segunda-feira, 29 de setembro de 2025

Se os cristãos “lessem” a Bíblia, as desigualdades ficariam esbatidas

 

Os textos litúrgicos do 26.º domingo do Tempo Comum no Ano C deviam interpelar-nos sobre o modo como entendemos que Deus vê as desigualdades gritantes que fazem sofrer tantos milhões dos seus filhos, a par dos que apodrecem instalados numa vida de bem-estar, insensíveis e indiferentes à sorte dos irmãos. Todavia, a maior parte dos cristãos não lê a Bíblia ou lê-a em diagonal. E, se ouve a proclamação dos seus textos, percebe-a como um ritual ou pensa que os males eram do outro tempo ou, ainda, dedica-lhes a natural dose de desatenção.
Ora, o desígnio de Deus para o Mundo é avesso à injustiça, à exploração, à apropriação, por parte de alguns, dos bens que pertencem a todos. Deus quer, para todos os seus filhos, uma vida digna, plena e feliz. Por outras palavras, o destino dos bens da Terra é universal, sendo que a sua apropriação deve contemplar, antes de mais, o bem-estar de todos; e o aumento da apropriação é instrumental, ou seja, visa o aumento da produção de riqueza, para obviar, ulteriormente, à equânime distribuição. Isto não é comunismo, mas cristianismo puro. E foi o desrespeito por este quesito humano e cristão fundamental que deu azo a que a bandeira da solidariedade e da fraternidade fosse capturada, historicamente, por outrem.

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O profeta Amós (Am 6,1a.4-7) denuncia, violentamente, o egoísmo dos ricos e poderosos, agarrados à vida de luxo e esbanjamento, indiferentes à sorte dos pequenos e dos pobres; e adverte que Deus não suporta uma situação que contrasta com o projeto que sonhou para as pessoas. “As pessoas, primeiro”, não é um slogan do século XXI, mas de tempos imemoriais. Se Israel insistir em continuar nesse caminho, sofrerá as consequências das escolhas egoístas.
Na denúncia profética de Amós, os que se encontram às portas da morte, por causa dos seus erros, são a gente rica de Jerusalém (“ai dos que vivem comodamente em Sião”) e da Samaria (“ai dos que se sentem tranquilos no monte da Samaria”), que vive, comodamente, em palácios, com vida de indolência e de luxo. O profeta dá pormenores: “deitados em leitos de marfim, estendidos nos seus divãs, comem os cordeiros do rebanho e os vitelos do estábulo; improvisam ao som da lira e cantam, como David, as suas próprias melodias; bebem o vinho em grandes taças e perfumam-se com finos unguentos”.
Obviamente, não é mau viver bem e “aproveitar a vida”. Porém, Deus condena este estilo de vida. E são duas as razões basilares. A primeira, embora não formulada, explicitamente, no trecho em apreço, está sempre presente na sua denúncia profética. Todo este luxo e esbanjamento resultam da exploração dos mais pobres e das rapinas e das prepotências cometidas contra os fracos. Os mecanismos de injustiça que a sociedade israelita criou e que se traduz na exploração dos pobres, subverte, completamente, o desígnio de Deus para o seu Povo e atenta, gravemente, contra os compromissos que Israel assumiu, no âmbito da Aliança. A segunda razão é que ninguém tem o direito de viver uma vida cómoda e confortável, sem se preocupar com a miséria e o sofrimento que afligem os seus irmãos. A indiferença, ante a sorte dos pequenos, dos desprezados, dos injustiçados, dos desfavorecidos, é um pecado que Deus não ignora. Com a veemência e com a integridade de um homem do deserto, Amós anuncia que Deus não aceita ser cúmplice dos que mantêm um elevado nível de vida, à custa do sangue e das lágrimas dos pobres. Por isso, o castigo chegará em forma de exílio numa terra estrangeira. O profeta refere-se à futura queda da Samaria nas mãos das tropas assírias de Salamanasar V, em 721 a.C., e à partida da classe dirigente, indolente e egoísta, para o cativeiro na Assíria.

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O Evangelho (Lc 16,19-31) oferece-nos a parábola do rico e do pobre Lázaro, para nos dizer que é má opção assentar vida no dinheiro, no bem-estar, no conforto, nos interesses egoístas. Quem goza a vida, indiferente ao sofrimento dos irmãos, falha o sentido da existência. Há de perceber, quando fizer as contas finais, que a sua vida não valeu para nada.
A parábola em causa gravita em torno de duas figuras contrastantes: o rico não identificado (entre nós, os ricos têm nome pomposo) e um pobre chamado Lázaro (o nome significa “Deus ajuda”) (entre nós, os pobres nem a um nome têm direito ou damos-lhes nomes pejorativos).
O rico exibe os traços caraterizadores da classe alta endinheirada, que residia em Tiberíades, em Séforis ou em Jerusalém. Vestia-se de púrpura e de linho, tecidos valiosos reservados a gente rica. A púrpura designava a cor da tinta obtida a partir da secreção de algumas espécies de moluscos, usada para tingir os tecidos; o seu alto custo tornava-a acessível apenas a gente com muitas posses. O linho, usado para as roupas interiores, era importado do Egito. Além disso, o rico “banqueteava-se, esplendidamente todos os dias”, um insólito em região onde a maior parte da população tinha dificuldade em assegurar o pão de cada dia. Não se diz se o homem era bom ou mau, se frequentava ou não o Templo, se tratava bem ou mal os empregados. Sublinha-se a sua indiferença e insensibilidade para com o vizinho que jazia à sua porta.
O pobre Lázaro, “jazia junto do portão do rico”. Não se vestia de roupas finas, mas de andrajos e “de chagas”. Provavelmente, a enfermidade impedia-o de se mover. O portão junto do qual jazia era a entrada da magnífica casa do rico. Tinha fome. Ficaria feliz, se pudesse comer os pedaços de pão que se utilizavam para limpar as mãos e que, em seguida, eram atirados para debaixo da mesa, a fim de serem comidos pelos cães domésticos.
Não se diz que o rico alguma vez tenha dado qualquer atenção ao pobre. Aparentemente, o rico, vivia ocupado em disfrutar do seu bem-estar, afastado do que se passava fora do portão. Os únicos que davam atenção ao pobre Lázaro eram os cães que vinham lamber-lhe as feridas. Lázaro vivia entregue à sua triste sorte, no lodaçal da indiferença generalizada.
Entretanto, o cenário muda e passamos a um segundo ato, num tempo subsequente à morte dos dois. Lázaro, logo após a sua morte, “foi levado pelos anjos para o seio de Abraão” (o “seio de Abraão” era o lugar de honra na festa final presidida por Abraão, o banquete onde, segundo os judeus, os eleitos se juntariam aos patriarcas e aos profetas). Ou seja, Lázaro foi acolhido num lugar delicioso, onde era devidamente considerado e onde não experimentava as carências que tinha experimentado, enquanto era vivo. O rico, ao invés, foi para o “Hades”, termo grego que designa o mundo subterrâneo, ou seja, um lugar de tormentos, onde o bem-estar de que o rico desfrutara não existia. E, para compor o cenário, fala-se de “chamas” que atormentam o rico e que lhe provocam uma sede terrível. A imagem é consonante com a tradição judaica.
A narrativa lucana situa os dois lugares à vista um do outro. O rico, atormentado pela sede, pede ao “pai” Abraão que lhe mande Lázaro, com o dedo humedecido em água, para lhe refrescar a língua. O rico que, em vida, tinha ignorado completamente o pobre Lázaro, já o “vê” e o integra no seu horizonte vital. Porém, Abraão, sem renegar o rico (chama-lhe “filho”), recusa a sua pretensão, pois há “um abismo” que divide o mundo de Lázaro do mundo do rico. E esse “abismo” foi cavado pelo rico, quando passou, em vida, indiferente ao sofrimento do pobre. É enquanto vivemos que os “abismos” que nos separam dos irmãos devem ser eliminados.
O rico que, agora, verifica a vanidade da sua existência de bem-estar, de comodismo e de indiferença aos irmãos, faz outro pedido: que Lázaro seja enviado aos seus irmãos, também eles ricos, insensatos e indiferentes ao sofrimento dos pobres, para que os avise sobre o sem sentido da existência construída nesses moldes. Todavia, Abraão recusa. Recorda-lhe que a Palavra de Deus (Moisés e os Profetas”) é clara. Quem quiser, escuta-a e constrói a vida a partir dela. Um aviso mais interpelante – como um recado trazido à terra por um morto – será inútil para os que têm o coração fechado aos desafios que a Palavra de Deus oferece.
Apesar das imagens usadas, a parábola não versa o que nos espera na vida futura, mas a forma como devemos viver, enquanto caminhamos na Terra, para darmos significado à vida. É uma catequese que nos devia atingir a consciência e o coração, fazendo-nos pensar sobre o sentido da existência. Lembra-nos que os bens que Deus nos confia pertencem a todos e devem ser partilhados com todos os irmãos. Quem se apossa desses bens e os usa apenas em benefício próprio subverte o projeto de Deus. Quem usa os bens para ter vida luxuosa e sem cuidados, esquecendo as necessidades dos outros, defrauda os irmãos que vivem na miséria.
Não somos donos dos bens, mesmo que adquiridos de forma legítima; somos “administradores” encarregados de fazer chegar a todos os bens que Deus põe à disposição dos seus filhos. Esquecer isto é viver de forma egoísta e estar destinado aos “tormentos”. A indiferença à sorte dos irmãos significa o falhanço completo da nossa vida. Somos responsáveis uns pelos outros e somos chamados à comunhão. Se nos instalamos em esquemas de egoísmo e de autossuficiência, teremos falhado completamente o sentido da nossa existência. Por isso, devemos deixar-nos guiar pela Palavra de Deus e construir a nossa vida de acordo com as suas indicações. Se, distraídos pelo bem-estar e pelo comodismo, ignorarmos os desafios de Deus, construímos uma vida vazia, sem sentido, que não nos realiza. Enfim, não podemos ignorar ou subvalorizar a função social da propriedade privada.

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A segunda leitura (1Tm 6,11-16) traça o perfil do “homem de Deus”, que está em total contraste com o homem egoísta, apegado aos bens materiais, ambicioso e injusto de que se falou acima. O “homem de Deus” é aquele que, correspondendo aos compromissos que assumiu no batismo, se torna sinal vivo de Deus no meio dos seus irmãos.
A Carta, dirigindo-se a Timóteo, exorta-o a ser uma referência para as comunidades cristãs que lhe foram confiadas. Pela entrega a Cristo, Timóteo é um “homem de Deus”; e, como tal, deve cultivar “a justiça e a piedade, a fé e a caridade, a perseverança e a mansidão”. A sua vida deve estar ancorada na fé e no amor aos irmãos. Na concretização da missão apostólica que lhe foi confiada, Timóteo deve combater “o bom combate da fé”, enfrentando e superando todas as dificuldades. É um combate que vale a pena travar, pois o prémio é aliciante: a vida eterna. Aliás, foi esse o compromisso que Timóteo assumiu, quando, “na presença de muitas testemunhas”, proclamou a sua bela profissão de fé em Jesus.
O autor da Carta reforça a recomendação a Timóteo, com o testemunho que Jesus, como Messias e portador da verdade, deu ante o procurador romano Pôncio Pilatos. Do mesmo modo, Timóteo deve guardar “o mandamento” que recebeu de Paulo, sem o adulterar, nem deturpar, “até à aparição de Nosso Senhor Jesus Cristo”. Esse mandamento é o Evangelho.
O texto termina com um extrato de um hino litúrgico, que refere Deus como “o venturoso e único soberano, o Rei dos reis e Senhor dos senhores, o único que possui a imortalidade e habita uma luz inacessível, aquele que nenhum homem viu nem pode ver”. É uma solene doxologia que provém do repertório das orações usadas nas sinagogas judaicas do Mundo grego. O autor da Carta, ao referir-se a Deus com estes “títulos”, polemiza contra o culto aos falsos deuses e denuncia a vanidade dos títulos atribuídos no Mundo romano a reis e a imperadores. 

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Disse Leão XIV, na Missa do Jubileu dos Catequistas, que “as palavras de Jesus nos falam de como Deus olha para o Mundo, em todos os tempos e lugares”. No Evangelho, os seus olhos observam um pobre e um rico. Um morre de fome; e o outro banqueteia-se diante dele. Um ostenta vestes; e o outro, as chagas que os cães lambiam. O Senhor vê o coração dos homens e, através dos seus olhos, nós reconhecemos um indigente e um indiferente. Lázaro é esquecido por quem está à sua frente. Ao invés, Deus está perto dele e lembra-se do seu nome. Não tem nome, porém, o homem que vive na abundância, porque se perde a si mesmo, esquecido do próximo.
Sustenta o Papa que a parábola “é muito atual”, visto que, às portas da opulência, hoje, jaz a miséria de povos inteiros, atormentados pela guerra e pela exploração. “Quantos Lázaros morrem diante da sofreguidão que esquece a justiça, do lucro que espezinha a caridade, da riqueza cega diante da dor dos miseráveis!”, considera o Santo Padre. Todavia, os sofrimentos de Lázaro têm um fim. As suas dores terminam, como terminam os festins do rico, e Deus faz justiça a ambos.
“Sem se cansar, a Igreja anuncia esta palavra do Senhor, para que os nossos corações se convertam”, lembra o Sumo Pontífice, salientando as palavras do Papa Francisco que realçam o facto de Deus redimir o Mundo de todo o mal, dando a vida pela nossa salvação, sendo a sua ação “o início da nossa missão, porque nos convida a darmo-nos a nós mesmos pelo bem de todos”. Ora, como dizia Francisco aos catequistas, “este centro à volta do qual tudo gira, este coração pulsante que a tudo dá vida é o anúncio pascal, o primeiro anúncio”, o de que “o Senhor Jesus ressuscitou”, pois, “o Senhor Jesus ama-te, por ti deu a sua vida; ressuscitado e vivo, está ao teu lado e interessa-Se por ti todos os dias”. Na ótica do Papa Leão, estas palavras fazem-nos refletir no diálogo entre o homem rico e Abraão – uma súplica do rico para salvar os seus irmãos e que, para nós, constitui um desafio.
O rico afirma: “Se algum dos mortos for ter com eles, hão de arrepender-se.” Porém, Abraão sustenta que, “e não dão ouvidos a Moisés e aos Profetas, tampouco se deixarão convencer, se alguém ressuscitar de entre os mortos”, mas houve um que ressuscitou dos mortos, Jesus Cristo. Assim, as palavras da Escritura despertam a nossa consciência. Escutar Moisés e os Profetas significa recordar os mandamentos e as promessas de Deus, cuja providência nunca abandona ninguém. O Evangelho garante que a vida de todos pode mudar, porque Cristo ressuscitou dos mortos. “Este acontecimento é a verdade que nos salva: por isso, deve ser conhecida e anunciada. […] Deve ser amada: é este amor que nos leva a compreender o Evangelho, porque nos transforma, abrindo o coração à palavra de Deus e ao rosto do próximo”, sentencia Leão XIV.
E o bispo de Roma lembra que “ninguém dá o que não tem” e que, se o rico tivesse caridade para com Lázaro, teria feito o bem ao pobre e a si mesmo. Deus tê-lo-ia salvado de todo o tormento: foi o apego às riquezas mundanas que lhe tirou a esperança do bem verdadeiro e eterno. Ora, quando nós somos tentados pela ganância e pela indiferença, os muitos Lázaros de hoje recordam-nos a palavra de Jesus, tornando-se uma ainda mais eficaz a catequese deste Jubileu, que é tempo de conversão e de perdão, de empenho pela justiça e de busca sincera da paz.
É preciso ouvir o clamor dos pobres e atendê-lo!

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Se tivermos o coração aberto aos irmãos, podemos cantar como o Salmista e com o apóstolo:

 “Ó minha alma, louva o Senhor.”

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“O Senhor faz justiça aos oprimidos, / dá pão aos que têm fome / e a liberdade aos cativos.
“O Senhor ilumina os olhos dos cegos, / o Senhor levanta os abatidos, / o Senhor ama os justos.
“O Senhor protege os peregrinos, / ampara o órfão e a viúva / e entrava o caminho aos pecadores.
“O Senhor reina eternamente. / O teu Deus, ó Sião, / é Rei por todas as gerações.”

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  “Aleluia. Aleluia. Jesus Cristo, sendo rico, fez-Se pobre, para nos enriquecer na sua pobreza.”

                                                                                                               2025.09.28 – Louro de Carvalho

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