quarta-feira, 27 de novembro de 2024

Questões sobre eventual candidatura presidencial de Gouveia e Melo

 

É voz corrente que o chefe do Estado-Maior da Armada (CEMA), almirante Gouveia e Melo, não estará disponível para ser reconduzido no cargo, tendo-o já comunicado ao ministro da Defesa Nacional. Coisa diferente seria ter recusado o cargo, como referem alguns, o que o distinto militar não faria, contrariando o Estatuto dos Militares das Forças Armada (EMFAR). 

Por conseguinte, verificando haver sinais de apoio de alguns autarcas de Norte a Sul do país, irá entrar na corrida presidencial a Belém – o que se prevê ser anunciado em março, se vir que tem condições políticas para tanto –, pelo que deverá ficar a trabalhar num gabinete da Marinha, ao serviço do Ministério da Defesa e da Marinha, até ter todo o tempo necessário para a reserva.

O seu nome ganhou notoriedade na fase crítica do combate à pandemia de covid-19, pois sucedeu, a um desajeitado ex-secretário de Estado, na coordenação, com destacado grau de sucesso, do plano nacional de vacinação contra a covid-19. Na verdade, como as vacinas entravam em Portugal, um pouco a conta-gotas, havia condições para programar a distribuição sem grandes sobressaltos, selecionando os grupos prioritários, de acordo com as diretivas da Direcção-Geral da Saúde (DGS). O próprio Presidente da República chegou a “distanciar-se” da campanha da vacinação, estribado na memória do que ocorrera com a anterior vacinação contra a gripe.

Porém, o então vice-almirante deu notório sentido de missão à task-force que liderava, aparecendo de camuflado e surgindo onde entendia que a sua presença era necessária, bem como respondendo a varias solicitações de declarações públicas e, mesmo, de entrevistas, o que o seu sucessor, um coronel médico não conseguiu. E, quando deixou a task-force, interpelada a diretora-geral da Saúde, Graça Freitas, referiu que, provavelmente, teríamos de nos habituar à sua pessoa.  

Em setembro de 2023, uma sondagem SIC / Expresso apontava o almirante como o preferido dos eleitores para ser o próximo Presidente da República, pois era um dos mais populares entre o eleitorado de direita e à esquerda, sendo apenas ultrapassado por António Costa. Um ano depois, nova sondagem voltava a atribuir o favoritismo na corrida presidencial a Gouveia e Melo, com a vantagem de quase 6%, face a Pedro Passos Coelho.

Numa das primeiras declarações públicas sobre a hipótese de se candidatar à Presidência da República, o então vice-almirante considerou que “daria um péssimo político” e que se sentia “perfeitamente realizado enquanto militar”. Até alegava não estar preparado para isso e que “devemos separar o que é militar do que é político, porque são campos de atuação completamente diferentes”, segundo referiu em entrevista à agência Lusa, em setembro de 2021. Dois meses mais tarde, dizia-se focado na carreira militar, mas já não descartava a hipótese da candidatura presidencial. Antes, frisava que ambos os setores – político e militar – contribuem para a resolução dos problemas e deixava no ar a possibilidade de vir a estar do outro lado.

Em março de 2023, em entrevista à SIC, o CEMA falou da liderança que encontrou à frente do Serviço Nacional de Saúde (SNS) e admitiu que a necessidade que sentia em tomar decisões rápidas colidia, por vezes, com outros objetivos de cariz político, tendo Graça Freitas admitido que a pressa do vice-almirante, às vezes, colidia com dados científicos. E, sobre uma eventual candidatura à Presidência da República, afirmou que a pergunta do jornalista não trazia dissabores, por ser “legítima”.

Nove meses depois, rejeitava, liminarmente, a possibilidade de avançar enquanto candidato presidencial e dizia-se “indiferente” às sondagens que o colocavam no topo das intenções de voto.

Volvido quase um ano, a questão da demanda presidencial de Gouveia e Melo virou 180 graus e, após meses de especulação sobre a continuidade como CEMA, o almirante parece ter o propósito de se candidatar a Belém, sendo de recordar uma das suas asserções no sentido de ser antidemocrático coartar a possibilidade de os militares intervirem politicamente.

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A 25 de novembro, o primeiro-ministro (PM), confrontado com a hipótese da candidatura presidencial do almirante, disse que ninguém deve estar excluído das presidenciais.

Foi no âmbito da conferência que assinala o terceiro ano da CNN Portugal, sobre “Portugal e o desafio da competitividade europeia”, num painel moderado pelo jornalista Anselmo Crespo, que o PM excluiu apresentar uma moção de confiança ao governo, considerando que o seu executivo não teve estado de graça. E, na fase final de uma entrevista de cerca de meia hora, ao ser questionado se considera preocupante a possibilidade de voltar a ter um militar na Presidência da República, em referência a notícias que dão conta de uma candidatura do atual CEMA, respondeu: “Não, por si só, não me parece que seja essa a questão. A questão que se vai colocar ao povo português é escolher a melhor personalidade para cumprir as competências constitucionais que estão determinadas para o exercício da mais alta magistratura do Estado, que é a Presidência da República, e ninguém deve estar excluído por ter determinada condição ou incluído por ter uma outra condição diferente.”

Luís Montenegro defendeu que quem concluir estar em condições de concorrer a Belém deve ter “perfeito conhecimento da realidade política, da realidade económica, da realidade social do país, do seu contexto a nível europeu e internacional” e reiterou que o Partido Social Democrata (PSD) deve aguardar por candidatos dentro do partido, como refere a moção de estratégia com que se recandidatou à liderança dos sociais-democratas.

Questionado se está escolhido o próximo CEMA, respondeu negativamente, mas sem confirmar ou desmentir se Gouveia e Melo se excluiu de eventual recondução, e negou ter ficado chocado por ter visto o ministro da Defesa reunir-se num bar com o almirante. “Esta semana, nós vamos lançar o processo tendente à decisão de nomeação, que deverá estar concluída até 27 de dezembro”, afirmou.

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Muitos políticos assustaram-se e alguns comentadores ficaram preocupados com a ascensão de um militar a Belém, cerca de 40 anos depois de Ramalho Eanes. Não é inédita a situação. Alguns militares na situação de reserva candidataram-se, embora sem êxito. A novidade está numa candidatura equacionada enquanto o militar ainda está no ativo, a aguardar pela idade legal ou pelo tempo de serviço necessário para passar à reserva. Ramalho Eanes também estava no ativo, quando se equacionou a sua candidatura, em 1976. Era um tenente-coronel graduado em general para exercer as funções de chefe do Estado-Maior do Exército (CEME). E foi daí, sem deixar o cargo, que se catapultou a candidato presidencial, ao passo que o almirante Pinheiro de Azevedo, deixou o cargo de PM nas mãos do comandante Vasco Fernando Leote Almeida e Costa (ministro da Administração Interna), para assumir a candidatura presidencial, que não vingou. Porém, Eanes percebeu, cedo, que o regime evoluía para a vertente civilista e, aquando da recandidatura, em 1980, já tinha passado à reserva.        

Os críticos do almirante apontam o risco de militarização da política, com maior controlo do governo pelas Forças Armadas (FA); a polarização e a instabilidade social, sobretudo se o militar tiver apoio das FA e não da maioria da população; maior potencial para desrespeito aos direitos humanos; o risco de autoritarismo, como restrição da liberdade de expressão, censura aos media, ou repressão de opositores e enfraquecimento das garantias constitucionais – em nome da ordem e da estabilidade; a criação de precedente, encorajando militares a envolverem-se na política; e a desconfiança internacional.

A contra-argumentação sustenta que, há 48 anos, temos uma sólida Constituição da República Portuguesa (CRP), imune a retrocesso ou a militarização; o Presidente não é executivo, pelo que as ameaças à liberdade de expressão não partem dele; não há, na estrutura militar, tentação de subversão da ordem política; não se conhece qualquer posição do almirante contrária ao respeito dos direitos fundamentais; e sendo a eleição direta e unipessoal, Gouveia e Melo teria o apoio da maioria dos votantes – pelo que o país estaria a salvo de tensões com os seus aliados.

Entretanto, é de ter em conta que o EMFAR estabelece como um dos deveres especiais dos militares “o dever de isenção partidária, nos termos da Constituição” (artigo 12.º, n.º 1, alínea i)), em harmonia com o artigo 275.º, n.º 4 da CRP. Pode dizer-se que a candidatura presidencial é pessoal, não partidária. Porém, candidato que não tenha apoio partidário forte não terá sucesso. Por outro lado, vários cidadãos estão impedidos de se candidatarem a determinados cargos políticos eletivos e querem que outros o estejam (ou não voltem ao exercício antigo: magistrados), mas há complacência com o almirante.

As contraindicações acima expostas não podem excluir-se de todo, pois a extrema-direita está em franca ascensão no Mundo e na Europa (Portugal não é exceção) e sabe escolher ou aproveitar os salvadores da Pátria. E o almirante foi, em certa medida, mitificado como tal.

Apesar da linha equilibrada da CRP, o atual Presidente da República tem conseguido levar a cabo a concretização de quase todas as suas ideias, sem a mínima contestação de qualquer dos órgãos de soberania. E o almirante não tem menor ambição, embora tenha menor cultura jurídica. Parecia querer tudo para a Marinha, repreendeu publicamente militares que não avançaram com um navio, antecipou-se a juízos na inspeção e da Justiça, no caso de um assassinato de polícias por fuzileiros e exonerou um capelão, sem processo disciplinar, que veio, depois, a readmitir. Juntamente com suas declarações de sanidade política, registam-se algumas que são populistas, como: “A Saúde tem muitas coisas, todos os ministérios têm. Este país levava anos a endireitar” (Nascer do Sol, junho de 2021). “Faltam-nos líderes com visão política, para definir objetivos, estratégias e encontrar recursos para os cumprir. Se defino objetivos irrealizáveis, por não ter recursos, o que vou fazer? Passar a vida a escrever papéis e a deixar as coisas a degradarem-se? Porque quero manter-me num pseudolugar com um pseudopoder? Isso revolta-me. A população deve ser ambiciosa” (Expresso, dezembro 2021). “Acho que devíamos fazer uma revolução cultural e de atitude que nos libertasse dos pesos que, há anos, nos prendem ao chão” (Noticias Magazine, dezembro 2021).

Não é total verdade que, agora, os ditadores se disfarcem, segundo alguns. Os casos Bolsonaro, Trump, Putin e os dos presidentes da Argentina, das Filipinas e da Nicarágua falam por si.               

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Entretanto, o almirante concita o apoio de muitos, devido à fragilidade das instituições democráticas e das crises institucionais que enfraqueceram o sistema político. Por exemplo, a maior parte dos cidadãos não confia no governo; menos confiam nos partidos e no Parlamento; e a maior parte não está satisfeita com os serviços administrativos que utiliza.

É certo, segundo dizem, que Gouveia e Melo se posicionou, com tempo e método, como forte candidato presidencial. Tem gravitas e discurso e posiciona-se onde os partidos têm mais dificuldade em afirmar-se, na concretização. Porém, como Eanes (outrora), cria ou aceita que lhe criem o ambiente da candidatura a partir dum cargo de cariz apartidário que desempenha – mais ilegítimo do que a posição marcelista a partir da televisão, nomeadamente, da TVI.

Por outro lado, o almirante também abriga um risco próprio: gostando de se apresentar como homem de ação e impaciente, ao não ver as vontades alinhadas na direção que deseja, pode tentar-se a resolver os problemas pessoalmente. Ora, o cargo não lho permite, não por o Presidente não ter papel executivo – que tem, uma vez que lhe compete promulgar ou vetar as leis, os decretos-leis e os decretos-regulamentares, bem como ratificar tratados internacionais –, mas porque é titular de órgão de soberania de topo, cuja função é representativa, fautora de coesão e de garantia da Constituição, não lhe cabendo tomar iniciativa, legislar, administrar, operar ou julgar. Normalmente, convoca, homologa, nomeia sob proposta, decide sob autorização ou ouvindo.   

O Presidente da República deverá ser alguém que conheça os protagonistas, que saiba trabalhar a arte da política, que incentive os partidos a alinharem-se em torno dos grandes desafios nacionais. O Presidente terá sucesso se souber utilizar a magistratura de influência. Mais do que mostrar que sabe tudo e que é possível fazer tudo e já, importa que ouça, pondere, decida e fale, de modo a ser escutado e respeitado, pela simpatia e pela gravitas. Fará assim o almirante?

2024.11.26 – Louro de Carvalho

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