A
liturgia do 25.º domingo do Tempo Comum no Ano C leva-nos a questionar-nos
sobre que valores escolhemos para basearem o nosso plano de vida e sobre que escolhas
temos de fazer para que a nossa vida não seja desperdiçada. E, desde logo, sugere
que escolhamos os valores duradouros e eternos, os valores do Reino, os valores
de Deus.
***
A primeira
leitura (Am 8,4-7) apresenta-nos a palavra de Amós, o profeta da
justiça social, que se dirige aos comerciantes sem escrúpulos, apostados em
“espezinhar os pobres” e em “eliminar os humildes da Terra”, avisando: “Deus
não esquecerá nenhuma das vossas obras.” A injustiça, a exploração dos pobres,
a humilhação dos mais fracos, a subversão da verdade, a escravização dos
irmãos, são a subversão completa do desígnio de Deus para o Mundo dos homens. Os
prevaricadores terão de prestar contas a Deus por essas opções.
O
profeta dirige-se aos que “espezinham o pobre” e querem “eliminar os humildes
da terra”. O contexto dá a entender que Amós se refere a comerciantes sem
escrúpulos, dominados pela ganância, que praticam toda a sorte de injustiças e
ilegalidades e função do lucro.
O
profeta começa por referir-se à hipocrisia religiosa dessa gente: no sábado e
noutras festas (por exemplo, na “lua nova”, de todos os meses), interrompem os
negócios, como a Lei ordena, mas aguardam, com enorme impaciência, o final do
dia festivo, para abrirem, novamente, os seus negócios e para retomarem as suas
especulações imorais. Depois, sem quaisquer rodeios, Amós denuncia o procedimento
desses comerciantes: roubam os clientes, usando balanças, medidas e pesos
falseados; vendem os pobres como escravos, muitas vezes, por causa de mesquinhas
dívidas; pagam aos trabalhadores salários miseráveis; aldrabam a qualidade dos
produtos, misturando as cascas com o trigo. É um quadro, duro, mas realista, de
uma sociedade doente, que se está a destruir com a obsessão do dinheiro e do
lucro.
O
profeta da justiça anuncia que Deus não está disposto a esquecer que vê tudo o
que está a acontecer, lesando os mais pobres e frágeis da sociedade. Com efeito,
a injustiça e a exploração do pobre constituem grosseira violação dos
compromissos de Israel, no âmbito da Aliança. Deus não permite que a ambição de
alguns condene muitos todos os outros filhos à vida de sofrimento e de miséria.
Crime contra os pobres é crime contra Deus. Por isso, Deus intervirá para
acabar com a impunidade dos que fomentam a exploração e a injustiça. A fórmula
solene de juramento (“o Senhor jurou pela glória de Jacob”) exprime o caráter
irrevogável da decisão divina.
***
No Evangelho
(Lc 16,1-13), Jesus conta a parábola do administrador astuto, que
percebeu quais os valores a adotar. Chegado a uma encruzilhada da vida,
prescindiu do lucro precário, para garantir recompensa consistente. Jesus avisa
os discípulos para fazerem o mesmo, pois a aposta nos bens materiais não será,
segundo Jesus, aposta que dê pleno sentido à vida do homem.
Enquanto
caminha com os discípulos rumo a Jerusalém, Jesus prepara-os para serem
testemunhas do Reino de Deus. Sob a orientação de Jesus, os discípulos vão-se despindo,
progressivamente, da lógica egoísta, dos valores fúteis, dos sonhos de grandeza.
À medida que caminham com Jesus, vão aprendendo a abraçar a lógica e os valores
do Reino de Deus.
Lucas
não indica em que momento do caminho para Jerusalém ocorreu esta conversa,
pois, mais do que situar geograficamente os acontecimentos, está interessado em
sentar-nos aos pés de Jesus a escutar a sua instrução que, desta vez, incide
sobre o modo de lidar com os bens materiais.
O
trecho em apreço consta de duas partes. Na primeira (vv. 1-9), temos a
parábola do administrador sagaz, que administra, de forma peculiar, os bens de
um homem rico; na segunda (vv. 10-13), temos um conjunto de ditos de
Jesus sobre os bens materiais. É provável que esses ditos tenham aparecido em
contextos diversos, não vinculados a esta parábola. Contudo, Lucas achou que
poderiam ser um bom comentário à temática abordada na parábola e enquadrou-os
nela. Tanto a parábola como estes ditos sobre a riqueza são exclusivos de
Lucas.
No
centro da parábola estão um proprietário rico e o homem que ele encarregou de
administrar os seus numerosos bens (o “oikónomos”). A figura do administrador
era, à época, frequente. Em geral, era um servo ligado à família, um “filho da
casa” (“ben bayit”) a quem o chefe de família confiava a gestão dos bens. Tinha
autoridade para fechar negócios em nome do seu senhor.
Contudo,
o administrador da parábola foi acusado de gerir mal os bens do seu amo. Não se
diz se a acusação era verdadeira ou infundada, mas apenas que o proprietário
informou o administrador dos rumores que corriam e solicitou a entrega dos
livros de gestão que ele tinha na sua posse. O administrador não se preocupou
em defender-se, pois entendeu que não havia solução e que o seu trabalho
naquela casa tinha terminado.
Sem
meios próprios de subsistência, só viu duas possibilidades: trabalhar como
jornaleiro para um qualquer dono de terras, ou dedicar-se à mendicidade. Porém,
sendo um homem instruído, não habituado ao trabalho manual, não subsistiria,
cavando a terra de sol a sol; e, sendo um homem habituado a um certo estilo de
vida, não se sentiria bem a mendigar.
Não
obstante, logo encontrou uma solução que lhe evitaria tornar-se um “sem abrigo”.
Antes de entregar ao proprietário os registos dos seus atos de gestão, chamou
os devedores e reduziu-lhes os montantes em dívida. A um que devia “cem bátos”
de azeite (uns 3300 litros), reduziu-lhe o débito para “cinquenta bátos” (1650
litros); a outro que devia “cem koros” de trigo (40 mil quilos), reduziu-lhe o
débito para “oitenta baths” (32 mil quilos). Procurava assegurar, assim, a
amizade dos parceiros de negócios, a fim de que eles, mais tarde, por gratidão,
o acolhessem nas suas casas ou lhe oferecessem um trabalho convenientemente
remunerado. Num remate invulgar, o rico proprietário “elogiou o administrador
desonesto, por ter procedido com esperteza”
A
parábola deixa no ar algumas interrogações: “Como justificar o procedimento
deste administrador, que assegura o seu futuro à custa dos bens do seu senhor?
Porque é que o senhor, prejudicado nos seus interesses, não tem uma palavra de
reprovação ao inteirar-se do prejuízo recebido? Como pode Jesus dar como
exemplo aos discípulos a duvidosa “engenharia financeira” do administrador?
Vários
comentadores explicam o contexto e o enquadramento da parábola a partir das
leis e costumes na Palestina ao tempo de Jesus. O administrador de uma
propriedade atuava em nome e em lugar do seu senhor, mas não recebia deste
remuneração pelo trabalho feito. O pagamento desse trabalho ficava a cargo dos
devedores. O administrador fornecia um determinado número de bens e, na altura
de saldar as contas, o devedor deveria entregar uma quantidade bastante
superior à que devia ao patrão. A diferença era a comissão do administrador. Segundo
esta interpretação, o que o administrador da parábola fez foi renunciar à
comissão que lhe era devida, a fim de assegurar a gratidão dos parceiros.
Renunciou a um lucro imediato, para ganhar créditos para o futuro. Cônscio de
que os bens materiais têm um valor relativo, trocou-os por outros valores mais
duradouros: a amizade, a gratidão, o reconhecimento. O administrador da
parábola, independentemente da sua inocência ou culpabilidade nos atos de
gestão, revelou decisão, inteligência, perspicácia, capacidade de ler os
acontecimentos e de tomar as decisões adequadas para salvaguardar o que era um
bem maior.
Jesus
concluiu a narrativa convidando os discípulos a serem tão hábeis como este
administrador: usar os bens deste Mundo, não como um fim, mas para conseguir
algo mais importante e mais duradouro. Na lógica de Jesus, este bem maior é o
Reino de Deus. Noutra ocasião, Jesus falou do Reino de Deus como o tesouro
escondido num campo pelo qual valia a pena vender tudo, ou como a pérola de
grande valor, pela qual valia a pena prescindir de tudo o resto (cf Mt
13,44-46). Os discípulos de Jesus devem ser espertos e capazes de deixar tudo
para apostar no Reino de Deus. É essa a opção que lhes garante vida verdadeira
e definitiva.
Na
segunda parte, Lucas apresenta “sentenças” de Jesus sobre o uso dos bens
materiais. Os bens que Deus põe à nossa disposição não são para nosso uso
exclusivo. Somos, apenas, administradores dos dons que Deus os coloca nas
nossas mãos, mas que pertencem a todos os outros filhos de Deus. Se formos bons
administradores desses dons, Deus confiar-nos-á valores mais importantes; e, se
partilharmos esses dons com os nossos irmãos necessitados, seremos dignos de
integrar a comunidade do Reino de Deus.
A
instrução termina com um aviso sobre a incompatibilidade entre o mundo do
dinheiro e o mundo de Deus. A obsessão pelo dinheiro é uma escravidão. Leva-nos
a esquecer Deus e a viver indiferentes à sorte dos irmãos. A febre do “ter”
afunda-nos num Mundo de egoísmo, de interesses mesquinhos, de exploração das
pessoas, de ambição desmedida. Ao invés, o Mundo de Deus assenta na lógica de
solidariedade, de fraternidade, de partilha, de comunhão, de amor
incondicional. São dois Mundos inconciliáveis. Temos de escolher um dos lados;
temos de perceber em qual destes mundos está a vida verdadeira.
O
desafio de Amós e o desafio de Jesus são extensivos aos discípulos de todos os
tempos e de todos os lugares. O lucro só é legítimo, se for para acautelar o
futuro pessoal, familiar e de empresa e para haver mais para socorrer mais,
sobretudo, os mais carenciados.
***
Na segunda
leitura (1Tm 2,1-8), o autor da primeira Carta a Timóteo insta os
crentes a sentirem-se irmãos de todos, sem exceção. Temos por Pai o mesmo Deus,
todos fomos redimidos pelo mesmo Cristo Jesus. Todos fazemos parte de uma única
família; as dores e esperanças dos irmãos dizem-nos respeito; somos chamados à
fraternidade e à comunhão. Por isso, a solidariedade de uns com os outros deve
transparecer no diálogo com Deus, na oração.
Quando
a comunidade cristã se reúne para rezar, deve pedir a Deus por todas as
pessoas, mas, em especial, pelos que estão investidos em autoridade: deles
depende o bem-estar social e a paz, condições necessárias para que os cristãos
possam viver com tranquilidade, na fidelidade à fé. Não importa se as
autoridades são pagãs: o que importa é que Deus inspire os que exercem o
serviço da autoridade, para que toda a comunidade seja beneficiária da ação deles.
Aliás,
a oração dos cristãos deve ser universal, pois é universal a salvação que Deus
oferece. Todos – judeus e gregos, escravos e livres, homens e mulheres, maus e
bons – são convidados por Deus a integrar a comunidade da salvação, por duas razões:
a unicidade de Deus, criador de todos, e a mediação universal de Cristo,
concretizada em favor de todos, sem exceção.
A
propósito, o autor da carta insere uma fórmula que parece reproduzir uma
confissão de fé, em uso na comunidade primitiva: há um só Deus, e um só
mediador (Cristo) que Se entregou a Si mesmo à morte, a fim de obter a salvação
para todos.
Dando-Se
em redenção por todos, Cristo testemunhou o amor de Deus por todos os seus
filhos. E Paulo, sente-se escolhido por Deus para levar a todos os homens esse
testemunho que Jesus deu.
O
texto termina com o apelo a que a oração universal se faça em todo o lugar onde
o Evangelho é anunciado, “erguendo para o Céu as mãos santas, sem ira nem
contenda”. Esta última indicação alude à condição necessária, segundo Jesus,
para rezar: estar em paz com todos, estar verdadeiramente reconciliado com os
irmãos (“se fores apresentar uma oferta sobre o altar e te recordares de que o
teu irmão tem algo contra ti, deixa lá a tua oferta diante do altar e vai,
primeiro, reconciliar-te com o teu irmão; depois volta, para apresentar a tua
oferta” – Mt 5,23-24).
***
Em
resposta à Palavra de Deus é de reagir cantando Palavra de Deus:
“Louvai
o Senhor, que levanta os fracos.”
“Louvai,
servos do Senhor, / louvai o nome do Senhor. / Bendito seja o nome do Senhor, /
agora e para sempre.
“O
Senhor domina sobre todos os povos, / a sua glória está acima dos céus. / Quem
se compara ao Senhor nosso Deus, que tem o seu trono nas alturas / e Se inclina
lá do alto a olhar o Céu e a Terra.
“Levanta
do pó o indigente / e tira o pobre da miséria, / para o fazer sentar com os
grandes, /
com os grandes do seu povo.”
***
“Aleluia.
Aleluia. Jesus Cristo, sendo rico, fez-Se pobre, / para nos enriquecer na sua
pobreza.”
2025.09.21 – Louro de Carvalho
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