segunda-feira, 15 de setembro de 2025

Não se justifica uma comissão para os 50 anos do 25 de novembro

 
A 28 de agosto, o Conselho de Ministros aprovou uma resolução que determina a comemoração do 50.º aniversário do 25 de novembro de 1975 e nomeia a comissão que as organiza, devendo “assegurar diversidade, transversalidade, natureza apartidária e institucional”.
A comissão, que ficará na dependência do ministro da Defesa Nacional, terá um presidente, indicado pelo próprio, três membros indicados pelo presidente da Assembleia da República (AR), ouvidos os grupos parlamentares, um representante da ministra da Cultura, o diretor-geral de Política de Defesa Nacional, o presidente da Comissão Portuguesa de História Militar, um representante da Sociedade Histórica da Independência de Portugal e um representante da Associação do Comandos.
O governante, que fez o anúncio da comissão frisou que “o Estado cumprirá, assim, a sua obrigação, em relação a uma data fundamental para a consolidação da democracia e da liberdade. O 25 de novembro devolveu ao 25 de Abril o seu propósito original. O 25 de Abril permitiu a mudança do regime com intenção de entrega do poder ao povo, e o 25 de novembro pôs cobro à deriva totalitária e confirmou o regime democrático”.
Por isso, “Portugal terá a oportunidade de celebrar, com sentido de justiça e gratidão, a liderança militar e política dos que tornaram tudo possível”. A nível militar, Nuno Melo vincou o papel das Forças Armadas, lideradas pelo tenente-coronel Ramalho Eanes, que veio a ser Presidente da República, bem como o do coronel Jaime Neves, e “a coragem e a memória dos que tombaram pela nossa liberdade”; e, a nível político, recordou “os que lutaram pela democracia e [pela] liberdade dos vários partidos, desde logo do PS [Partido Socialista], do PSD [Partido Social Democrata] e do CDS [partido do Centro Democrático Social], liderados por Mário Soares, Francisco Sá Carneiro, Freitas do Amaral e Amaro da Costa”.
Nuno Melo afirmou que os trabalhos começarão em novembro deste ano e findarão em maio de 2026, assegurando que “outras datas e acontecimentos só possíveis porque houve o 25 de novembro, venham a ser consideradas, como sejam a aprovação da Constituição da República e as eleições legislativas que deram lugar à primeira legislatura em 25 de abril de 1976”.
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O anúncio da comissão, além de não corresponder, na minha ótica, à verdade factual, vem enviesado, desde logo pela atribuição da liderança do CDS também a Amaro da Costa, quando a cada um dos outros partidos só é atribuído um líder.
Não se percebe o motivo da não inclusão no rol dos protagonistas, por exemplo, Vasco Lourenço (que assegurou a cadeia de comando entre o general Costa Gomes e o tenente-coronel Ramalho Eanes e o tenente-coronel Jaime Neves, graduado em coronel), Melo Antunes, Franco Charais, Pires Veloso, Pezarat Correia, Pires Veloso, Melo Egídio, etc. A nível político, esquece-se o papel de Álvaro Cunhal, pelo menos, na reta final do episódio, como se esquece que o CDS, que dizem estar na reivindicação desta comissão, albergou, no rol dos seus militantes, tal como o PSD, elementos provindos do MDLP (Movimento Democrático para a Libertação de Portugal), do ELP (Exército para a Libertação de Portugal), cuja existência foi denunciada por Eurico Corvacho, e do MIRN (Movimento Independente para a Reconstrução Nacional), formações políticas de extrema-direita.
Não se entende como se esquece que as primeiras eleições livres foram as de 1975, parecendo fazer crer que as primeiras terão sido as legislativas de 1976. E é inexato dizer que a aprovação da Constituição da República Portuguesa (CRP), as eleições (legislativas, presidenciais, regionais e autárquicas) só foram possíveis com o 25 de novembro. Sempre o general Costa Gomes e os militares que o rodeavam garantiram a CRP e as subsequentes eleições. Além disso, se é para celebrar tudo o que o 25 de novembro possibilitou, porque termina a comissão os seus trabalhos em maio de 2026, se os atos eleitorais subsequentes às eleições para a AR ocorreram depois?
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Na sequência do anúncio de Nuno Melo, surgiu a Resolução do Conselho de Ministros n.º 132-A/2025, de 8 de setembro, que determina a realização das comemorações do 50.º aniversário do 25 de novembro de 1975 e cria a comissão que as promove e organiza.
Diz o preâmbulo que, assim, “será possível revisitar os desafios e feitos heroicos vividos nesse período decisivo da transição democrática, reconhecendo-se, simultaneamente, a diversidade de protagonistas e [de] contributos e a complexidade dos acontecimentos, sem os quais não se concretizaria plenamente a evolução da democracia portuguesa”. Refere que a data permitiu afirmar-se “a autoridade legítima do Estado democrático”, contribuiu para “estabilizar as instituições”, assegurou “o ambiente político e social propício à adoção e à plena entrada em vigor” da CRP, aprovada meses depois. E, “cumprindo-se o espírito originário da revolução, foi possível realizar, em 25 de abril de 1976, as primeiras eleições livres e democráticas, em Portugal, por sufrágio direto e universal”.
Cá está: o governo pensa que “as primeiras eleições livres e democráticas” foram as de 1976, deitando ao lixo, quase todo o discurso do presidente da AR no 25 de abril deste ano, sobre as eleições de 1975, com o povo a sair à rua contente por ir votar.
O governo “pretende que as comemorações constituam um marco de memória histórica democrática e de reafirmação dos princípios que, hoje, estruturam a identidade democrática portuguesa”. É certo que respeita e valoriza, “plenamente e sem hesitações, o marco fundacional do 25 de Abril de 1974” (era o que faltava não o fazer), mas pretende, “com estas comemorações do 25 de novembro de 1975 promover, particularmente, entre os mais jovens, um conhecimento mais aprofundado das origens do regime democrático e uma reflexão, mobilizadora de todos e da sociedade, sobre os desafios presentes e futuros da vida coletiva nacional”.
O 25 de novembro não restaurou, nem deixou de restaurar o espírito de Abril. Foi um episódio com uma determinada marca, tal como o foram o 28 de setembro de 1974 e o 11 de março de 1975. Aliás, para lá da resposta satisfatória à ânsia de liberdade e de instauração da democracia, qual foi o espírito original do 25 de Abril? Havia um programa sintetizável em “democratizar, descolonizar e desenvolver”, que nunca estará cabalmente cumprido. Além disso, o conceito de democracia não é unívoco. Por exemplo, se a maioria vitoriosa faz tudo o que quer, postergando os direitos das minorias e espezinhando a dignidade dos pobres, temos uma pobre democracia.     
“As comemorações do cinquentenário do 25 de novembro são, por conseguinte, uma oportunidade para reconhecer e celebrar, de forma plural e inclusiva, a coragem dos que, num tempo conturbado e incerto, asseguraram a legalidade democrática, a proteção das liberdades fundamentais e a salvaguarda da paz civil em Portugal”, diz ainda o preâmbulo.
É caso para questionar, se o governo pretende “reconhecer e celebrar, de forma plural e inclusiva”, os protagonistas da efeméride, porque não confia tal missão à Comissão Comemorativa os 50 anos 25 de Abril, reforçando-a com mais elementos e com mais meios?  
O diálogo e a articulação exigidos ou recomendados com a outra comissão não passam de um ramo de flores com que se encerra o preâmbulo e se permeia o articulado.  
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Como anunciado, o articulado da Resolução, determina “a realização das comemorações do quinquagésimo aniversário da ação militar, iniciada com sucesso a 25 de novembro de 1975, a terem lugar a partir de 25 de outubro de 2025” (n.º 1). Quer dizer, depois de tanta elaboração ideária, reduz tudo a uma “ação militar”.
Estabelece as seguintes competências da comissão: “a) assegurar o caráter plural e participado das comemorações; b) organizar e coordenar a realização das comemorações, de acordo com o respetivo programa oficial; c) colaborar com outras entidades, públicas e privadas, na promoção e realização de iniciativas que se enquadrem nos objetivos das comemorações; d) dialogar com a Estrutura de Missão para as comemorações do quinquagésimo aniversário da Revolução de 25 de abril de 1974, relativamente à articulação entre os respetivos programas comemorativos; e) elaborar e publicar um relatório final da atividade desenvolvida e dos resultados alcançados, no final do seu mandato” (n.º 3).
Neste “caráter plural e participado”, fica esquecida a Associação 25 de Abril e o papel de muitos dos seus elementos no 25 de novembro.  
Determina-se que a comissão “elabora o programa oficial das comemorações, acompanhado de uma previsão de encargos, tendo em consideração os objetivos estabelecidos, a apresentar, num período de 20 dias após a tomada de posse dos seus membros e sujeito a validação do membro do governo responsável pela área das finanças” (n.º 4).
Como pode ser organizado um programa sério em 20 dias?
A composição da comissão é a seguinte: um presidente e um vice-presidente, designados pelo membro do governo responsável pela área da defesa nacional; três membros a designar pela AR; um representante designado pelo membro do governo responsável pela área da cultura; o diretor-geral de Política de Defesa Nacional; o presidente da Comissão Portuguesa de História Militar; um representante da Sociedade Histórica da Independência de Portugal; um representante da Associação de Comandos (ver n.º 5).
A comissão “fica na dependência do membro do governo responsável pela área da defesa nacional” (n.º 6). Por que depende da defesa nacional esta comissão, e não do gabinete do primeiro-ministro ou da Presidência da República?
A Comissão “termina o seu mandato a 15 de maio de 2026” (n.º 12). Sobre este item, vale a crítica pontada acima.
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A este respeito, Porfírio Silva, do PS, no semanário Expresso, de 19 de setembro, contrariando Paulo Núncio, do CDS, e Pacheco Pereira, no jornal Público, de 13 de setembro, são clarividentes, quanto a esta matéria.  
O deputado do PS reconhece que, “entre o derrube da ditadura e a institucionalização da democracia, a liberdade andou à procura dos seus caminhos”, com percalços, como o 28 de setembro de 1974, o 11 de março e o 25 de novembro de 1975. E eu recordo que houve mais aspetos que a memória coletiva não valoriza, como os diversos ataques, à esquerda e à direita, o ELP, o MIRN e o MDLP, o diretório (Costa Gomes, Vasco Gonçalves e Otelo Saraiva de Carvalho), os SUV (Soldados Unidos Vencerão), algumas assembleias tumultuosas do MFA (Movimento das Forças Armadas), Documento do COPCON (Comando Operacional do Continente), etc.  
Porfírio Silva sustenta que “comemorar o 25 de Abril é comemorar o resultado: a democracia constitucional vivida em paz” e “sarar feridas entre democratas”; ao invés, “insistir nos passos em falso, nas divisões, é salgar as feridas por despudor político”.
Depois, tal como Pacheco Pereira, entende que, “no 25 de novembro, houve duas classes de perdedores”: os “que se achavam os donos da legitimidade revolucionária e queriam sobrepor a legitimidade revolucionária à legitimidade democrática, aferida pelo voto popular em eleições livres”; e os “que queriam aproveitar a oportunidade para mutilar o pluralismo político-partidário e voltar a atirar para a clandestinidade uma parte da esquerda portuguesa”, ou seja, os que “quiseram ilegalizar o PCP [Partido Comunista Português]”, ou, talvez, começar por o ilegalizar.
Perderam ambos, porque, no dizer do deputado socialista, “prevaleceu a continuidade do processo de construção constitucional e foi afastado o cenário de o rumo político do país poder ser imposto por correntes minoritárias apoiadas em setores militares” – o que, do meu ponto de vista, vale para as esquerdas e para as direitas.
É claro que o deputado, atribuindo o estatuto de vencedores do 25 de novembro aos “que permaneceram fiéis à ideia de que a democracia representativa é para todos”, menciona apenas “o PS, sob a liderança de Mário Soares, entre os civis” e “Melo Antunes e os seus colegas do Grupo dos Nove, entre os militares”. Porém, escudado na asserção de Ramalho Eanes, há alguns anos, de que “os momentos fraturantes não se comemoram, recordam-se, apenas para refletir sobre eles”, o deputado sentenciou que “o país não merece ficar pendente da guerrilha dos que tentam relativizar a importância histórica singular do 25 de Abril”, sendo o 25 de novembro um momento do processo aberto em abril, pelo que” é nesse quadro que o devemos lembrar e sobre ele refletir”.
Evocou a figura de Mário Soares, para dizer que entregou o bastão de marechal a Spínola e apoiou a amnistia a Otelo, personagens envolvidas com promotores de atividades terroristas, pois, “compreendendo a legítima discordância das vítimas”, nem por isso se pode viver “a pensar sempre no passado”, pelo que “temos de olhar para a frente e dar passos, no sentido da reconciliação nacional”. E concluiu que tudo isto é o contrário do que está a acontecer, isto é, “criar comissões para confortar politicamente quem se sente incomodado com o 25 de Abril e quer produzir, artificialmente, alternativas à sua comemoração, para a diminuir”.
Segundo Pacheco Pereira, a Resolução mostra que, apesar de a guerra cultural pela “moral cívica e democrática” não ter sido vencida pela direita radical, o governo, perdido na opinião, está a “usar a força do Estado e do poder, não só para impor um ‘passado’ fictício, aceitável a quem não tem passado apresentável, como […] para a luta política e ideológica”.
Pacheco Pereira admite que é celebrável o 25 de novembro, mas se for para celebrar “o que aconteceu e não a falsificação que por aí passa como sendo História”, não esquecendo nenhum dos protagonistas. Sustenta que houve dois golpes: o do dia 25, da ala mais esquerdista das Forças Armadas (mas não toda), e o do dia 26, com a tentativa de ilegalizar o PCP – ambos jugulados. E diz que “há documentação histórica suficiente e estudos sólidos que negam a ideia do 25 de novembro como ‘um golpe do PCP’ [, mas que] “esta mistificação terá, sem dúvida, um papel nas comemorações”.     
Por outro lado, critica a Resolução, por entregar as comemorações ao CDS, via Ministério da Defesa, as quais, pela sua índole, não têm a ver com a defesa, quer no topo, quer na composição da comissão. Depois, acusa a tentativa de demérito para as eleições de 1975, o que só se entende por não ser viável dizer que houve uma ditadura no PREC (processo revolucionário em curso) e umas eleições livres, tal como acusa a direita radical de fazer coro com os descontentes com os resultados das eleições de 1975, incluindo o PCP. E não se percebe, na ótica do historiador, a equivalência entre o 25 de novembro e o 25 de Abril.
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Por tudo isto, é preciso reafirmar e ensinar o 25 de Abril – e não qualquer outra – como data fundacional e incontornável da democracia, constituindo as outras episódios dispensáveis ou não.

2025.09.15 – Louro de Carvalho


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