terça-feira, 26 de novembro de 2024

A ambiguidade da celebração parlamentar do 25 de novembro

 

Um grupo de militares, uma associação, um partido político quer celebrar o 25 de novembro, o 11 de março ou o 28 de setembro? Que o façam. Porém, devem abster-se de tentar arregimentar o todo nacional para celebração que não é aquilo que diversas narrativas querem impor à memória coletiva. Além disso, devem conter-se e não pronunciar disparates sobre a revolução abrilina como o propalado pelo líder do Chega – alegadamente parafraseando o general Ramalho Eanes – que soa assim: “Abril ofereceu-nos a liberdade, mas esqueceu-se de criar cidadãos.”

Comecemos pelo disparate. Abril reconheceu-nos como cidadãos livres, em demanda da fraternidade e da igualdade. Em bom rigor, não nos deu o que é nosso por direito: a liberdade. Cortou-lhe as peias, reconhecendo-a e deixando-a expandir-se. E, ao reconhecer que somos livres, ensinou-nos a não voltar atrás. Assim, a verdadeira liberdade exprime-se na cidadania, que abrange diversos campos: cultivo dos direitos humanos fundamentais (pessoais, sociais, culturais, educacionais, laborais, sanitários, securitários); e participação ativa na vida pública, abrangendo esta a participação em eleições (elegendo e sendo eleito), na constituição de associações, na petição formal, na reunião, na crítica informal, no reconhecimento do direito dos povos à autodeterminação e à independência e na consequente luta pela paz e pelo desenvolvimento.

Ora, o 25 de Abril anulou a Constituição de 1933, exceto no atinente aos direitos dos cidadãos, depôs o Presidente da República, dissolveu a Assembleia Nacional, destituiu o governo, extinguiu a polícia política, a censura / exame prévio, a Legião Portuguesa e a Mocidade Portuguesa; constituiu, em regime transitório, a Junta de Salvação Nacional (JSN), o Conselho de Estado, o governo provisório, com vista à preparação de eleições para a Assembleia Constituinte, encarregada de elaborar a Constituição da República Portuguesa, à luz da qual se elegeram os deputados à Assembleia da República, o Presidente da República, os parlamentos regionais e as autarquias locais; lançou as bases da constituição dos partidos políticos; e entabulou negociações para o fim da guerra colonial e para a autodeterminação e independência das colónias.

Que mais quereriam que a revolução abrilina nos desse de cidadania, em termos programáticos?

Se formos coerentes, ou ficamos pela celebração do 25 de Abril como data fundante do regime democrático – democracia representativa parlamentar, democracia direta ou democracia mista – (os corifeus de Primeira República limitaram-se a celebrar o 5 de outubro e os militares do Movimento do de 28 de maio, celebravam unicamente essa data) – ou celebramos também o 28 de setembro, que inviabilizou a concretização do projeto político pessoal de António de Spínola, o 11 de março, que instituiu o Conselho da Revolução (fazendo esquecer a JSN e o Conselho de Estado) e nacionalizou a banca (não se entendia que uma revolução não o tivesse feito antes – De Gaulle fizera-o na França –, para acautelar a fuga de capitais), e o 25 de novembro, que jugulou o pretenso avanço de forças políticas da direita que tentaram colar-se ao grupo militar dos Nove, para supostamente cantarem vitória, tal como travou a deriva minoritária de alguns grupos de uma certa extrema-esquerda. Porém, os saudosistas ou restauracionistas do anterior regime (existentes em alguns dos atuais partidos) parece que ficaram com falta de ar, ao notarem que o Partido Comunista Português (PCP) seria ser extinto e, sobretudo, quando Melo Antunes veio a terreiro clamar que o PCP era necessário à democracia portuguesa. Todavia, não faz sentido celebrar o 49.º aniversário do 25 de novembro de 1975 (a Câmara de Lisboa quis celebrar o 48.º aniversário).

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Aliás, embora muitos elementos antecessores da atual direita política tenham comparecido nas ações de protesto de rua contra os proclamados exageros e ambições das esquerdas, os seus líderes não tiveram intervenção direta nas ações do 25 de novembro de 1975.     

Francisco Sá Carneiro aterrava em Bona, capital da República Federal da Alemanha (RFA), em visita ao presidente Helmut Schmidt e ao chanceler Willy Brandt, a disputar com Mário Soares o quadro da social-democracia europeia. Embora tenha recebido informações da embaixada portuguesa em Bona, via telegrama e telex, a comitiva não se apercebeu da gravidade da situação.

De madrugada, os paraquedistas tomaram várias bases militares, o que levou à intervenção dos militares do Grupo dos Nove, chefiado pelo tenente-coronel Ramalho Eanes, sob tutela de Vasco Lourenço, gradua­do em brigadeiro, em ligação com o Presidente da República, general Costa Gomes. E Sá Carneiro só regressou no dia 28, ao Porto, à boleia de um caça militar de três lugares, disponibilizado pelo ministro da Defesa alemão Georg Leber.

Diogo Freitas do Amaral passou o dia em trânsito para Roma, a fim de participar no Congresso da União Mundial das Democracias Cristãs. Soube que Vasco Lourenço substituiria Otelo Saraiva de Carvalho no comando da Região Militar de Lisboa (RML), após ter sido criado, para neutralizar o Comando Operacional do Continente (COPCON), o Agrupamento Militar de Intervenção (AMI), comandado pelo general Melo Egídio, e que se dissolveu a seguir ao 25 de novembro.  E só regressou a Lisboa, no dia 29, quando a situação já estava resolvida.

Mário Soares, secretário-geral do Partido Socialista (PS), acompanhou tudo de perto. Decidiu manter-se em Lisboa ao longo do dia 25, até que tudo ficasse mais claro. Viu a declaração de Duran Clemente ser cortada na RTP – tomada pelos revoltosos – e substituída por uma comédia. Só viajou para o Porto à noite, seguindo, na manhã seguinte, para o Quartel-General da Região Militar Norte (RMN), onde estavam os generais Pires Veloso e Lemos Ferreira a acompanhar as operações e dispondo dos aviões da Força Aérea concentrados em Cortegaça, concelho de Ovar. No dia 26, com o Regimento de Artilharia de Lisboa (RALIS) afeto à esquerda neutralizado, o Regimento de Comandos (RC), de Jaime Neves, subjugou o Regimento da Polícia Militar (RPM), a única unidade cujo comandante, Mário Tomé, não cumpriu a ordem de se apresentar em Belém. Morreram três homens.

É certo que havia grupos civis, à esquerda e à direita, a quem foram distribuídas armas para colaborarem em eventual intervenção que se tornasse necessária. Porém, não chegaram a intervir. O caso foi resolvido, fundamentalmente, entre militares, embora o ambiente, de manifestações e de contramanifestações, com documentos e contra documentos (dos Nove, do COPCON, do guia da aliança MFA-Povo) fosse um tanto pesado, com um país supostamente dividido entre o Norte e o Sul (apareceram muitas mocas de Rio Maior).

É certo que se viu no cerco à Assembleia Constituinte um sinal de que os políticos de esquerda pretendiam impedir a elaboração da Constituição e instaurar a democracia direta (uns diziam de tipo soviético, outros de tipo chinês e outros e tipo terceiro-mundista). Porém, o cerco resultou da crescente onda de protesto dos trabalhadores da cintura de Lisboa, por várias vezes, concretizada e que, a 12 de novembro, embateu com a falta de atenção da parte do ministro do Trabalho (capitão Tomas Rosa), na Praça de Londres, e na postura de rispidez do primeiro-ministro (almirante Pinheiro de Azevedo) no Palacete de São Bento. E, em situação de desespero e de força, entraram no Palácio de São Bento, onde estavam os deputados constituintes.           

O PS apontava o Partido Comunista Português (PCP) como o principal inimigo do PS e como inimigo da liberdade, da democracia, do povo e do país; e Álvaro Cunhal dizia que o PS se tornara, abertamente, “o campeão da desestabilização, do anticomunismo e do confronto”.

De facto, Mário Soares iniciou, publicamente, a cruzada anticomunista na manifestação junto à Fonte Luminosa, em Lisboa, no verão, gritando que o general Vasco Gonçalves (primeiro-ministro) deixara de ser fonte de união e passara a ser pomo de discórdia. Claro, depois, aliou-se, taticamente, ao Grupo dos Nove. Mais do que outros protagonistas políticos do pós-25 de Abril, Mário Soares e os militares do Grupo dos Nove constituíram os pilares da “muralha de aço” contra o “companheiro Vasco” e, ao mesmo tempo que derrotaram a esquerda revolucionária, ajudaram a evitar que a “direita musculada” ou a extrema-direita vingassem.

A RML negou a estar dividida, quando o seu comandante era o brigadeiro Eurico Corvacho (que, enquanto tenente-coronel chefe do estado-maior da região, denunciou as manobras do ELP – Exárcito de Libertaçáo de Portugal), mas as tropas de Lamego passaram a integrar a Região Militar do Centro (RMC), tendo voltado a integrar a RMN do Norte, quando o brigadeiro Pires Veloso se tornou comandante desta.  

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Passados 49 anos, os partidos de direita elevaram a evocação do 25 de novembro a solene evento no Parlamento, equivalente às comemorações do 25 de Abril, com sessão anual e com a presença do Presidente da República. O governo, para lá da comemoração do cinquentenário do 25 de Abril (2022 a 2026) prometeu uma comissão para as comemorações dos 50 anos do 25 de novembro, em 2025, mas a direita fez questão de celebrar a vitória das forças democráticas sobre o bolchevismo, quando a ação política foi liderada, sobretudo, pelo PS, tendo os chefes da direita – Emídio Guerreiro e Sá Carneiro, no partido Social Democrata (PSD), e Freitas do Amaral, no partido do Centro Democrático Social (CDS) – desempenhado papéis secundários.

O PS votou contra a cerimónia, mas participou nas comemorações. O Bloco de Esquerda (BE) fez-se representar por uma deputada, para exprimir o pensamento do partido, o PCP não compareceu e a Associação 25 de Abril, liderada por Vasco Lourenço, que teve papel determinante nos acontecimentos, pôs-se de fora, aduzindo que “a História é a História” e “não pode ser deturpada ao sabor da vontade de qualquer conjuntural detentor do poder”.

Uma semana antes de 25 de novembro de 1975, o primeiro-ministro britânico James Callaghan enviou um oficial do Intelligence Service para falar com Mário Soares. Em caso de divisão Norte-Sul, o Reino Unido faria chegar armas ao Porto, combustível e aviões. Contudo, havia outro risco mais à direita. Alpoim Calvão, que, na guerra, comandou a operação secreta Mar Verde contra a Guiné Conacri, era o chefe militar do Movimento Democrático de Libertação de Portugal (MDLP) – cujo braço armado era o ELP –, a operar a partir de Espanha às ordens de Spínola. O MDLP estava a armar-se, constituindo um exército de reserva, para entrar no país, se necessário, ou para avançar com um golpe para travar o Processo Revolucionário em Curso (PREC). Poucos dias depois do 25 de novembro, o ELP terá recebido 26 toneladas de armas, provenientes de Angola: 1230 espingardas, a maioria Mauser, e 340 mil munições, transportadas para Tuy, na fronteira galega. O resto foi entregue a núcleos do MDLP junto à fronteira, na Andaluzia e na Extremadura, revelou Alpoim ao “Público”, há 25 anos. E o cónego Melo, de Braga, disse que a extrema-direita chegou a ter o golpe previsto para 30 de novembro, o que não aconteceu.

Para Vasco Lourenço, a grande vencedora do processo é a Constituição, aprovada em 1976 e que institucionalizou, formalmente, o regime democrático, “contra a qual o CDS votou”. “A única força que vota contra a Constituição apela à celebração do 25 de novembro”, ironizou.

O PCP recorda que, apesar de a direita querer festejar a sua derrota, Álvaro Cunhal considerou que os comunistas fazem parte dos vencedores, pois nem a liquidação militar da Comuna de Lisboa, nem a guerra civil, nem a ilegalização e a repressão do PCP, cuja continuação foi blindada com a declaração de Melo Antunes à RTP, no dia 26. Álvaro Cunhal reclamou três vitórias: a salvaguarda das liberdades e da democracia; a formação de novo governo, em que continuou o PCP (contra a posição do PSD); e a aprovação da Constituição de 1976. Contudo, o governo já tinha mudado (o V governo provisório, o mais conotado à esquerda, cessara, havia semanas, e tinha-lhe sucedido o VI governo provisório, em que a participação de comunistas era residual)

Diogo Pacheco de Amorim, deputado do Chega e vice-presidente da Assembleia da República, que integrou o MDLP: “A vitória do PCP foi total, na minha opinião, porque atingiu os objetivos que tinha.” Com a “impossibilidade absoluta de tomar o poder em Portugal, o PCP tinha instruções claras da União Soviética, que o que queria era Angola”, que obteve a independência a 11 de novembro. Para o ideó­logo do Chega, o 25 de novembro institucionalizou o Bloco Central, com os partidos mais à direita já ilegalizados, e conseguiu a aprovação da Constituição de 1976 – só revista em 1982 (Sá Carneiro queria revê-la em 1979), perdendo as organizações de base –, a institucionalizar um regime tendencialmente de esquerda. Concedendo que a direita radical foi uma das derrotadas, Pacheco de Amorim diz que “o PCP manteve um poder desproporcional” e que não defendia a sua ilegalização, embora essa posição não fosse unânime no MDLP.

Ao invés da Associação 25 de Abril, Ramalho Eanes, que aceitou o convite para estar presente nas comemorações, disse, no livro “Palavra Que Conta”, lançado há uma semana – longa entrevista a Fátima Campos Ferreira –, que “o esquecimento do 25 de novembro não ajuda a democracia, porque a História não se apaga”. E diz não perceber “que estigmatizem o 25 de novembro, porque é a continuação do 25 de Abril”.

Por mim, penso que o 25 de Abril é que merece a celebração de todos. Teríamos muito que fazer, se quiséssemos celebrar todos os ziguezagues que o processo da revolução / democracia conheceu, como é natural. Lamento que haja quem leve a mal que o 25 de Abril transformado o golpe de Estado em revolução democrática. Substituir chefes era muito pouco!

2024.11.25 – Louro de Carvalho

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