Remeter problemas políticos, nomeadamente, os
respeitantes à Educação, para a área estritamente privada é a negação do
serviço público e da atenção devida às pessoas.
É claro que estas asserções têm que ver com a
questão da nova Estratégia Nacional
de Educação para a Cidadania (ENEC), cuja proposta do governo está em consulta pública, com vista à sua
alegada “desideologização” ou melhor, para a introdução de outra ideologia.
A este respeito, o Expresso online publicou, a 22 de julho, um artigo da jornalista
Joana Pereira Bastos sob o título “O governo tem um grande problema com a
sexualidade e quer remeter o assunto, novamente, para o confessionário”.
O artigo fez-me recordar a leitura que,
antanho, fiz do livro “O Sexo no
Confessionário”, de Norberto Valentini e Clara di Meglio, publicado pela Editorial
Futura, em 1974. Obviamente, o livro pouco tem a ver com a educação para a
cidadania, pois o seu escopo era, através de relatos, supostamente fidedignos,
denunciar as vivências de pessoas, sobretudo, de mulheres, no confronto com as
diretrizes da Igreja Católica sobre a Moral Sexual, designadamente, no quadro
da relação sexual do casal, por si, unicamente direcionada para a
conceção.
Igualmente, em 1975, a mesma
editora publicou o livro “A Política no Confessionário”, de
Norberto Valentini, que também li e que dá, alegadamente, conta de “um
inquérito efetuado, durante 600 confissões, gravadas para conhecer a posição
atual [na década de 1970] da Igreja Católica, perante os problemas que lhe são
postos acerca da militância política, da liberdade ideológica, do divórcio e da
conciliação da fé com a luta pelo ressurgimento fascista”.
Enfim, duas questões
pertinentes – sexo e política – sobre as quais a Igreja Católica não fazia
chegar a sua doutrina clara e a sua ação pastoral, encarnada e compreensiva, ao
comum dos seus crentes, deixando que tudo fosse remetido para a casuística do
confessionário. Por outro lado, a família e a escola falharam na educação da
sexualidade, de que se fez tabu, passando os pecados em matéria sexual a ser
considerados os mais graves de todos, até mais graves do que a idolatria.
Também os partidos
políticos e a escola falharam, redondamente, em não promoverem uma larga e
aprofundada educação cívica e política, deixando que a política se encurralasse
nos diversos claustros político-partidários, a ponto de a democracia cristã e a
social-democracia se apresentarem quase como inimigas, embora ambas combatessem
o fascismo e o comunismo.
Na remissão para a confissão dos assuntos que
não se querem encarar, na discussão pública, recordo um episódio em que
participei nos anos de 1987-1989.
A Câmara Municipal da área de uma das
freguesias cuja paroquialidade estava ao meu cuidado pastoral, resolveu
retificar a estrada municipal que ligava a tal freguesia à sede do concelho. A
retificação implicava uma suposta variante ao aglomerado habitacional. Porém,
não era uma verdadeira variante, pois atravessaria uma série de terrenos
hortícolas, cada um de pequena dimensão, ocuparia uns bons metros do adro da
igreja matriz, implicaria a remoção de um templete com um cruzeiro e,
tecnicamente, desembocava na rua principal numa curva fechada, antes da igreja.
Além disso, havia outros problemas de ordem
técnica a que o projetista não atendeu, em que sobressaía a estrutura altamente
esponjosa dos respetivos terrenos.
Por motivos de zelo pelos bens da paróquia e
por solidariedade, mais tarde, não aceite, para com os proprietários pobres dos
terrenos hortícolas, meti-me na polémica, tendo conseguido o apoio do bispo da
diocese e da Junta de Freguesia.
Com o decurso do tempo, os populares que
estavam contra a localização da variante, para a qual havia duas alternativas –
uma das quais veio a ser acolhida pela Câmara Municipal, mas já com outra
composição partidária – foram retirando o apoio à contestação. Já nem com os
membros da comissão da FIP (Fábrica da Igreja Paroquial) contava, pelo que,
sempre me referia ao assunto, falava, unicamente, na qualidade de pároco da freguesia.
Eu era apontado como pretendendo uma ponte aérea (tinha de ser feita uma ponte,
porque a estrada tinha, em qualquer hipótese, de atravessar um alinha de água) –
ao que respondia que todas as pontes são aéreas, ao invés dos túneis, que são travessias
subterrâneas.
Nestes termos, solicitei uma conversa com o
presidente da Câmara Municipal e outra com um antigo vereador, supostamente
capaz de intermediar. As conversas correram bem e eram promissoras. Porém, um
dia, surgiu a notícia de que o projeto da estrada estava aprovado pela
autarquia, que tinha a comparticipação dos fundos comunitários e que a variante
seguiria como projetado inicialmente. Tive o atrevimento de escrever uma carta
ao presidente da Câmara Municipal (isto, já no verão de 1989, ano de eleições
autárquicas), a recordar-lhe a conversa havida entre nós, e salientava,
laconicamente, os problemas abordados.
Esta personalidade dissera-me que tinha as
eleições ganhas. E eu retorquia-lhe que, independentemente disso, uns 50 ou 30
cidadãos eram suficientes para criarem mal-estar político e social. Em resposta
à minha carta, o líder da autarquia, esquecendo que os problemas a que eu
aludia não eram pessoais, nem do quadro paroquial, mas políticos e económicos,
respondeu-me que a estrada seguiria, dentro em breve, pelo traçado projetado. E
acrescentou que, se eu tinha problemas com os paroquianos, que os resolvesse na
confissão.
Como os problemas políticos não se resolvem na
confissão, que é reservada aos pecados, não houve confissões sobre a matéria; a
estrada não seguiu conforme o projeto inicial; e o partido do então presidente
perdeu as eleições.
***
No seu texto, Joana Pereira Bastos dá
voz a Rosa Monteiro, ex-secretária de Estado para a Cidadania e
Igualdade e uma das autoras da ENEC ainda em vigor, a qual entende que “a
retirada do currículo dos alunos de grande parte das matérias sobre sexualidade”
representa “um retrocesso inimaginável” e uma “cedência às forças conservadoras
radicais”, que estão a fazer uma “cruzada moral contra a escola”.
A ex-governante, sustentando que o “governo tem um
grande problema com a sexualidade e quer remeter o assunto novamente para o
confessionário”, classifica, em entrevista ao Expresso, a proposta do Ministério da Educação e da Ciência (MECI)
como “um retrocesso inimaginável”.
Rosa Monteiro acusa o executivo de fazer desaparecer
das novas aprendizagens essenciais da Cidadania e Desenvolvimento a sexualidade
e a saúde sexual reprodutiva, conteúdos que tinham de ser abordados em, “pelo
menos, dois ciclos do Ensino Básico”.
Agora, as matérias conexas com a orientação sexual e com
a identidade de género, “que geraram grande contestação, nos últimos anos,
junto da direita mais conservadora”, serão excluídas do currículo. E, a este
respeito, o ministro da Educação alega que a questão da identidade de género é
“uma matéria de grande complexidade” e que, “muitas vezes, as pessoas não estão
sequer preparadas para lecionar”.
O governante tem o inexplicável atrevimento de duvidar
da capacidade docente dos professores que representam o Estado e desempenham um
múnus crucial na vida das pessoas, em cooperação com as famílias. Um ministro
que não acredita na escola e nas instituições do ensino superior que papel
desempenha na governação do país?
Por mim, não creio que o professor ou a professora
imponha qualquer ideologia ou orientação, quando tenta ajudar os alunos a compreender,
a respeitar e a aceitar “a diversidade na sexualidade e na orientação sexual”,
ao ensinar que “a identidade de género é a experiência interna e individual de
género profundamente sentida por cada pessoa que pode, ou não, corresponder às
expectativas sociais” e que os jovens não devem ser limitados no modo como se
expressam a este nível.
E Rosa Monteiro defende: “As questões da identidade de
género são muito sérias, estão consagradas na legislação e têm de ser
devidamente tratadas. São questões que os alunos e as alunas, todos os dias,
trazem para as salas de aula, querendo saber mais sobre o assunto.”
Segundo a ex-governante, “a área da Educação é, em todo o Mundo, o
principal bode expiatório dos movimentos reacionários, conservadores, de
direita radical e populista”, que fazem a “cruzada moral contra a escola”, por
esta “ser um baluarte da emancipação das pessoas”.
O governo esquece o esforço que vem sendo feito, ao
longo do tempo, pelo Estado, no que foi antecipado pelo pioneirismo de uma
instituição da Igreja Católica, a Sociedade de São Francisco de Sales, cujos membros
são conhecidos por Salesianos de Dom
Bosco, que possuem escolas e um editora. E Rosa Monteiro lamenta os ultraconservadores não
queiram “a formação de cidadãos esclarecidos que pensem pelas suas próprias
cabeças e que não sigam toda a desinformação que veem nas redes sociais”, o que
leva o governo a “promover a deseducação cívica”.
***
Não, a educação cívica não se remete para o
confessionário (embora este possa ter uma palavra de orientação e de
reorientação, se o penitente a solicitar). A educação para a cidadania
realiza-se, em privado, na família e, enquanto serviço público na escola, como
se faz, em determinadas matérias, no clube, na associação cultural e na
consulta médica ou psicológica.
No dia 21, à tarde, questionado pelos jornalistas
sobre a nova ENEC, Fernando Alexandre afirmou que é “uma leitura apressada” deduzir
que esta matéria desaparecerá do currículo e garantiu que, após a consulta pública, “em que vamos ouvir os
pais, as famílias, as escolas, a sociedade”, se volta a falar. No
entanto, para Rosa Monteiro, não é casual o facto de o ministro “dar a entender
uma coisa e fazer outra”. Antes corresponde a uma tentativa “intencional” do
executivo de “criar um alarido, para esconder insuficiências gravíssimas do governo”,
nomeadamente, em áreas, como a Saúde e a Habitação. “Está a servir para tapar o
sol com a peneira”, considera a ex-governante. Ou – digo eu – tenta distrair os
cidadãos dos graves problemas do país e disfarçar a sua incapacidade de
governação para lá da propaganda.
A ex-secretária de Estado espera que possa haver uma
“reponderação” da parte do MECI, mas entende que esta consulta pública, de tão
breve horizonte temporal, “é uma vergonha” e não passa de “um simulacro de
consulta”, pois decorre numa altura em que “a comunidade educativa está a
finalizar o ano letivo e em que as próprias famílias estão desfocadas” do tema.
A também socióloga refere que “as forças conservadoras
radicais” tentaram “criar um alarme social, em torno do que estava a ser
lecionado nas escolas, ao nível desta disciplina”, sem terem sequer ouvido “os
estabelecimentos de ensino e os professores”. E releva que a ENEC em vigor “foi
um trabalho coordenado entre o Ministério da Educação e a tutela da Cidadania e
da Igualdade”, tendo envolvido “a participação de múltiplas entidades”, “o que
é “um garante de uma visão mais ampla e sustentada” destas matérias.
Todavia, a
ex-governante reconhecendo que havia “algumas dificuldades na implementação da
disciplina”, nomeadamente, “pela ausência de orientações precisas sobre os
conteúdos a abordar, em que anos e de que forma”, admite que “era
preciso consolidar orientações e fornecer mais estruturação dos conteúdos aos
docentes e às escolas”, bem como “reforçar o tempo da disciplina”, visto que “continuam a existir
relatos de jovens que dizem que a disciplina de Cidadania era usada pelos professores
sobretudo para falar sobre assuntos disciplinares”. É a tentação do/a diretor/a
de turma, a quem a disciplina, por norma, é confiada.
Não obstante, apesar de defender a necessidade de ajustes,
Rosa Monteiro ressalva que “a consolidação de uma reforma exige tempo” e que,
desde a aprovação da atual estratégia, as escolas passaram pela pandemia de
covid-19, “um período altamente disruptivo em que emergiram, com nova
intensidade, problemas a que tiveram de dar resposta”. “Isto carece do seu
tempo e não podemos estar sempre a destruir tudo o que é criado para a
educação”, concluiu.
***
Todos os titulares de pastas governativas querem
deixar a sua marca, especialmente, na área da Educação. Alguns, como Roberto
Carneiro, procederam a uma reforma do Sistema Educativo; outros, como Maria de
Lurdes Rodrigues, produziram um verdadeiro terramoto; e Fernando Alexandre
arrisca ficar na História como o servidor da direita radical, ao nível da deseducação
cívica, no contexto de um governo que se atreveu a conceder o prazo de um dia
uma entidade pública, a fim de que ela desse parecer sobre propostas de lei.
Aí, o ministro da Educação, Ciência e Inovação, protagoniza um progresso
considerável – 11 dias, uma eternidade. Não é tão crente como o governo no seu
todo, que pensa que, aos olhos de Deus, um dia vale por mil.
2025.07.22 – Louro de Carvalho
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