer um PS que, “mesmo em tempos difíceis, não abdique da sua missão de construir um país mais justo e mais humanista”. E os subscritores porfiam: “Estes são os nossos princípios. Não queremos outros.”
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Embora seja caso para
perguntar como é que o PS, com uma maioria de esquerda (durante mais de oito
anos), no Parlamento, e com uma maioria absoluta, em dois anos e poucos meses,
avançou tão pouco na resolução do problema da Habitação – oscilando entre os
princípios da função social da propriedade (que postula a intervenção política
do Estado) e as exigências superlativadas da iniciativa privada e da
propriedade privada – é de aplaudir esta posição de princípios, que não pode
ser implodida, e aquela atitude de autarcas alinhada, objetivamente, com
aqueles que veem na habitação ilegal as mãos e os pés dos imigrantes, como
fonte de todos os vícios e erros.Salazar e Caetano não fariam pior aos considerados seres sub-humanos.
É desejável imperiosa a eliminação das barracas e das casas ilegais? Sim. Porém, isso não pode ser feito intempestivamente, sem diálogo prévio e eficaz com os moradores, nomeadamente, se vulneráveis, muito menos com base na força policial. Não pode ser feito, sem alternativa disponível e de acesso imediato (sem a obrigatoriedade de levar as pessoas a solicitar auxílio, que pode não chegar). E, não pode eliminar-se uma habitação autoconstruída, portanto, ilegal ou irregular, se for possível a sua legalização ou regularização.
Enfim, mais do que os princípios estéticos e cosméticos (que são relevantes), impõe-se o apreço pela dignidade humana, o bem-estar das pessoas e a coesão social.
2025.07.15 –
Louro de Carvalho
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