Portugal
e, em especial, os lisboetas estão unidos, face ao violento descarrilamento do elevador da
Glória, que provocou, a 3 de setembro, 16 mortos e 22 feridos, dos quais cinco
graves, o que se manifestou de muitos modos, incluindo o luto nacional e a
celebração de missa sob a presidência do patriarca de Lisboa, com a presença de
vários titulares do poder político central e autárquico.
Todavia,
não é lícito ao primeiro-ministro (PM), nem ao presidente da Câmara Municipal
de Lisboa (CML) exigir que não se faça aproveitamento político desta
circunstância trágica, pois está em causa a perda de vidas humanas de nacionais
e de estrangeiros (que, ao visitarem o país, mereciam toda a segurança nos
transportes públicos). Além disso, como em outras áreas nevrálgicas do Estado
(por exemplo, Saúde, Educação, Energia, Florestas, Incêndios, etc.), há
sintomas de crasso desinvestimento da parte dos poderes públicos, de que pode
resultar, além de tragédias como esta, a sensação de insegurança.
A
reflexão que o caso requer pode não resultar em demissão de detentores de
cargos políticos (que, habitualmente, nada resolve), mas deve ter como
consequência a revisão de toda a atitude dos poderes públicos, face à suspeita
da “falência de um conjunto de sistemas”, que, a confirmar-se, revela falência
do poder político na obrigação de zelar pelo bem-estar dos cidadãos, incluindo
a segurança e a otimização das infraestruturas públicas.
No caso
vertente, tudo indica ter partido um cabo. A confirmar-se, estaremos perante
uma falha de material. Contudo, subjacentes a essa fadiga de material estão
falhas humanas de caráter técnico (há um conjunto de sistemas) e político (é
uma infraestrutura pública).
Um
bombeiro, comentando o acidente, apontava três problemas, no trajeto do
ascensor: falta de câmaras de vigilância, livre acesso ao cabo que faz o
balanço dos elevadores e a antiguidade dos elétricos. Com efeito, se os
elétricos fossem modernos, dificilmente teria isto acontecido, mesmo com
eventual falta de manutenção, pois haveria sistemas de segurança.
Até 2020, a lei obrigava o Instituto da
Mobilidade e dos Transportes (IMT), através da Autoridade de Segurança Ferroviária (ASF), a
supervisionar os ascensores que não tivessem tração própria, cujo movimento
dependesse apenas do cabo que os faz subir e descer. É o caso dos elevadores de
Santa Justa e da Bica. O da Lavra e o da Glória têm motores incorporados. Dependem do
cabo, que os mantém ligados, mas só para contrapeso. Por isso, estes dois nunca
foram fiscalizados pela ASF, que disse ao jornal Público não ter competências para
supervisionar os sistemas de transporte por cabo classificados como monumento
nacional. É o caso do Elevador da Glória. Porém, apesar de
já não ter a obrigação, desde 2020, de fiscalizar os outros dois ascensores – o
de Santa Justa e o da Bica – continua a fazê-lo, tal como o faz com o funicular
da Graça e com os teleféricos do Parque das Nações e do Jardim Zoológico de
Lisboa.
Esta duplicidade de assunção de competências
dificilmente se entende.
Já o ascensor da Glória, o mais conhecido do
país e que transporta mais passageiros, por ano, continua sem qualquer
supervisão da ASF, devido a esta interpretação da lei. E o Público explica que a
segurança deste elevador é responsabilidade
única da Carris, a proprietária
do sistema por cabos, que assegura a manutenção através de
contratos de prestação de serviços.
Por
outro lado, sabe-se que o Gabinete de Prevenção e Investigação de Acidentes com
Aeronaves e de Acidentes Ferroviários (GPAAIF) conta só com dois peritos (o que
é impensável) para estudarem e analisarem estes sinistros, em todo o país,
sendo um deles o próprio diretor. O GPAAIF é chamado, sempre que haja acidentes
destes com uma ou mais vítimas mortais ou com cinco ou mais feridos graves.
Assim, explica-se a demora do GPAAIF na produção de conclusões.
Outro
problema é o das condições da manutenção. Há 14 anos que a Carris não se
encarrega, diretamente, da manutenção dos ascensores de Lisboa. Contrata uma
empresa dita especializada para fazer as revisões (quadrienais e intermédias) e
a fiscalização (vistoria) assídua.
Desde
2019, a manutenção é assegurada pela Main (nome comercial da MNTC – Serviços
Técnicos de Engenharia, Lda.), sediada em Almada. Em 2022, celebrou com a
Carris um contrato de manutenção pelo valor de quase um milhão de euros,
acrescido do imposto sobre o valor acrescentado (IVA), válido até ao passado
dia 31 de agosto, escassos dias antes do descarrilamento do elevador da Glória.
Em abril (porquê só em abril?), foi aberto concurso público para a manutenção
dos ascensores de Lisboa, mas foi cancelado, porque o valor das quatro
propostas concorrentes ultrapassava o valor definido no aviso de abertura do
concurso.
É de
concluir que, se vários concorrentes entendem não assumir o valor definido, o
concurso, em vez de ter sido cancelado, deveria ter sido redimensionado. Também
não é absoluta a exigência de, em concurso público, o preço menor se tornar o
critério principal do apuramento do concorrente vencedor, sobretudo, em
trabalhos de alta complexidade. E é caso para perguntar se a entidade que lança
o concurso (e eventual adjudicante) procede à avaliação da capacidade (técnica
e financeira) dos concorrentes ou se acredita só no que eles dizem.
Entretanto,
para resolver a falta de resultado do concurso, a Carris fez um ajuste direto
com a Main e que está em vigor, temporariamente.
Criou-se
a moda errada, a meu ver, de as empresas públicas confiarem missões de alta
responsabilidade a terceiros. A gestão do setor público e, pelo menos, as
missões de alta responsabilidade devem ser confiadas a quadros do setor
público, adequadamente formados, integrados numa carreira altamente valorizada
e com estatuto remuneratório condigno.
Outra
suspeita de falha é a não adequação destes equipamentos ao aumento da procura,
sobretudo, da parte dos turistas. O material deveria ter sido inteiramente
renovado e a sua capacidade de resistência, de segurança e de conforto deveria
ter sido reforçada.
Tudo isto
é falha política, antes de ser falha técnica.
***
O ascensor
da Glória existe há 140 anos (desde 1885) e funciona com duas cabines na lógica
de contrapeso, ligadas por um cabo, numa estrutura de roldanas – uma em cima,
junto ao Bairro Alto, e a outra em baixo, na Praça dos Restauradores – ajudando
o peso de uma a deslocar a outra.
Instalado numa rampa de 276 metros de comprimento, com
a inclinação de 17,7%, leva até 42 pessoas (22 sentadas e 20 em pé). O trajeto,
de dois minutos, é repetido, várias vezes, por dia. Ao longo dos 140 anos de
funcionamento, sofreu algumas alterações: em 1885, tinha um sistema hidráulico,
baseado num depósito de água que permitia a viatura de cima puxar a de baixo; depois,
passou para um sistema a vapor; e, em 1915, foi eletrificado.
A este
respeito, Carlos Oliveira Cruz, professor do
Departamento de Engenharia Civil do Instituto Superior Técnico (IST), explicou
ao Expresso: “Estes ascensores têm
sistemas de redundância de travagem. Há um sistema manual, acionado pelo guarda-freios,
e outro, automático, que deteta movimentos involuntários ou aceleração
excessiva, bloqueando as rodas e diminuindo a velocidade. […] Esta tragédia só
pôde acontecer perante a falência de um conjunto de sistemas. Não é normal nem
expectável e há uma estupefação entre quem conhece estas estruturas.”
Sobre a manutenção dos ascensores, o professor do IST
vinca a diferença entre dois aspetos: a manutenção periódica, que, segundo a Carris,
foi feita em 2024 e “durante a qual o elevador esteve parado, para analisar as
várias componentes”; e as “ações de inspeção, uma camada adicional à
manutenção, quer sejam os técnicos ou os guarda-freios a fazerem, e que
garantem a monitorização dos sistemas”. Com efeito, ao invés dos equipamentos
mais modernos, os antigos precisam de inspeções visuais, in loco, às roldanas e ao cabo. Ora, nove horas antes do acidente
houve uma inspeção de 33 minutos, que deu o OK
ao funcionamento do elevador.
Em maio de 2018 o ascensor da Glória tinha
descarrilado, tendo sido apontada, então, uma “anomalia técnica”. Dessa vez, a
cabine saiu dos carris, ficou assente nas pedras da calçada e não provocou
feridos. O único acidente grave com um ascensor que o professor no IST tem na
memória é o de 15 de fevereiro de 1963, no elevador da Nazaré, provocado pela
rutura do cabo e que provocou dois mortos, tendo o ascensor voltado a abrir,
cinco anos depois.
Para Fernando Nunes da Silva, especialista em
transportes e antigo vereador da Mobilidade da CML, a explicação do acidente
estará na “quebra ou rutura do cabo”, sem se perceber o porquê, nem qual o tipo
de rutura. Pode ter-se partido ou soltado da roldana que o liga às cabines,
deixando de exercer a sua função. E pode ter ocorrido a combinação das duas
situações.
“Este cabo assegura o funcionamento sincronizado das
duas cabines e tem uma função suplementar no arranque do sistema, apoiado pelos
motores elétricos que existem em cada cabine. Pela violência do embate, vê-se
que a viatura ganhou uma velocidade enorme e que os freios também não funcionaram”,
conclui Fernando Nunes da Silva.
O especialista não questiona a “capacidade técnica” da
empresa que faz a manutenção e a inspeção destes ascensores, nem a observância
de todos os protocolos obrigatórios. Contudo, alerta para eventual perda do
“fator humano”, ao ter-se acabado com o “contacto próximo” entre os
guarda-freios e os operários das oficinas da Carris, quando esse papel era
desempenhado internamente e antes de passar para a empresa externa. São
máquinas antigas não suscetíveis de enquadramento nos padrões gerais dos
sistemas recentes. Por ouro lado, as pessoas que lidam com os ascensores,
diariamente e durante a vida, são os verdadeiros sistemas de alerta para a sua
manutenção e para sua inspeção. Por exemplo, são elas, que sabem avisar da
existência de um cabo partido, porque a reconhecem pelo ruído diferente nas
roldanas.
Nesse sentido, o antigo vereador da CML defende a
necessidade de saber se se manteve o referido equilíbrio, desde que o serviço
passou a ser feito por uma empresa externa ou se houve “rutura abrupta” na
transmissão de conhecimento. “É gravíssimo se se confirmar que os trabalhadores
apresentaram queixas aos responsáveis pela operação, apontando folgas nos cabos
ou indicando que as inspeções não estavam a detetar todas as situações. […] E
se se verificar que o problema foi mesmo o cabo e que havia uma folga, então é
muito grave e complicado”, advertiu.
***
Mesmo
não sendo conhecidos todos os contornos, há factos claros: o aumento
significativo de passageiros, nos últimos anos, nos três ascensores de Lisboa –
Glória, Bica e Lavra – e do elevador de Santa Justa não foi compensado pelo
reforço da manutenção, apesar de o presidente da Carris ter dado a entender o
contrário, em conferência de imprensa, a 4 de setembro.
Segundo Pedro Bogas, os custos de
manutenção da Carris mais do que duplicaram, entre 2015 e 2025, e que, só desde
2022, aumentaram 25%. Porém, esses são os números globais de toda a operação de
transporte, incluindo a frota de autocarros, pois o montante para os
funiculares é de um milhão de euros em manutenção, de 2022 até ao presente.
Paralelamente, os números dos relatórios e
contas e dos planos de atividade da Carris mostram que, apesar de haver mais
53% de passageiros, em 2024, do que em 2022, nos ascensores e no elevador,
mercê da crescente afluência de turistas, em Lisboa, e de isso ter levado ao
agravamento da carga a que os equipamentos estão sujeitos, a empresa abriu um
concurso, em abril, para garantir a manutenção, com um preço-base 31% mais
baixo (1,19 milhões de euros) do que o valor que tinha sido lançado no concurso
anterior, em 2022 (1,73 milhões).
O presidente da
Carris diz que custo do serviço é adequado ao que é reportado pelos serviços de
manutenção, mas esquece a
pressão adveniente da procura. Efetivamente, segundo os números oficiais da
Carris, houve 1,5 milhões de pessoas a viajar nos ascensores da Glória, da Bica
e da Lavra, mais meio milhão do que em 2022. A Carris prevê que cheguem aos 1,7
milhões em 2025, mais 70% do que há três anos. E, juntando-lhes o elevador de
Santa Justa ou do Carmo, o número de passageiros passará de 1,4 milhões, em
2022, para 2,3 milhões, em 2025.
Para garantir a continuação dos serviços
de manutenção, e com o concurso público de abril vazio, por não terem surgido propostas
dentro do limite dos 1,19 milhões de euros (foram todas acima), a administração
assinou um ajuste direto, a 11 dias do términus do contrato que esteve em vigor
até 31 de agosto. O acordo foi celebrado a 20 de agosto, para assegurar a manutenção
por cinco meses, a começar a 1 de setembro – o tempo necessário para um
concurso público –, por 221 mil euros e que se extingue quando forem atingidos
os cinco meses de trabalho ou assim que os serviços atingirem esse valor.
A empresa Main faz, desde 2019, a
manutenção dos três ascensores e do elevador de Santa Justa, depois de ganhar
um primeiro concurso público, em 2019 e, novamente, em 2022, pelo valor que
ronda um milhão de euros, acrescido do IVA.
Para o presidente da Carris, a
contratualização dos serviços de manutenção é a adequada ao que os serviços
reportam, independentemente do aumento exponencial de passageiros, e “o aumento
de custos tem de acompanhar aquilo que são as necessidades da manutenção”, as
quais são acompanhadas de acordo com o reporte que é feito. E são objeto do
devido investimento.
Questionado pelo facto de não ter havido
alteração ou aumento, nos últimos anos, Pedro Bogas contrapõe que “importa
notar que foram efetuados vários investimentos nos ascensores e no elevador,
durante este período, na ordem de um milhão de euros, nomeadamente, em
reparações gerais nos três ascensores”.
Para Carlos Oliveira Cruz, a “utilização
mais intensa destes sistemas cria maior pressão e necessidade de manutenção, o
que implica atualizar os protocolos de manutenção”, que é algo que “está
integrado nas boas práticas”. Contudo, tais protocolos não foram alterados.
A Carris assegura que todas as inspeções e
as manutenções periódicas foram realizadas e que não foram encontradas anomalias.
Logo na noite do acidente, Pedro Bogas garantiu que a manutenção geral de 2022
tinha sido feita dentro do prazo (faz-se de quatro em quatro anos) e que são
feitas manutenções intercalares a cada dois anos, tendo a última sido feita em
2024.
Foi realizada a inspeção diária ao
ascensor na manhã do acidente, entre as 9h13 e as 9h46, que avaliou o estado do
cabo que partiu e provocou o acidente. E o relatório de avaliação do estado das
correntes, das ferragens, dos carris, da rede aérea, da fossa e do cabo de
equilíbrio, refere que faltavam 263 dias para a substituição do cabo.
Para averiguar porque quebrou o cabo e não
resultaram os sistemas de frenagem de redundância, serão feitas investigações
urgentes, internas e por entidades externas, como anunciou o presidente da CML,
Carlos Moedas, numa declaração sem direito a perguntas, em São Bento, ao lado
do primeiro-ministro, após o Conselho de Ministros de 4 de setembro.
***
Urge, pois, rever as opções de políticas
públicas, o que exige bom senso dos decisores.
2025.09.06 – Louro de
Carvalho
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