A 24 de novembro, como corolário do percurso do Ano
Litúrgico com Jesus, no 34.º domingo do Tempo Comum no Ano B, a Igreja Católica
celebrou a Solenidade de Jesus Cristo, Rei e Senhor do Universo. Depois de
termos escutado a sua palavra e visto os seus gestos, assumimos e confessamos
que Jesus é o guia, o mestre e o Senhor – a referência fundamental.
A primeira
leitura (Dn 7,13-14) anuncia
que Deus intervirá no Mundo, para eliminar a crueldade, a violência e a opressão
que marcam a História dos reinos humanos. Através do “filho de homem” que aparecerá
“sobre as nuvens”, devolverá à História a dimensão de “humanidade” e fará com
que os seus filhos caminhem em paz. Os cristãos veem na figura do “filho de
homem” o anúncio da realeza de Jesus Cristo.
O trecho em apreço integra a segunda parte do Livro de
Daniel (Dn 7,1-12,13), em que o
autor, com recurso à figura da “visão”, faz uma leitura profética da História,
para transmitir a esperança aos crentes perseguidos por causa da fé.
Na primeira visão (Dn
7,1-28), surgem “quatro grandes animais”, vindos do mar: o primeiro,
“semelhante a um leão”; o segundo, “semelhante a um urso”; o terceiro, “parecido
com uma pantera”; o quarto, “horroroso, aterrador e de uma força excecional”, com
“dez chifres”, tendo-lhe nascido, depois, um outro “chifre mais pequeno” que
“tinha olhos como homem e boca a proferir palavras arrogantes”. Esses animais
evocam a sucessão dos impérios humanos: o primeiro seria o império
neobabilónico; o segundo, o império dos Medos; o terceiro, o império persa; e o
quarto, o império grego de Alexandre, do qual os reis selêucidas eram os herdeiros
diretos. Os dez chifres do quarto animal referem-se a dez reis selêucidas que
herdaram parte do império de Alexandre; e o décimo primeiro chifre, mais
pequeno do que os outros, seria Antíoco IV Epífanes, o rei perseguidor do Povo
de Deus.
Em contraste com estes impérios – de mal, de imperialismo,
de opressão, de violência, de perseguição – surge o tribunal de Deus. O supremo
juiz é “um ancião” com os cabelos e as vestes brancas “como a neve” (pureza e
retidão), sentado num trono de chamas e servido “por milhares e dezenas de
milhares”. O tribunal decretou a morte do décimo primeiro chifre, cujo corpo
foi desfeito e atirado às chamas. E os “quatro animais” foram privados do seu
poder.
A “visão” amplia-se, agora, com o aparecimento de um
“filho de homem”. Ao invés dos quatro animais (que vêm do mar – na simbólica
judaica, o reino do mal, da desordem, do caos, das forças que se opõe a Deus e
à felicidade do homem), o “filho de homem” surge “sobre as nuvens do céu”,
tendo, assim, origem transcendente: vem de Deus e pertence ao Mundo de Deus. Por
isso, recebe de Deus um reino com as dimensões do universo (“todos os povos e
nações O serviram”) e um poder não limitado pelo tempo, nem pela finitude que
carateriza os reinos humanos (“o seu poder é eterno, não passará jamais; e o
seu reino não será destruído”). Com o anúncio do aparecimento “sobre as nuvens”
desse “filho de homem”, o Livro de Daniel anuncia aos crentes a chegada de um
tempo em que Deus intervirá, a fim de eliminar a crueza, a voracidade, a
ferocidade, a violência, que oprimem os homens, devolvendo à História a dimensão
de humanidade, para que os homens sejam livres e vivam na paz e na
tranquilidade.
Esse “filho de homem” que há de chegar para instaurar
o “reino de Deus” sobre a Terra será o Messias (o “ungido”) de Deus. A sua
intervenção porá fim à perseguição dos justos e possibilitará a vitória dos
santos sobre as forças da opressão e da morte. É esta esperança que anima os
corações dos crentes na época anterior à chegada de Jesus. Jesus aplicará esta
imagem do “filho de homem que vem sobre as nuvens” a Si próprio. Ao ser
interrogado pelo sumo-sacerdote Caifás, assumirá, claramente, que é “o Messias,
o Filho de Deus bendito”, o “Filho do Homem sentado à direita do Poder”, que
virá “sobre as nuvens do céu” (Mc
14,61-62). A catequese cristã primitiva retomará esta imagem, para vincar a
glória de Cristo e o poder soberano de Cristo sobre a História humana (cf At 7,55-56). Cristo é o “filho de homem”
anunciado em Dn 7, que libertará os santos das garras do poder opressor e
instaurará o reino definitivo da felicidade e da paz.
***
Na segunda
leitura (Ap 1,5-8), o Livro do
Apocalipse apresenta Jesus como o Senhor do Tempo e da História, o princípio e
o fim de todas as coisas, o “príncipe dos reis da terra”, Aquele que há de vir
“por entre as nuvens” cheio de poder, de glória e de majestade para instaurar
um reino definitivo de felicidade, de vida e de paz. É a interpretação cristã explícita
da figura de “filho de homem” de que falava o texto anterior.
Jesus é apresentado à comunidade reunida para celebrar
o Senhor, sob três títulos cristológicos, base da catequese da comunidade
joânica: “testemunha fiel”, “primogénito dos mortos”, “príncipe dos reis da
terra”. Jesus é, efetivamente, a “testemunha fiel” porque, com a sua vida, com
as suas palavras, com os seus gestos de serviço, de amor e de doação, com a sua
entrega até à morte, testemunhou, de modo perfeito, o que Deus nos queria
revelar e nos mostrou o rosto de Deus-amor. É o “primogénito dos mortos”,
porque foi o primeiro a vencer a morte e o pecado, mostrando que quem vive nos
caminhos de Deus não será vencido pela morte, mas está destinado à vida eterna.
É o “príncipe dos reis da terra”, porque anunciou e inaugurou um reino novo, de
vida e de felicidade infindas.
Tendo escutado esta proclamação, a comunidade,
reconhecida, aclama o Senhor e confessa a concordância com o que foi afirmado
sobre Ele: “Àquele que nos ama e pelo seu sangue nos libertou do pecado e fez
de nós um reino de sacerdotes para Deus seu Pai, a Ele a glória e o poder pelos
séculos dos séculos. Ámen.”
Os membros da comunidade têm consciência de que a
entrega de Jesus na cruz é expressão do imenso amor com que ama todos os
homens. Porque ama, Jesus libertou os homens do egoísmo e do pecado; convidou
os homens a integrar um reino novo, de amor e de paz; associou-os à sua missão,
tornando-os sacerdotes que oferecem a Deus o culto das suas próprias vidas;
inseriu-os numa dinâmica de vida nova; aproximou-os de Deus; e convidou-os a
integrar a família de Deus. Por isso, a comunidade manifesta no culto o seu
reconhecimento.
A liturgia prossegue com o leitor a recordar à
comunidade reunida que Jesus há de vir ao encontro dos seus, cheio de poder e
majestade, para inaugurar uma nova era de vida e de paz sem fim (“ei-Lo que vem
entre as nuvens”). A imagem é tirada do texto de Daniel, acima referenciado,
onde o “filho de homem” que aparece sobre as nuvens está associado à vitória de
Deus sobre os reinos e os poderes do Mundo. Declara-se que Jesus é o verdadeiro
Senhor da História e que as forças do mal – inclusive as do imperador que
persegue os cristãos – não terão a última palavra. Todos os homens verão o
coração trespassado de Cristo e tomarão consciência de quanto Ele ama os
homens. A vitória de Cristo concretizar-se-á no amor, feito dom a todos, sem
exceção. E a comunidade adere a Cristo e à verdade proclamada, respondendo: “Sim.
Ámen.”
Conclui-se apresentação de Jesus, definindo-O como o
princípio e o fim de todas as coisas (o “alfa” e o “ómega” – a primeira e a
última letra do alfabeto grego), Aquele que é Senhor da História e que abarca a
totalidade do tempo (“Aquele que é, que era e que há de vir”). Os cristãos que
participam nesta liturgia percebem que podem confiar incondicionalmente nesse
Jesus que é a referência fundamental da História humana e que devem fazer de
Jesus o centro das suas vidas.
***
No Evangelho
(Jo 18,33b-37), Jesus assume a
sua realeza ante Pilatos, o prefeito romano da Judeia. Porém, esclarece que a
sua realeza não assenta em lógicas de poder, de autoridade, de domínio, de
ambição, como sucede com os reis da terra. A missão real de Jesus é dar
“testemunho da verdade” e concretiza-se no amor, no serviço, no perdão, na
partilha, no dom da vida.
A este respeito, fez o Papa notável comentário com os
peregrinos reunidos na Praça de São Pedro.
Jesus está diante
de Pôncio Pilatos, pois foi entregue ao procurador romano para ser condenado à
morte. Entre os dois, inicia-se “um breve diálogo”. Nas perguntas de Pilatos e
nas respostas do Senhor, duas palavras – “rei” e “mundo” – adquirem novo
significado.
Num primeiro
momento, Pilatos pergunta: “És tu o rei dos
Judeus?” Raciocinando como funcionário do império, quer perceber se o homem que
tem diante de si constitui ameaça, pois um rei, para ele, é a autoridade que
governa todos os seus súbditos. Todavia, Jesus afirma, claramente, ser rei, mas
de forma muito diferente. É rei, porque é testemunha: é Aquele que diz a verdade.
“O poder real de Jesus, o Verbo encarnado, reside na sua palavra verdadeira, na
sua palavra eficaz, que transforma o Mundo”, sublinha o Pontífice.
O “Mundo” de
Pôncio Pilatos é aquele em que o forte triunfa sobre o débil, o rico sobre o
pobre, o violento sobre o manso. Jesus é rei, mas o seu reino não é desse Mundo.
O Mundo de Jesus é o Mundo novo e eterno, que Deus prepara para todos, dando a
vida pela nossa salvação. É o reino dos céus, que Cristo traz à terra, derramando
a graça e a verdade. “O Mundo, do qual Jesus é rei, redime a criação arruinada
pelo mal com a própria força do amor divino. Jesus salva a criação, porque
Jesus liberta, Jesus perdoa, Jesus dá a paz e a justiça. O reino de Jesus é o
reino do perdão. Ele nunca se cansa de perdoar. Se há algo de mau dentro de ti,
pede perdão, porque Ele perdoa sempre” – diz o Papa.
Jesus fala a
Pilatos de muito perto, olhos nos olhos. Contudo, permanecendo distante dele, vive
num Mundo diferente e não se abre à verdade, apesar de a ter diante de si.
Manda crucificar Jesus e ordena que se escreva na cruz: “Rei dos Judeus”, mas
sem compreender o significado destas palavras. No entanto, Cristo veio ao
Mundo, a este Mundo, no qual quem é da verdade ouve a sua voz. “É a voz do rei
do universo, que nos salva”, vinca o Santo Padre.
A escuta do
Senhor, que “é rei num trono de luz”, infunde luz ao nosso coração e à nossa
vida. Por isso, cada um deve perguntar-se: Posso dizer que Jesus é o meu “rei”?
Ou tenho outros “reis” no coração? A sua Palavra é o meu guia, a minha certeza?
Vejo n’Ele o rosto misericordioso de Deus que perdoa sempre, que está à espera
para nos conceder o perdão?
***
Este Evangelho leva-nos até ao pretório, situado em Jerusalém,
na fortaleza Antónia (em homenagem ao triúnviro romano Marco António), que
albergava a guarnição romana de Jerusalém. Jesus tinha sido para aí levado
depois de, na madrugada desse dia, ter sido considerado “réu de morte” pelas
autoridades religiosas judaicas reunidas no palácio do sumo-sacerdote.
É manhã cedo. Pôncio Pilatos, o prefeito romano que
administrou a Judeia e a Samaria entre os anos 26 e 36, está sentado na cadeira
do poder. Jesus está diante dele, manietado como delinquente. Pilatos vivia
habitualmente no seu palácio de Cesareia Marítima, junto do mar, a cerca de cem
quilómetros de Jerusalém; mas, nas grandes festas, estava em Jerusalém com
tropas de reforço, para manter a ordem na cidade.
As informações de Flávio Josefo e de Fílon apresentam
Pôncio Pilatos como um governante duro e violento, obstinado e severo, tendo
ordenado execuções de opositores sem processo legal. As queixas de excessiva
crueldade apresentadas contra ele pelos samaritanos, no ano 35, levaram
Vitélio, o legado romano na Síria, a tomar posição e a enviá-lo a Roma para se
explicar diante do imperador. E foi deposto do seu cargo de governador da
Judeia logo a seguir.
Porém, João, no relato do julgamento de Jesus,
apresenta Pôncio Pilatos como um homem fraco, indeciso e volúvel, uma espécie
de marioneta manobrada pelos líderes judaicos. Esta apresentação deve ser
tentativa de lançar a culpa e a responsabilidade da condenação de Jesus para
cima das autoridades judaicas: foram elas que promoveram e insistiram na
condenação de Jesus, enquanto Pilatos tentou libertá-lo. Quando o autor do
Quarto Evangelho escreve (por volta do ano 100), os cristãos evitavam quaisquer
polémicas com o poder imperial, que poderiam ter consequências nefastas na vida
da Igreja.
O início de interrogatório revela qual era a acusação
apresentada pelas autoridades judaicas contra Jesus: tinha pretensões
messiânicas; pretendia restaurar o reino ideal de David e libertar Israel dos
opressores. Esta linha de acusação vê em Jesus um agitador político empenhado
em mudar o Mundo pela força, que fundamenta as suas pretensões e a sua ação no
poder das armas e na autoridade dos exércitos. Porém, a resposta de Jesus situa
as coisas na perspetiva correta. Assume-se, com toda a frontalidade e
liberdade, como o messias que Israel esperava e confirma a sua qualidade de rei,
mas, descarta qualquer identificação com os reis que Pilatos conhece e com a
forma como eles exercem o poder. Os reis deste Mundo apoiam-se na força das
armas e impõem, autoritariamente, aos outros homens o seu domínio, que gera opressão,
injustiça e sofrimento. Jesus, em contraste, é prisioneiro indefeso, abandonado
pelos amigos, ridicularizado pelos líderes judaicos, desprezado pelo povo; não
procurou poder, mas disponibilizou-se para servir todos, especialmente, os
pobres e os humildes; não se interessou por defender os seus interesses, mas
por obedecer à vontade de Deus, seu Pai; não pensou em acumular riquezas, mas
em amar os homens até ao dom da própria vida. A sua realeza é da ordem de Deus.
É a realeza que contrapõe o amor ao poder, toca os corações e, em vez de
produzir morte, produz vida. Jesus é rei e messias, mas não impõe a ninguém o
seu reinado. Apenas propõe aos homens um Mundo novo, assente numa lógica de
amor, de doação, de entrega, de serviço.
A declaração de Jesus causa estranheza ao prefeito,
que não entende que um rei renuncie ao poder e à força e fundamente a realeza
no amor e na doação da vida. O comentário de Pilatos – “Então, Tu és Rei” –
parece uma deixa de alguém para quem as declarações do interlocutor não são
claras, conservando a porta aberta a ulteriores explicações. Na sequência,
Jesus confirma a sua realeza e o sentido e do seu reinado.
A realeza de Jesus consiste em dar testemunho da
verdade. Para o autor deste Evangelho, a verdade é a realidade de Deus. Essa
verdade tem a porta aberta, mas sucede que, muitas vezes, só entra meia pessoa.
Ora, é preciso que entre na porta da verdade a pessoa toda. Essa verdade
manifesta-se nos gestos, nas palavras e nas atitudes de Jesus e, de modo
especial, no amor vivido até ao extremo do dom da vida. Essa verdade opõe-se à
mentira do egoísmo, do pecado, da opressão, da injustiça, tudo o que desfeia a
vida do homem e o impede de alcançar a vida plena.
A proposta de Jesus visa provocar uma resposta do homem.
Quem é de Deus e quer viver de acordo com a realidade de Deus, escuta a voz de
Jesus; compromete-se a segui-Lo, renuncia ao egoísmo e faz da sua vida dom de
amor a Deus e aos irmãos. Passa, então, a integrar a comunidade do Reino de
Deus. Cristo é a testemunha fiel do Reino que está nos corações das pessoas e
no seio de cada comunidade. Ele é o próprio reino. Como diz o Salmista, os testemunhos
do Senhor “são dignos de toda a fé” e “a santidade habita na sua casa por todo
o sempre”.
Maria, serva do Senhor, sentiu tudo isto. Por isso,
como exorta o Papa, rezemos-Lhe, “enquanto aguardamos, com esperança, o reino
de Deus”.
2024.11.26 – Louro de Carvalho
Sem comentários:
Enviar um comentário