segunda-feira, 14 de julho de 2025

Reconhecer a Medicina como profissão de desgaste rápido

 
A Federação Nacional dos Médicos (FNAM), de acordo com declarações da sua presidente, Joana Bordalo e Sá, à Lusa, a 12 de julho, vai lançar, até ao final do mês, uma petição para a Medicina ser considerada profissão de desgaste rápido, estatuto que lhe confere algumas regalias, como a reforma antecipada sem penalização e mais dias de férias. E, depois de recolhidas as assinaturas suficientes, pretende que seja discutida na Assembleia da República (AR).
Esta foi uma das decisões tomadas na reunião do Conselho Nacional da FNAM, no dia 12, na cidade do Porto, tendo Joana Bordalo e Sá considerado, em declarações ao Jornal de Notícias (JN), que a profissão médica preenche todos os requisitos para ter o estatuto de profissão de desgaste rápido, pelo que a proposta deve ser presente à discussão na AR, o órgão competente para definir os estatuto das ordens profissionais. 
A pretensão não é nova. Também a Ordem dos Médicos (OM) já defendeu que a Medicina passe a ser considerada uma profissão de “desgaste rápido”. A proposta está contida num parecer que a OM enviou, em outubro, à AR, com propostas para atrair e fixar médicos no Serviço Nacional de Saúde (SNS). Tais propostas contemplam um plano de atracão de médicos, apoios à habitação nas zonas mais carenciadas de profissionais de saúde e uma estratégia nacional para combater o assédio e a violência laboral.
Por considerar que a atividade médica tende a ser praticada “em especiais condições de exigência, na carga horária, e de pressão”, este pedido de reconhecimento emitido pela OM (numa proposta que recupera, uma reivindicação antiga do anterior bastonário, Miguel Guimarães) visa garantir o direito dos médicos a uma “atribuição progressiva de bonificações”, no tempo de descanso, nas férias e no regime de reforma-aposentação. Na prática, os médicos passariam a poder reformar-se mais cedo e trabalhar menos horas, a partir de determinada idade.
Também os enfermeiros têm procurado enquadrar a Enfermagem naquele estatuto de profissão de desgaste rápido, tendo alguns partidos avançado com iniciativas legislativas. O tema tem estado em cima da mesa, mas sofreu alguns reveses. No início do mês, foram rejeitadas, na AR, iniciativas legislativas – do partido Pessoas-Animais-Natureza (PAN), do partido Chega, do Bloco de Esquerda (BE) e do Partido Comunista Português (PCP) –, que recomendavam ao governo a revisão do enquadramento legal das profissões de desgaste rápido.
Agora, a petição que a FNAM anunciou inscreve-se no quadro mais amplo da penosidade da profissão, tema debatido no seu Conselho Nacional.
“O Serviço Nacional de Saúde não é uma fábrica e os médicos não são peças de produtividade”, disse Joana Bordalo e Sá, vincando que o acordo coletivo de trabalho (ACT), a negociar com a tutela, deverá incluir “novas cláusulas”, como as 35 horas semanais de trabalho.
A FNAM não abdica da inclusão dos médicos na carreira, da recuperação de dias de férias e de “salários justos”.
A 1 de julho, aquela organização sindical chegou a um consenso para retomar a negociação do ACT com o Ministério da Saúde, após interrompido o diálogo, em março, tendo agendado uma reunião para o fim do mês. Para tanto, solicitou a intervenção da Direcção-Geral do Emprego e das Relações do Trabalho (DGERT) para retomar a negociação do acordo coletivo de trabalho com o Ministério da Saúde, depois de ambos se terem reunido, em 10 de março.
Na altura, a tutela negou estar a negociar com a FNAM, alegando que o que estava a decorrer era um processo de conciliação com as unidades locais de saúde (ULS) sobre a regulamentação coletiva de trabalho (RCT).
Aliás, o governo tinha assinado, a 30 de dezembro de 2024, um acordo de revalorização salarial e das carreiras médicas em 30 de dezembro de 2024, mas apenas com o Sindicato Independente dos Médicos (SIM). E a FNAM acionou os “mecanismos legais disponíveis” para garantir o cumprimento da negociação coletiva, alegando que a recusa da ministra da Saúde, Ana Paula Martins, em negociar com a estrutura constituía “uma grave violação da lei”.
Segundo a presidente da FNAM, o Ministério da Saúde já anunciou que tem intenção de negociar este acordo para os médicos em regime de funções públicas. “Vamos ver se cumprem. Se houver intransigência, a escalada de luta estará sempre em cima da mesa”, admitiu.
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O comunicado da FNAM decorrente da última sessão do Conselho Nacional, intitulado “Propostas firmes para enfrentar a crise no SNS”, explicita:
A FNAM reuniu, a 12 de julho, no Porto, o seu Conselho Nacional, para analisar a situação grave que o SNS atravessa, tendo definido também a estratégia negocial com as Entidades Públicas Empresariais da Saúde (EPES), com vista à revisão dos ACT, com a próxima reunião agendada para 28 de julho.
De acordo com o plano de ação aprovado, a FNAM levará à mesa das negociações um conjunto de propostas estruturais e inadiáveis: recuperação das 35 horas semanais, para todos os médicos, sem perda de vencimento; reintegração dos médicos internos na carreira médica; reforço da formação médica contínua e das medidas de proteção da parentalidade; transparência e justiça nos procedimentos concursais; e valorização da progressão na carreira médica.
A FNAM anunciou, ainda, o lançamento de uma petição pública para o reconhecimento do estatuto de desgaste rápido da profissão médica, um passo fundamental para o reconhecimento formal das condições exigentes e penosas do exercício da medicina no SNS.
No Conselho Nacional, foram analisados os efeitos das políticas de saúde implementadas no último ano. O Plano de Emergência e Transformação na Saúde (PETS) revelou-se propaganda sem substância, enquanto a situação no terreno se agravou, de forma visível e dramática.
O SNS está em crise: a realidade não se esconde. Neste âmbito, a FNAM destaca, com alarme, os factos seguintes:
* Encerramento de urgências obstétricas, nas regiões de Lisboa e Vale do Tejo, de Aveiro, e de Braga em regime de contingência;
* Meia centena de bebés nasceram em ambulâncias, em 2024, e já se registam 38 partos fora das maternidades, em 2025;
* Longos tempos de espera nas urgências, chegando a dezenas de horas;
* Mais de 1,6 milhões de utentes sem médico de família;
* Anúncio da fusão de delegações de saúde pública e possível transformação da Direção-Geral da Saúde (DGS) em instituto, o que poderá fragilizar, ainda mais, a estrutura do SNS.
A realidade exige respostas urgentes. E a FNAM questiona: “Até quando se insistirá em degradar o SNS? Quantas mais tragédias serão necessárias para que o primeiro-ministro, Luís Montenegro, tome as medidas que se exigem?”
Por isso, “a FNAM exige medidas estruturais, que assegurem o SNS e recuperem a confiança dos profissionais e da população”. Com efeito, o PETS foi apenas propaganda. O caos nas urgências, os partos em ambulâncias e o abandono de milhões de utentes são a realidade do SNS.
Os médicos estão exaustos, desvalorizados e em fuga. O país não pode continuar a perder quem ainda quer trabalhar no SNS.
A FNAM sustenta que as suas propostas são claras: mais médicos, mais condições e mais dignidade. Sem isso, não há futuro para o SNS. Por isso, exige uma negociação séria e consequente, não aceitando mais remendos, nem soluções, à custa dos profissionais.
“É tempo de o governo assumir responsabilidades. Não por nós, mas por todos os que dependem do SNS para viver com segurança”, clarifica, insistindo no seu compromisso com um “SNS público, digno e sustentável”
É por isso que reafirma “o seu compromisso com um SNS público, acessível e de qualidade, assente numa política de recursos humanos que valorize os médicos e demais profissionais de saúde e garanta cuidados seguros, humanizados e universais”. E é neste sentido que se enquadra a sua asserção de que “o SNS não é uma fábrica, e os médicos não são peças de produtividade”. Com efeito, segundo a FNAM, “o que está em causa é o futuro da saúde pública, em Portugal”, pelo que “é tempo de agir”.
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Toda a leitura destas asserções parece induzir que os males da Saúde estão, exclusivamente, no SNS. Ora, é verdade que o Estado investe uma fortuna na formação dos médicos (a formação médica privada é incipiente e residual) e, a seguir, os diplomados pretendem abandonar o país ou ingressar no mercado de trabalho privado em Saúde.
As careiras médicas no SNS não são atrativas, o vencimento é escasso, a progressão é difícil, as condições de trabalho são penosas. Digam-me qual é o exercício da profissão no setor do Estado cuja carreira é atraente. Contudo, há médicos que acumulam no setor público e no privado, até à exaustão (claro, regra geral, em detrimento do SNS), e não se queixam. Querem a diminuição do horário semanal, mas no SNS; querem dispensa de determinados trabalhos, a partir de uma determinada idade, mas no SNS; querem uma reforma-aposentação completa, mais cedo, mas no SNS. É caso para perguntar se querem as mesmas regalias no setor privado, deixar de trabalhar depois da reforma ou deixar o seu consultório particular.   
Depois, há muitas outras profissões de desagaste rápido. É o caso dos enfermeiros, que têm mais razão; o dos professores, para quem ninguém olha e que se degradou com o primeiro governo de José Sócrates; o das polícias e dos militares, que lá vão conseguindo pequenos benefícios; o dos mineiros e equivalentes, entre outras.
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O constitucionalista Vital Moreira, no blogue “Causa nossa”, a 13 de julho, considera esta reivindicação da FNAM (também da OM), aparentemente, só no SNS, uma “provocação sindical de baixo nível”, e pensa que “o governo devia responder com outra provocação, ou seja, responder sim, com quatro condições, sob pena de perda desse regime: (i) adesão ao regime de ‘dedicação plena’; (ii) sujeição a controlo estrito da assiduidade e da pontualidade ao serviço; (iii) submissão a níveis exigentes de desempenho profissional, em termos de serviços prestados; e (iv) incompatibilidade com a acumulação profissional com o setor privado, antes e depois da aposentação”.
Depois, duvida que “algum dos subscritores ou dos apoiantes da referida reivindicação aceitasse este repto”.
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Obviamente, acompanho a dúvida do renomado constitucionalista, fundada na experiência de quem utiliza serviços públicos e privados de Saúde. Não obstante, são de apoiar, objetivamente, as demais reivindicações da FNAM e do SIM. O SNS precisa de atrair e de reter, em regime de permanência, profissionais de saúde qualificados, para o que deve rever as condições de trabalho; revalorizar as carreiras; promover a justa remuneração dos quadros, em vez de gastar dinheiro a rodos, em tarefeiros; requalificar as instalações e otimizar os equipamentos; otimizar a rede de cuidados de Saúde; diferenciar a prestação do serviço em consonância com as condições etárias e de saúde dos profissionais; oferecer uma reforma-aposentação condigna e numa idade ainda plausível.
Por fim, é de salientar que os profissionais de saúde devem ser protegidos contra eventuais agressões do público e contra o assédio e a violência laboral; e, por outro lado, devem olhar para os utentes/doentes com olhos de humanismo e sem temerem a responsabilidade por falhas de que não tenham culpa (a oposição à lei da violência obstétrica é uma vergonha: se fôssemos a olhar, estritamente, para as evidências científicas, se calhar, nem teríamos nascido).
É óbvio que somos bem atendidos ou mal atendidos no SNS e no setor privado. Depende de quem nos parece a prestar o serviço. E há casos em que é a ambição a comandar o atendimento. Acontece, quando o objetivo principal é faturar. O utente, que não dá lucro, num sistema mercantil, tem de esperar. É, às vezes, o caso dos utentes dos subsistemas.
Têm os profissionais de saúde de deixar de nos considerar pacientes. Recorremos a um serviço de Saúde, público ou privado, para sermos tratados, não para sofrermos (paciente é o que sofre).

2025.07.14 – Louro de Carvalho


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