domingo, 20 de julho de 2025

Exumação de quase 800 crianças enterradas em vala comum na Irlanda

 

Kathleen, Mary e Joseph são os nomes as primeiras exumações das 796 crianças enterradas sem sepultamento, entre 1925 e 1960, numa fossa de um lar católico, na Irlanda, que ocorreram, a 14 de julho, mais de uma década após a descoberta de sua existência – uma tarefa que vai prosseguir, para que seja feita justiça, embora fora de tempo.

Os specialistas iniciaram, oficialmente, a escavação da antiga fossa séptica do lar Santa Maria, das Irmãs do Bom Socorro, em Tuam, no condado de Galway, no Oeste do país, após o fechamento do perímetro em meados de junho. O objetivo é encontrar, analisar, identificar, se possível, e proporcionar um sepultamento digno para os restos mortais das crianças, muitas delas recém-nascidas.

As operações, realizadas com a ajuda de especialistas da Colômbia, da Espanha, do Reino Unido, do Canadá e Estados Unidos da América (EUA), devem durar dois anos. Já foram recolhidas amostras de ADN (ácido desoxirribonucleico) de cerca de 30 familiares, mas o processo continuará, nos próximos meses, para reunir o máximo de provas genéticas possível.

A luta para tirar as 796 crianças do esquecimento começou em 2014. A historiadora local Catherine Corless encontrou evidências detalhadas que comprovavam as mortes, no referido orfanato. A investigação, que chocou o país e teve repercussão internacional, levou a uma descoberta macabra: a existência de uma vala comum. “Não havia registos de sepultamento, nenhum cemitério, nenhuma estátua, nenhuma cruz, absolutamente nada”, relatou a especialista, que descreveu as suas décadas de trabalho como uma “luta sem trégua”, sem que alguém a ouvisse, como revelou à Agence France-Presse (AFP), frisando: “Eu implorei: ‘Tirem esses bebés dessas fossas, deem-lhes o enterro cristão adequado que lhes foi negado’.”

Foi, somente em 2021, que uma comissão nacional de inquérito sobre abusos, nessas casas, destacou os níveis “alarmantes” de mortalidade infantil, nessas instituições, onde, segundo a historiadora, morreram nove mil crianças.

De acordo com as investigações, cerca de 56 mil mulheres solteiras e 57 mil crianças passaram por 18 dessas casas, entre 1922 e 1998.

Naquela longa época, as mulheres grávidas que não eram casadas eram confinadas nessas casas, por ordem do Estado irlandês e da Igreja Católica, que, não raro, as administravam em conjunto. Lá, elas davam à luz, antes de serem separadas dos seus filhos, que eram, muitas vezes, entregues para adoção. “Essas crianças tiveram os seus direitos humanos básicos negados em vida, assim como as suas mães, e foram privadas de dignidade e de respeito na sua morte”, comentou Anna Corrigan, cujos dois irmãos podem ter sido enterrados em Tuam.

A instituição em causa cessou, em 1961 e as suas instalações foram demolidas, em 1972, para darem lugar a um conjunto habitacional. No entanto, a fossa séptica permaneceu intacta. A pedra de toque foi dada, em 2014, mas, só em 2022, uma lei autorizou, oficialmente, as escavações e, um ano depois, foi designada uma equipa para as realizar em Tuam. A lentidão do processo foi denunciada, em diversas ocasiões, pelas famílias das vítimas deu azo a muitos protestos e a muitas manifestações de solidariedade com a memória destas crianças inocentes.

Catherine Corless está satisfeita com esse progresso, que “nunca imaginou que aconteceria”.

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Já em março de 2014, alguns órgãos de comunicação social, por exemplo, o El País, noticiavam que uma historiadora havia denunciado que uma casa de acolhimento para mães solteiras, administrada por freiras católicas, ocultava até 800 corpos de crianças e que as escavações confirmavam existência de fossa com vários bebés num convento, na Irlanda, no século passado.
Os investigadores – que se declararam “comovidos” pelo achado” – encontraram uma estrutura subterrânea de 20 câmaras. Em, pelo menos, 17 delas acharam “quantidades significativas de restos humanos”. O exame dos restos mortais revelou que incluem desde fetos de 35 semanas até crianças de três anos de idade, falecidas no período em que as freiras geriam o abrigo.
O estabelecimento era um entre mais de uma dúzia, distribuídos por todo o país e administrados pela Igreja Católica, onde eram recolhidos órfãos e mães solteiras. Estas representavam uma mácula na reputação da Irlanda, como devota nação católica, e um problema, para alguns pais poderosos com aventuras extraconjugais. Nessas instituições as mães eram separadas dos filhos, que eram criados pelas freiras dentro da mesma unidade, à espera de que pudessem ser adotados. O governo calculava que cerca de 35 mil mães solteiras (agora, sabe-se que eram mais) passaram por algum dos centros de acolhimento administrados por ordens de religiosas católicas, desde a criação do Estado irlandês, em 1922, até os anos de 1960.
De acordo com dados oficiais, nos anos 30, 40 e 50 do século XX, a mortalidade dos filhos nascidos fora do casamento chegava a ser cinco vezes maior do que a das crianças de pais casados. O achado em referência confirma as suspeitas de que as crianças mortas no centro eram enterradas em valas comuns, sem registo. O arcebispo de Dublin disse, em 2014, que, “se algo se passou em Tuam, provavelmente terá acontecido, também, noutros lares de acolhimento de mães e crianças do país”.
A já referida historiadora local Catherine Corless, que alguns consideram amadora, foi quem chamou a atenção sobre o caso de Tuam, com um estudo que descobriu certificados de óbito de quase 800 crianças, mas com registo de enterro de somente duas. A investigação de Corless apontava que, como parece indicar a descoberta anunciada, a 3 de março de 2014, os restos jaziam no espaço ocupado por uma fossa séptica do edifício.

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A instituição era uma de várias do género que existiam no país, caraterizadas pelas condições difíceis, pelas elevadas taxas de mortalidade e pela falta de apoio às mães e aos filhos.
A escavação em curso no antigo lar Santa Maria, das Irmãs do Bom Socorro, marca mais um passo no processo de reconciliação da Irlanda com o legado de abusos em instituições geridas pela Igreja, num país que já foi maioritariamente católico.
O lar foi gerido por uma ordem de freiras católicas até ao seu encerramento, em 1961. Foi uma das muitas instituições deste género criadas em toda a Irlanda, para onde dezenas de milhares de mulheres solteiras e grávidas foram enviadas e forçadas a dar à luz os seus filhos, durante grande parte do século XX.
As freiras abrigavam mulheres que engravidavam fora do casamento e eram rejeitadas pelas famílias. Depois de darem à luz, algumas crianças viviam nos lares, mas a maioria era entregue para adoção, num sistema no qual a Igreja e o Estado colaboravam.
Em 2014, a historiadora local Catherine Corless descobriu certidões de óbito de quase 800 crianças que morreram no lar de Tuam entre 1920 (ainda antes da independência do país) e 1961, mas encontrou registos de enterro de apenas uma.
Mais tarde, os investigadores descobriram uma vala comum numa câmara de esgotos subterrânea desativada no local, contendo os restos mortais de bebés e crianças pequenas.
“É uma história e uma situação muito, muito difícil e angustiante. Temos de esperar para ver o que se vai passar, agora, como resultado da escavação”, disse o primeiro-ministro irlandês Micheal Martin, no dia 14.
Um grande inquérito sobre as casas de acolhimento de mães e bebés, na Irlanda, concluiu que cerca de nove mil crianças morreram em 18 destas instituições. As infeções respiratórias e a gastroenterite foram as principais causas.
Uma investigação posterior efetuada pelo governo revelou uma taxa de mortalidade de cerca de 15% das crianças nascidas nos lares de mães e bebés. Segundo o inquérito, 56 mil mulheres solteiras e 57 mil crianças passaram por estes lares, durante um período de 76 anos.
A última destas instituições de âmbito nacional só fechou em 1998.
As Irmãs do Bom Socorro, que dirigiam o lar de Tuam, apresentaram um “profundo pedido de desculpas” e reconheceram a sua incapacidade de “proteger a dignidade inerente” das mulheres e das crianças ao seu cuidado.
Os peritos forenses irão, agora, trabalhar para recuperar, analisar e preservar os restos mortais que serão identificados e devolvidos aos familiares, de acordo com a sua vontade. As autoridades afirmaram que os restos mortais não identificados serão enterrados com dignidade.
Espera-se que o trabalho leve dois anos para ser concluído. Peritos da Colômbia, da Espanha, do Reino Unido, do Canadá e dos EUA trabalharão em conjunto com as autoridades irlandesas.

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A este respeito, a CNN Brasil, a 14 de julho deste ano, destacava que, “no local, as mulheres eram, frequentemente separadas, à força, dos filhos”.

Alguns bebés foram realojados na Irlanda, no Reino Unido ou em lugares tão distantes como os EUA, o Canadá e a Austrália, mas centenas morreram e os seus restos mortais foram descartados. E as mães, muitas vezes, nunca souberam o que, realmente, aconteceu aos seus bebés.

Segundo a CNN Brasil, de 1922 a 1998, “a Igreja Católica e o Estado irlandês estabeleceram uma rede profundamente misógina de instituições que visavam e penalizavam as mulheres solteiras”. E isso “criou uma cultura de contenção que afetou todos os aspetos da sociedade”. É certo que “as atitudes irlandesas mudaram”, mas “a vergonha, o sigilo e o ostracismo social que o sistema criou deixaram uma cicatriz duradoura”.

Mary Margaret, a primeira filha de Maggie O’Connor, morreu em junho de 1943, com apenas seis meses, num desses locais. “Neste Mundo distorcido e autoritário, o sexo era o maior pecado para as mulheres, não para os homens”, disse Annette McKay, filha de O’Connor, à CNN Brasil, frisando: “Mulheres que tinham esse sinal visível de sexo – uma gravidez de ‘indulgência em pecado’ – eram ‘desaparecidas’ da paróquia, atrás de muros altos, no fim de uma cidade.”

Maggie O’Connor foi enviada para o lar Tuam, aos 17 anos, grávida, após ter sido estuprada pelo zelador da escola industrial onde cresceu, segundo relatou a filha dela.

No lar, mães e bebés eram separados uns dos outros. Muitas mulheres foram enviadas para as Lavanderias Magdalene, casas de trabalho administradas por católicos, onde serviam como trabalhadoras não remuneradas. Os bebés eram acolhidos ou adotados por famílias casadas, posteriormente institucionalizados em escolas industriais ou em instituições de “cuidado” para pessoas com deficiência, ou adotados ilegalmente e traficados para fora da Irlanda.

Países, como os EUA, receberam, da década de 1940 até a década de 1970, mais de duas mil crianças, segundo o Projeto Clann. Porém, muitas nunca sobreviveram à vida fora dos muros: pelo menos, nove mil bebés e crianças morreram nessas instituições, incluindo em Tuam.

O’Connor, enviada para outra escola industrial, após o nascimento de Mary Margaret, só soube que a filha havia morrido, seis meses depois, enquanto estendia roupa. “A filha do seu pecado está morta”, disseram as freiras, relatou Annette McKay, “como se não fosse nada.”

O’Connor acabou por se mudar para a Inglaterra, onde criou outros seis filhos e viveu uma vida que, à primeira vista, parecia glamorosa, disse Annette McKay. Mais tarde, descobriu que essa era a “armadura” da sua mãe, um “exterior brilhante” que a ajudava a sobreviver.

Foi o trabalho de Catherine Corless, historiadora local de Tuam, que revelou que 796 bebés morreram em Tuam, sem registos de sepultamento e que foram colocados num tanque de esgoto desativado. As autoridades, inicialmente, recusaram envolver-se com as descobertas de Corless e descartaram o seu trabalho. E, segundo a CNN Brasil, as Irmãs do Bom Socorro – as freiras que administraram o lar de 1925 a 1961 – contrataram uma empresa de consultoria que negou a existência de vala comum, alegando não haver evidências de que crianças tivessem ali sido enterradas. Todavia, Corless, as sobreviventes do lar para mães e para bebés e os seus familiares nunca deixaram de fazer campanha pelos bebés de Tuam e pelas suas mães.

Em 2015, ainda de acordo com a CNN Brasil, o governo irlandês abriu uma investigação em 14 casas para mães e para bebés e em quatro casas do condado, que encontraram “quantidades significativas” de restos mortais humanos no sítio de Tuam. O inquérito verificou um “nível alarmante de mortalidade infantil”, nas instituições, e afirmou que o Estado não emitiu nenhum alarme sobre elas, embora isso fosse “do conhecimento das autoridades locais e nacionais” e “registado em publicações oficiais”.

A CNN Brasil sustenta que, antes de 1960, as casas para mães e para bebés “não salvavam a vida de crianças ilegítimas”, que parecem ter tido reduzidas hipóteses de sobrevivência”.

Desta feita, o inquérito estatal levou a um pedido formal de desculpas do governo, em 2021, ao anúncio de um plano de reparação e a um pedido de desculpas das Irmãs do Bom Socorro.

Embora muitos familiares e sobreviventes sintam que a resposta do governo foi inadequada e que ainda não estão a ser tratados com o respeito e a dignidade que merecem, em Tuam, agora, há uma sensação geral de alívio.

A 8 de julho, parentes e sobreviventes reuniram-se no local, para ouvirem especialistas sobre os próximos passos.

“Poderia ter sido eu. Cada um de nós, que sobreviveu lá, estava a um triz de estar nas fossas sépticas”, disse a sobrevivente Teresa O’Sullivan, que nasceu no abrigo, em 1957, filha de uma mãe adolescente que lhe disse, mais tarde, que nunca parou de procurá-la, apesar de as freiras lhe dizerem que “ela havia estragado a própria vida” e que o seu filho havia sido enviado para os EUA. As duas – filha e mãe – só se reencontraram quando O’Sullivan estava na casa dos 30 anos.

Recentemente, encontrou um irmão, por parte de pai, que a apoiou, durante o início da escavação.

“Estávamos ao lado deles. Eles estavam nos quartos connosco, estavam no prédio connosco”, disse dos bebés cujos corpos acabaram na fossa séptica. “Precisamos tirá-los de lá”, bradou.

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Embora não devamos confundir algumas pujantes árvores com a floresta, temos de aceitar que o caso evidencia vergonhosa mancha em instituições da Igreja Católica, na contradição entre o que esta assume como doutrina na defesa da vida, desde a conceção até ao seu último instante (contra o aborto, contra o infanticídio, contra o homicídio e contra a eutanásia). E a Igreja deve reconhecer que falhou com estas crianças e com as suas mães, matando ou estiolando a vida e ultrajando a dignidade humana, só para defender a imagem externa de uma Igreja algo desatenta e de uma sociedade hipócrita, que parece moral, mas encobre os crimes que pratica. Em nome do bom nome de uns, destrói-se a identidade de tanta gente. E os rogos de desculpa, que estão na moda e que deviam ser comprometedores, vêm com extremo atraso e soa a oco. Que Deus perdoe!    

2025.07.20 – Louro de Carvalho

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