O Ministério Público (MP) deduziu, a 16 de julho, acusação contra o empresário Joe Berardo de burla qualificada, por simulação de ação cível que impediu três bancos nacionais de reclamarem créditos no valor de mil milhões de euros. Estão também acusados os advogados André Luiz Gomes e Gonçalo Moreira Rato, bem como a Associação Coleção Berardo (ACB).
De acordo com o comunicado do MP, no inquérito, originado em certidão extraída do processo CGD, “investigaram-se factos relacionados com a concessão de garantias à CGD [Caixa Geral de Depósitos], ao BES [Banco Espírito Santo] [– depois, o Novo Banco –] e ao BCP [Banco Comercial Português] sobre 100% dos títulos da ACB, no âmbito de acordos celebrados entre 2008 e 2012, relativamente a financiamentos contratados com entidades do Grupo Berardo e não pagos, no valor total de cerca de mil milhões de euros”.
Em 2013, por ação cível simulada, “que não correspondia a um litígio efetivo”, os arguidos, em “comunhão de esforços, lograram obstaculizar o acesso dos bancos credores aos títulos e património da associação, composto por obras de arte avaliadas em centenas de milhões de euros”.
A sentença relativa à dita ação cível permitiu aos arguidos aprovar deliberações em Assembleias Gerais da ACB lesivas dos interesses patrimoniais dos bancos credores e contrárias ao acordado nas negociações e contratos celebrados entre 2008 e 2010.
No âmbito do processo principal, o caso CGD, Joe Berardo foi detido, a 29 de junho de 2021, e ouvido pelo juiz de instrução Carlos Alexandre, em primeiro interrogatório judicial, que lhe aplicou como medida de coação a caução de cinco milhões de euros e determinou a caução de um milhão de euros para o advogado André Luiz Gomes, também arguido no processo e então representante legal do empresário madeirense para a área de negócios.
O processo, com 11 arguidos, investigou suspeitas de diversos crimes, nomeadamente, burla qualificada, branqueamento de capitais e fraude fiscal qualificada. Joe Berardo estava indiciado de oito crimes de burla qualificada, de branqueamento de capitais, fraude fiscal qualificada, dois crimes de abuso de confiança qualificada e um crime de descaminho, tendo ficado obrigado a prestar uma caução de cinco milhões de euros e a não sair do país, entre outras medidas de coação. E André Luiz Gomes, além de ter sido indiciado pelos mesmos crimes que o empresário, foi-o também por mais quatro crimes de fraude fiscal qualificada, branqueamento de capitais, falsificação de documento, falsidade informática, estes referentes às suas sociedades, tendo de prestar a caução de um milhão de euros, entre outras medidas cautelares.
Segundo o MP, a investigação no caso CGD envolve um grupo “que, entre 2006 e 2009, contratou quatro operações de financiamentos com a CGD, no valor de cerca de 439 milhões de euros” e que terá causado “um prejuízo de quase mil milhões de euros” à CGD, de cerca de 400 milhões de euros ao Novo Banco (NB) e de cerca de 200 milhões de euros ao BCP. Joe Berardo, em nome da ACB ofereceu como garantia as ações que lhe valeriam a detenção de 10% do BCP.
Na investigação, que começou em 2016, foram identificados “procedimentos internos em processos de concessão, reestruturação, acompanhamento e recuperação de crédito contrários às boas práticas bancárias”, referiu ainda a PJ.
De acordo com um comunicado publicado, no dia 17, na página oficial do MP, o Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP) acusou, a 16 de julho, “três pessoas singulares, duas das quais advogados, e uma pessoa coletiva, a Associação Coleção Berardo, pela prática de factos que considera integradores do crime de burla qualificada”.
Um dos arguidos singulares é Joe Berardo, confirmou a Procuradoria-Geral da República (PGR).
A certidão extraída do processo CGD, respeitante a suspeitas relativas à concessão de garantias à CGD, ao extinto BES, agora NB, e ao BCP, sobre 100% dos títulos da ACB, “no âmbito de acordos celebrados entre 2008 e 2012, relativamente a financiamentos contratados com entidades do Grupo Berardo e não pagos, no valor total de cerca de mil milhões de euros”.
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O caso Berardo é dos mais típicos da ruinosa confiança do Estado num empresário,
que nada mais faz do que burlar o Estado, sob a capa da cooperação benemerente.
Veja-se uma amostra. A 30 junho 2021, era notícia, avançada pelo Jornal de Notícias (JN) e confirmada pelo Expresso, que a investigação da Unidade Nacional de Combate à Corrupção (UNCC), da PJ, e do DCIAP ao universo de Joe Berardo fizera, no total, onze arguidos, seis em nome coletivo e cinco individuais, entre eles, o empresário madeirense e o seu advogado, André Luiz Gomes (ambos detidos), bem como Carlos Santos Ferreira, ex-presidente da CGD e do BCP.
O JN garantia que, pelo menos, uma das associações controladas por Joe Berardo estaria no lote das pessoas coletivas constituídas arguidas. E o Observador avançava que Renato Berardo fora constituído arguido, em regime de coautoria com o pai.
Berardo e André Luiz Gomes ficaram detidos, na noite do dia 29, no estabelecimento prisional anexo à PJ e foram ouvidos, no dia seguinte, perante o juiz de instrução Carlos Alexandre, no primeiro interrogatório judicial realizado no Tribunal Central de Instrução Criminal (TCIC).
O DCIAP e a UNCC da PJ tinham feito meia centena de buscas, entre as quais, a três a estabelecimentos bancários e uma a escritório de advogado. Tais diligências decorreram em vários locais do país, nomeadamente, em Lisboa, no Funchal e em Sesimbra.
No inquérito investigaram-se “matérias relacionadas com financiamentos concedidos pela CGD e outros factos conexos”, estando em causa a prática de crimes de administração danosa, burla qualificada, fraude fiscal qualificada, branqueamento e, eventualmente, crimes cometidos no exercício de funções públicas – crimes com moldura penal entre cinco e 12 anos de prisão. Segundo a PJ, a investigação – iniciada em 2016 e que incidiu, sobretudo, num grupo económico que entre 2006 e 2009 contratou quatro operações de financiamentos com a CGD, no valor de cerca de 439 milhões de Euros –, identificou procedimentos internos em processos de concessão, reestruturação, acompanhamento e recuperação de crédito contrários às boas práticas bancárias e que podem configurar a prática de crime. Este grupo económico tem incumprido com os contratos e recorrido a mecanismos de renegociação e de reestruturação de dívida para não a amortizar.
A vergonhosa prestação de Berardo, na comissão parlamentar de inquérito (CPI) à CGD, em 2019, foi vista como ponto de não retorno na relação entre Berardo e os três bancos do país com que tinha negócios: além da CGD, o BCP e o NB. Tinha havido misterioso aumento de capital na Associação Berardo (AB), que tirava força aos bancos e dificultava que estes acedessem à coleção de arte, que permitiria serem parcialmente ressarcidos. A partir daí, choveram processos de execução, para concretizar o ressarcimento, e seguiu a investigação judicial.
Este grupo económico causou prejuízo de quase mil milhões de euros à CGD, ao NB e ao BCP, “tendo sido identificados atos passiveis de responsabilidade criminal e de dissipação de património”. Além de cliente, Berardo foi um dos acionistas do BCP (aliás, o financiamento junto da CGD foi obtido, sobretudo, para ganhar poder na guerra acionista de 2007), tendo André Luiz Gomes sido, igualmente, administrador desta instituição financeira.
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A Associação
de Coleções (AC), entidade ligada a José Berardo, pagou 1,8 milhões de euros ao
Estado, para ficar com um conjunto de 219 obras de arte adquiridas, em conjunto,
pelo Estado e pelo empresário. O dinheiro seguiu, juntamente com mais 200 mil
euros e quatro mil livros para a Fundação Centro Cultural de Belém (FCCB). E as
obras avaliadas em 500 mil euros transitaram para a Direção-Geral do Património
Cultural (DGPC). Isto resume o relatório final da Comissão liquidatária da
Fundação de Arte Moderna e Contemporânea – Coleção Berardo.Esta fundação unia o Estado e Berardo, desde 2006, dando forma ao acordo de comodato entre aqueles dois universos: o império Berardo e o Centro Cultural de Belém (CCB), pelo Estado, que expunha as obras. A Coleção Berardo (CB) estava exposta no CCB, mas a Fundação podia fazer compras de mais pinturas, para se atualizar. Havia um fundo de aquisições, que recebeu dois milhões do instituidor Estado (em dinheiro) e pouco mais de dois milhões do instituidor Joe Berardo (um milhão, em dinheiro, pouco mais de um milhão, pela entrega de 10 obras de arte).
O fundo adquiriu 219 obras de arte e, conforme os estatutos, havia a opção de compra, por parte de Berardo: “As obras de arte compradas com recurso ao fundo de aquisições podem ser adquiridas por José Manuel Rodrigues Berardo ou por quem ele venha a indicar, pelo respetivo preço de aquisição, sendo deduzida a parte do preço que constituiu a sua participação”. Como o Público noticiara, o empresário – visado em investigações judiciais, que atingiam o seu universo empresarial – indicou a AC, genericamente, fora desses constrangimentos e sem arrestos decretados pela Justiça, para exercer a opção de compra sobre tais obras de arte.
As 219 obras de arte valiam 3,8 milhões de euros e, considerando os pouco mais de dois milhões que dera, inicialmente (em dinheiro e com 10 obras), a AC só teve de pagar 1,8 milhões de euros. Esta associação, que tem o Monte Palace da Madeira e os novos museus do universo, é uma associação sem fins lucrativos criada por Joe Berardo e pelo filho Renato, em 2005, sendo o empresário o presidente vitalício. Entretanto, segundo o relatório, “todo o restante património da Fundação – ativos fixos tangíveis, livros, catálogos e artigos de merchandising e saldo bancário da conta de depósitos à ordem do fundo de aquisições, no montante de 2038911,87 euros (incluindo os quase 1,8 milhões de euros pagos a Berardo) – foi transferido para a Fundação Centro Cultural de Belém”.
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A Fundação
de Arte Moderna e Contemporânea – Coleção Berardo foi extinta pelo Decreto-Lei n.º 90-D/2022, de 30 de
dezembro, sendo ministro da Cultura Pedro Adão e Silva,
ato de que resultaram consequências, nomeadamente, a passagem do seu património
para a FCCB.Nas suas instalações, estavam ainda 161 obras de arte não arrestadas por ordem judicial, que “registadas na base de dados do museu como ‘BP’ (Berardo Privado)”. Permanecem, entre outras, em depósito na FCCB, “a fim de esta entidade lhes poder dar o devido destino, se e quando reclamada a sua devolução pelos interessados”.
Os estatutos preveem que o usufruto do centro de exposições do CCB, onde estava a coleção, se extingue, passando a gestão para a FCCB, que abriu ali o Museu de Arte Contemporânea, do Estado, onde também ficam as coleções do Banco Privado Português.
A fundação de arte tinha recebido, em doação, 29 outras obras de arte, mas, neste caso, foi celebrado protocolo com a FCCB que permitiu que estas, avaliadas em 491 mil euros, fossem entregues à DGPC.
Os estatutos da extinta fundação também previam que a ACB, a proprietária das cerca de mil obras de arte da CB expostas no CCB, durante os anos do acordo, voltasse a assumir a sua posse e a sua gestão. Havia a possibilidade de o Estado exercer o direito de compra. Ora, o Estado não o tinha exercido, pois a ACB não dispunha da Coleção, porque as obras foram arrestadas à ordem da Justiça, pois três dos principais bancos portugueses (CGD, BCP e NB) reclamam que elas deviam ser utilizadas como garantia dos créditos concedidos ao universo de Berardo, não devolvidos, que ascendem a cerca de mil milhões de euros. Assim, o governo extinguiu o acordo e assumiu a gestão da coleção, até o tribunal decidir se as obras servem ou não para pagar as dívidas. Aquando de decisão judicial (que demorará anos e, portanto, já sem Pedro Adão e Silva na Cultura), o Estado terá de negociar com o empresário ou com a banca.
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Os
trabalhadores da extinta fundação transitaram, na sua maioria, para a FCCB. Dos
27 trabalhadores, 23 foram transferidos “com a antiguidade que detinham e
melhoria da posição remuneratória”, indica o relatório. Nos restantes quatro
casos, os trabalhadores cessaram funções ao serviço da Fundação: dois, mediante
resolução do contrato de trabalho, por mútuo acordo mas com direito a
compensação; um, por denúncia, com aviso prévio, do contrato de trabalho; e um,
por resolução do contrato de trabalho por mútuo acordo e subsequente celebração
de contrato de trabalho com a FCCB. Já os 58 assistentes de exposição e os20
monitores de apoio passaram a prestar serviços à FCCB, para a qual também
transitaram mais de quatro mil livros que estavam na biblioteca daquela
entidade (outros 766 foram para a proprietária, não identificada).Estes dados fazem parte do sumário executivo elaborado pela comissão de liquidação da Fundação de Arte Moderna e Contemporânea – Coleção Berardo, que teria até ao fim de janeiro de 2024, para terminar os trabalhos burocráticos. Ficaram por resolver os vários processos judiciais entre o Estado, a banca e as empresas de Berardo, o que está em curso.
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Em abril de 2024, a CGD pôs à venda, no portal
e-leilões, 42 bens de Joe Berardo, arrestados em processos judiciais, por
dívidas, incluindo o recheio da casa de Lisboa e ações da empresa vinícola Bacalhoa.
Entre os bens da casa em leilão estão móveis, televisões, bandejas, taças e
candelabros de prata, quadros e esculturas. Os valores base vão dos 30 euros de
duas taças de metal prateado aos 28 mil euros de um quadro atribuído a Robin
Philipson, sendo o montante arrecadado destinado a abater à dívida à CGD.Esteve, ainda, à venda um lote de 4156978 ações da empresa de vinhos bacalhoa, no valor base de 4,156 milhões de euros (cada ação tem valor nominal de um euro). Estas ações têm um penhor a favor do banco BCP, que reclamou créditos nos autos e foi graduado em primeiro lugar. E, tendo em conta a informação disponível no portal de informação de empresas Racius, estas ações da bacalhoa equivalem a mais de 5% do capital social.
De acordo com o Correio da Manhã (CM), a CGD “avançou com a venda dos bens do recheio da casa na avenida Infante Santo, na qual Berardo reside, com vista a obter receitas que permitam pagar parte da dívida milionária” ao banco público. A Fundação Berardo, segundo relatório e contas consultado pelo CM, tem uma dívida à CGD superior a 310 milhões de euros. E a conclusão da venda dos bens teria de aguardar por uma decisão no processo posto pela mulher de Berardo, a pedir a nulidade, por ser dona de parte dos bens, enquanto herdeira.
O leilão prolongou-se até 15 de maio de 2024. O e-leilões.pt é uma plataforma desenvolvida pela Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução para a venda de bens em leilão eletrónico.
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É um processo que já leva 17 anos. Está longe de ser o
único do género, em complexidade e na insidiosa cooperação público-privada, mas
dá pela barba à Justiça.
2025.07.17 – Louro de Carvalho
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