É voz corrente que o chefe do
Estado-Maior da Armada (CEMA), almirante Gouveia e Melo, não estará disponível
para ser reconduzido no cargo, tendo-o já comunicado ao ministro da Defesa
Nacional. Coisa diferente seria ter recusado o cargo, como referem alguns, o
que o distinto militar não faria, contrariando o Estatuto dos Militares das Forças Armada (EMFAR).
Por conseguinte, verificando haver
sinais de apoio de alguns autarcas de Norte a Sul do país, irá entrar na
corrida presidencial a Belém – o que se prevê ser anunciado em março, se vir
que tem condições políticas para tanto –, pelo que deverá ficar a trabalhar num
gabinete da Marinha, ao serviço do Ministério da Defesa e da Marinha, até ter
todo o tempo necessário para a reserva.
O seu nome ganhou notoriedade na
fase crítica do combate à pandemia de covid-19, pois sucedeu, a um desajeitado
ex-secretário de Estado, na coordenação, com destacado grau de sucesso, do
plano nacional de vacinação contra a covid-19. Na verdade, como as vacinas
entravam em Portugal, um pouco a conta-gotas, havia condições para programar a
distribuição sem grandes sobressaltos, selecionando os grupos prioritários, de
acordo com as diretivas da Direcção-Geral da Saúde (DGS). O próprio Presidente
da República chegou a “distanciar-se” da campanha da vacinação, estribado na
memória do que ocorrera com a anterior vacinação contra a gripe.
Porém, o então vice-almirante deu
notório sentido de missão à task-force
que liderava, aparecendo de camuflado e surgindo onde entendia que a sua
presença era necessária, bem como respondendo a varias solicitações de
declarações públicas e, mesmo, de entrevistas, o que o seu sucessor, um coronel
médico não conseguiu. E, quando deixou a task-force,
interpelada a diretora-geral da Saúde, Graça Freitas, referiu que,
provavelmente, teríamos de nos habituar à sua pessoa.
Em setembro de 2023, uma sondagem SIC / Expresso apontava
o almirante como o preferido dos eleitores para ser o próximo Presidente da
República, pois era um dos mais populares entre o eleitorado de direita e à
esquerda, sendo apenas ultrapassado por António Costa. Um ano depois, nova
sondagem voltava a atribuir o favoritismo na corrida presidencial a
Gouveia e Melo, com a vantagem de quase 6%, face a Pedro Passos Coelho.
Numa das primeiras declarações públicas sobre a hipótese de
se candidatar à Presidência da República, o então vice-almirante considerou que
“daria um péssimo político” e que se sentia “perfeitamente realizado enquanto
militar”. Até alegava não estar preparado para isso e que “devemos separar o que é militar do que é político,
porque são campos de atuação completamente diferentes”, segundo referiu em
entrevista à agência Lusa, em setembro de 2021. Dois meses
mais tarde, dizia-se focado na carreira militar, mas já não descartava a
hipótese da candidatura presidencial. Antes, frisava
que ambos os setores – político e militar – contribuem para a resolução dos
problemas e deixava no ar a possibilidade de vir a estar do outro lado.
Em março de 2023, em entrevista à SIC, o CEMA falou da liderança que encontrou à
frente do Serviço Nacional de Saúde (SNS) e admitiu que a necessidade que
sentia em tomar decisões rápidas colidia, por vezes, com outros objetivos de
cariz político, tendo Graça Freitas admitido que a pressa do vice-almirante, às
vezes, colidia com dados científicos. E, sobre uma eventual candidatura à
Presidência da República, afirmou que a pergunta do jornalista não trazia
dissabores, por ser “legítima”.
Nove meses depois, rejeitava,
liminarmente, a possibilidade de avançar enquanto candidato presidencial e
dizia-se “indiferente” às sondagens que o colocavam no topo das intenções de
voto.
Volvido quase um ano, a questão da demanda presidencial de
Gouveia e Melo virou 180 graus e, após meses de especulação sobre a
continuidade como CEMA, o almirante parece ter o propósito de se candidatar a
Belém, sendo de recordar uma das suas asserções no sentido de ser
antidemocrático coartar a possibilidade de os militares intervirem
politicamente.
***
A 25 de novembro, o primeiro-ministro (PM), confrontado
com a hipótese da candidatura presidencial do almirante, disse que ninguém deve
estar excluído das presidenciais.
Foi no
âmbito da conferência que assinala o terceiro ano da CNN Portugal, sobre “Portugal e o desafio da competitividade
europeia”, num painel moderado pelo jornalista Anselmo Crespo, que o
PM excluiu apresentar uma moção de confiança ao governo, considerando que
o seu executivo não teve estado de graça. E, na fase final de uma entrevista de
cerca de meia hora, ao ser questionado se considera preocupante a possibilidade
de voltar a ter um militar na Presidência da República, em referência a
notícias que dão conta de uma candidatura do atual CEMA, respondeu: “Não, por
si só, não me parece que seja essa a questão. A questão que se vai colocar ao povo português é escolher a melhor
personalidade para cumprir as competências constitucionais que estão
determinadas para o exercício da mais alta magistratura do Estado, que é a
Presidência da República, e ninguém deve estar excluído por ter determinada
condição ou incluído por ter uma outra condição diferente.”
Luís
Montenegro defendeu que quem concluir estar em condições de concorrer a Belém
deve ter “perfeito conhecimento da realidade política, da realidade económica,
da realidade social do país, do seu contexto a nível europeu e internacional” e
reiterou que o Partido Social Democrata (PSD) deve aguardar por candidatos
dentro do partido, como refere a moção de estratégia com que se recandidatou à
liderança dos sociais-democratas.
Questionado se está escolhido o próximo CEMA, respondeu negativamente, mas
sem confirmar ou desmentir se Gouveia e Melo se excluiu de eventual recondução,
e negou ter ficado chocado por ter visto o ministro da Defesa reunir-se num bar
com o almirante. “Esta semana, nós vamos lançar o processo
tendente à decisão de nomeação, que deverá estar concluída até 27 de dezembro”,
afirmou.
***
Muitos políticos assustaram-se e alguns comentadores
ficaram preocupados com a ascensão de um militar a Belém, cerca de 40 anos
depois de Ramalho Eanes. Não é inédita a situação. Alguns militares na situação
de reserva candidataram-se, embora sem êxito. A novidade está numa candidatura
equacionada enquanto o militar ainda está no ativo, a aguardar pela idade legal
ou pelo tempo de serviço necessário para passar à reserva. Ramalho Eanes também
estava no ativo, quando se equacionou a sua candidatura, em 1976. Era um
tenente-coronel graduado em general para exercer as funções de chefe do
Estado-Maior do Exército (CEME). E foi daí, sem deixar o cargo, que se
catapultou a candidato presidencial, ao passo que o almirante Pinheiro de
Azevedo, deixou o cargo de PM nas mãos do comandante Vasco Fernando Leote
Almeida e Costa (ministro da Administração Interna), para assumir a candidatura
presidencial, que não vingou. Porém, Eanes percebeu, cedo, que o regime evoluía
para a vertente civilista e, aquando da recandidatura, em 1980, já tinha
passado à reserva.
Os críticos
do almirante apontam o risco de
militarização da política, com maior controlo do governo pelas Forças
Armadas (FA); a polarização e a instabilidade
social, sobretudo se o militar tiver apoio das FA e não da maioria da
população; maior potencial para desrespeito
aos direitos humanos; o risco de autoritarismo, como restrição da
liberdade de expressão, censura aos media, ou repressão de
opositores e enfraquecimento das garantias constitucionais – em nome da ordem e
da estabilidade; a criação de
precedente, encorajando militares a envolverem-se na política; e a desconfiança internacional.
A contra-argumentação sustenta que, há
48 anos, temos uma sólida
Constituição
da República Portuguesa (CRP), imune a retrocesso ou a
militarização; o Presidente não é executivo, pelo que as
ameaças à liberdade de expressão não partem dele; não há, na estrutura militar,
tentação de subversão da ordem política; não se conhece qualquer posição do almirante contrária ao
respeito dos direitos fundamentais; e sendo a eleição direta e unipessoal, Gouveia
e Melo teria o apoio da maioria dos votantes – pelo que o
país estaria a salvo de tensões com os seus aliados.
Entretanto,
é de ter em conta que o EMFAR
estabelece como um dos deveres especiais dos militares “o dever de isenção
partidária, nos termos da Constituição” (artigo 12.º, n.º 1, alínea i)), em harmonia com o artigo 275.º, n.º
4 da CRP. Pode dizer-se que a candidatura presidencial é pessoal, não
partidária. Porém, candidato que não tenha apoio partidário forte não terá
sucesso. Por outro lado, vários cidadãos estão impedidos de se candidatarem a
determinados cargos políticos eletivos e querem que outros o estejam (ou não
voltem ao exercício antigo: magistrados), mas há complacência com o almirante.
As
contraindicações acima expostas não podem excluir-se de todo, pois a
extrema-direita está em franca ascensão no Mundo e na Europa (Portugal não é
exceção) e sabe escolher ou aproveitar os salvadores da Pátria. E o almirante
foi, em certa medida, mitificado como tal.
Apesar
da linha equilibrada da CRP, o atual Presidente da República tem conseguido
levar a cabo a concretização de quase todas as suas ideias, sem a mínima
contestação de qualquer dos órgãos de soberania. E o almirante não tem menor
ambição, embora tenha menor cultura jurídica. Parecia querer tudo para a
Marinha, repreendeu publicamente militares que não avançaram com um navio,
antecipou-se a juízos na inspeção e da Justiça, no caso de um assassinato de
polícias por fuzileiros e exonerou um capelão, sem processo disciplinar, que
veio, depois, a readmitir. Juntamente com suas declarações de sanidade
política, registam-se algumas que são populistas, como: “A Saúde tem muitas coisas, todos os ministérios têm. Este país levava
anos a endireitar” (Nascer do
Sol, junho de 2021). “Faltam-nos
líderes com visão política, para definir objetivos, estratégias e encontrar
recursos para os cumprir. Se defino objetivos irrealizáveis, por não ter
recursos, o que vou fazer? Passar a vida a escrever papéis e a deixar as coisas
a degradarem-se? Porque quero manter-me num pseudolugar com um pseudopoder?
Isso revolta-me. A população deve ser ambiciosa” (Expresso, dezembro 2021). “Acho que devíamos fazer uma revolução
cultural e de atitude que nos libertasse dos pesos que, há anos, nos prendem ao
chão” (Noticias Magazine,
dezembro 2021).
Não
é total verdade que, agora, os ditadores se disfarcem, segundo alguns. Os casos
Bolsonaro, Trump, Putin e os dos presidentes da Argentina, das Filipinas e da
Nicarágua falam por si.
***
Entretanto,
o almirante concita o apoio de muitos, devido à fragilidade das
instituições democráticas e das crises institucionais que
enfraqueceram o sistema político. Por exemplo, a maior parte dos cidadãos não
confia no governo; menos confiam nos partidos e no Parlamento; e a maior parte
não está satisfeita com os serviços administrativos que
utiliza.
É certo,
segundo dizem, que Gouveia e Melo se posicionou, com tempo e método, como forte
candidato presidencial. Tem gravitas e discurso e posiciona-se onde
os partidos têm mais dificuldade em afirmar-se, na concretização. Porém, como
Eanes (outrora), cria ou aceita que lhe criem o ambiente da candidatura a
partir dum cargo de cariz apartidário que desempenha – mais ilegítimo do que a
posição marcelista a partir da televisão, nomeadamente, da TVI.
Por outro
lado, o almirante também abriga um risco próprio: gostando de se apresentar
como homem de ação e impaciente, ao não ver as vontades alinhadas na direção
que deseja, pode tentar-se a resolver os problemas pessoalmente. Ora, o cargo
não lho permite, não por o Presidente não ter papel executivo – que tem, uma
vez que lhe compete promulgar ou vetar as leis, os decretos-leis e os decretos-regulamentares,
bem como ratificar tratados internacionais –, mas porque é titular de órgão de
soberania de topo, cuja função é representativa, fautora de coesão e de
garantia da Constituição, não lhe cabendo tomar iniciativa, legislar, administrar,
operar ou julgar. Normalmente, convoca, homologa, nomeia sob proposta, decide
sob autorização ou ouvindo.
O
Presidente da República deverá ser alguém que conheça os protagonistas, que
saiba trabalhar a arte da política, que incentive os partidos a alinharem-se em
torno dos grandes desafios nacionais. O Presidente terá sucesso se souber utilizar
a magistratura de influência. Mais do que mostrar que sabe tudo e que é
possível fazer tudo e já, importa que ouça, pondere, decida e fale, de modo a
ser escutado e respeitado, pela simpatia e pela gravitas. Fará assim o almirante?
2024.11.26 – Louro de
Carvalho
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