terça-feira, 26 de novembro de 2024

A realeza de Jesus não assenta na lógica do poder e das honrarias

 

A 24 de novembro, como corolário do percurso do Ano Litúrgico com Jesus, no 34.º domingo do Tempo Comum no Ano B, a Igreja Católica celebrou a Solenidade de Jesus Cristo, Rei e Senhor do Universo. Depois de termos escutado a sua palavra e visto os seus gestos, assumimos e confessamos que Jesus é o guia, o mestre e o Senhor – a referência fundamental.

primeira leitura (Dn 7,13-14) anuncia que Deus intervirá no Mundo, para eliminar a crueldade, a violência e a opressão que marcam a História dos reinos humanos. Através do “filho de homem” que aparecerá “sobre as nuvens”, devolverá à História a dimensão de “humanidade” e fará com que os seus filhos caminhem em paz. Os cristãos veem na figura do “filho de homem” o anúncio da realeza de Jesus Cristo.

O trecho em apreço integra a segunda parte do Livro de Daniel (Dn 7,1-12,13), em que o autor, com recurso à figura da “visão”, faz uma leitura profética da História, para transmitir a esperança aos crentes perseguidos por causa da fé.

Na primeira visão (Dn 7,1-28), surgem “quatro grandes animais”, vindos do mar: o primeiro, “semelhante a um leão”; o segundo, “semelhante a um urso”; o terceiro, “parecido com uma pantera”; o quarto, “horroroso, aterrador e de uma força excecional”, com “dez chifres”, tendo-lhe nascido, depois, um outro “chifre mais pequeno” que “tinha olhos como homem e boca a proferir palavras arrogantes”. Esses animais evocam a sucessão dos impérios humanos: o primeiro seria o império neobabilónico; o segundo, o império dos Medos; o terceiro, o império persa; e o quarto, o império grego de Alexandre, do qual os reis selêucidas eram os herdeiros diretos. Os dez chifres do quarto animal referem-se a dez reis selêucidas que herdaram parte do império de Alexandre; e o décimo primeiro chifre, mais pequeno do que os outros, seria Antíoco IV Epífanes, o rei perseguidor do Povo de Deus.

Em contraste com estes impérios – de mal, de imperialismo, de opressão, de violência, de perseguição – surge o tribunal de Deus. O supremo juiz é “um ancião” com os cabelos e as vestes brancas “como a neve” (pureza e retidão), sentado num trono de chamas e servido “por milhares e dezenas de milhares”. O tribunal decretou a morte do décimo primeiro chifre, cujo corpo foi desfeito e atirado às chamas. E os “quatro animais” foram privados do seu poder.

A “visão” amplia-se, agora, com o aparecimento de um “filho de homem”. Ao invés dos quatro animais (que vêm do mar – na simbólica judaica, o reino do mal, da desordem, do caos, das forças que se opõe a Deus e à felicidade do homem), o “filho de homem” surge “sobre as nuvens do céu”, tendo, assim, origem transcendente: vem de Deus e pertence ao Mundo de Deus. Por isso, recebe de Deus um reino com as dimensões do universo (“todos os povos e nações O serviram”) e um poder não limitado pelo tempo, nem pela finitude que carateriza os reinos humanos (“o seu poder é eterno, não passará jamais; e o seu reino não será destruído”). Com o anúncio do aparecimento “sobre as nuvens” desse “filho de homem”, o Livro de Daniel anuncia aos crentes a chegada de um tempo em que Deus intervirá, a fim de eliminar a crueza, a voracidade, a ferocidade, a violência, que oprimem os homens, devolvendo à História a dimensão de humanidade, para que os homens sejam livres e vivam na paz e na tranquilidade.

Esse “filho de homem” que há de chegar para instaurar o “reino de Deus” sobre a Terra será o Messias (o “ungido”) de Deus. A sua intervenção porá fim à perseguição dos justos e possibilitará a vitória dos santos sobre as forças da opressão e da morte. É esta esperança que anima os corações dos crentes na época anterior à chegada de Jesus. Jesus aplicará esta imagem do “filho de homem que vem sobre as nuvens” a Si próprio. Ao ser interrogado pelo sumo-sacerdote Caifás, assumirá, claramente, que é “o Messias, o Filho de Deus bendito”, o “Filho do Homem sentado à direita do Poder”, que virá “sobre as nuvens do céu” (Mc 14,61-62). A catequese cristã primitiva retomará esta imagem, para vincar a glória de Cristo e o poder soberano de Cristo sobre a História humana (cf At 7,55-56). Cristo é o “filho de homem” anunciado em Dn 7, que libertará os santos das garras do poder opressor e instaurará o reino definitivo da felicidade e da paz.

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Na segunda leitura (Ap 1,5-8), o Livro do Apocalipse apresenta Jesus como o Senhor do Tempo e da História, o princípio e o fim de todas as coisas, o “príncipe dos reis da terra”, Aquele que há de vir “por entre as nuvens” cheio de poder, de glória e de majestade para instaurar um reino definitivo de felicidade, de vida e de paz. É a interpretação cristã explícita da figura de “filho de homem” de que falava o texto anterior.

Jesus é apresentado à comunidade reunida para celebrar o Senhor, sob três títulos cristológicos, base da catequese da comunidade joânica: “testemunha fiel”, “primogénito dos mortos”, “príncipe dos reis da terra”. Jesus é, efetivamente, a “testemunha fiel” porque, com a sua vida, com as suas palavras, com os seus gestos de serviço, de amor e de doação, com a sua entrega até à morte, testemunhou, de modo perfeito, o que Deus nos queria revelar e nos mostrou o rosto de Deus-amor. É o “primogénito dos mortos”, porque foi o primeiro a vencer a morte e o pecado, mostrando que quem vive nos caminhos de Deus não será vencido pela morte, mas está destinado à vida eterna. É o “príncipe dos reis da terra”, porque anunciou e inaugurou um reino novo, de vida e de felicidade infindas.

Tendo escutado esta proclamação, a comunidade, reconhecida, aclama o Senhor e confessa a concordância com o que foi afirmado sobre Ele: “Àquele que nos ama e pelo seu sangue nos libertou do pecado e fez de nós um reino de sacerdotes para Deus seu Pai, a Ele a glória e o poder pelos séculos dos séculos. Ámen.”

Os membros da comunidade têm consciência de que a entrega de Jesus na cruz é expressão do imenso amor com que ama todos os homens. Porque ama, Jesus libertou os homens do egoísmo e do pecado; convidou os homens a integrar um reino novo, de amor e de paz; associou-os à sua missão, tornando-os sacerdotes que oferecem a Deus o culto das suas próprias vidas; inseriu-os numa dinâmica de vida nova; aproximou-os de Deus; e convidou-os a integrar a família de Deus. Por isso, a comunidade manifesta no culto o seu reconhecimento.

A liturgia prossegue com o leitor a recordar à comunidade reunida que Jesus há de vir ao encontro dos seus, cheio de poder e majestade, para inaugurar uma nova era de vida e de paz sem fim (“ei-Lo que vem entre as nuvens”). A imagem é tirada do texto de Daniel, acima referenciado, onde o “filho de homem” que aparece sobre as nuvens está associado à vitória de Deus sobre os reinos e os poderes do Mundo. Declara-se que Jesus é o verdadeiro Senhor da História e que as forças do mal – inclusive as do imperador que persegue os cristãos – não terão a última palavra. Todos os homens verão o coração trespassado de Cristo e tomarão consciência de quanto Ele ama os homens. A vitória de Cristo concretizar-se-á no amor, feito dom a todos, sem exceção. E a comunidade adere a Cristo e à verdade proclamada, respondendo: “Sim. Ámen.”

Conclui-se apresentação de Jesus, definindo-O como o princípio e o fim de todas as coisas (o “alfa” e o “ómega” – a primeira e a última letra do alfabeto grego), Aquele que é Senhor da História e que abarca a totalidade do tempo (“Aquele que é, que era e que há de vir”). Os cristãos que participam nesta liturgia percebem que podem confiar incondicionalmente nesse Jesus que é a referência fundamental da História humana e que devem fazer de Jesus o centro das suas vidas.

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No Evangelho (Jo 18,33b-37), Jesus assume a sua realeza ante Pilatos, o prefeito romano da Judeia. Porém, esclarece que a sua realeza não assenta em lógicas de poder, de autoridade, de domínio, de ambição, como sucede com os reis da terra. A missão real de Jesus é dar “testemunho da verdade” e concretiza-se no amor, no serviço, no perdão, na partilha, no dom da vida.

A este respeito, fez o Papa notável comentário com os peregrinos reunidos na Praça de São Pedro.

Jesus está diante de Pôncio Pilatos, pois foi entregue ao procurador romano para ser condenado à morte. Entre os dois, inicia-se “um breve diálogo”. Nas perguntas de Pilatos e nas respostas do Senhor, duas palavras – “rei” e “mundo” – adquirem novo significado.

Num primeiro momento, Pilatos pergunta: “És tu o rei dos Judeus?” Raciocinando como funcionário do império, quer perceber se o homem que tem diante de si constitui ameaça, pois um rei, para ele, é a autoridade que governa todos os seus súbditos. Todavia, Jesus afirma, claramente, ser rei, mas de forma muito diferente. É rei, porque é testemunha: é Aquele que diz a verdade. “O poder real de Jesus, o Verbo encarnado, reside na sua palavra verdadeira, na sua palavra eficaz, que transforma o Mundo”, sublinha o Pontífice.

O “Mundo” de Pôncio Pilatos é aquele em que o forte triunfa sobre o débil, o rico sobre o pobre, o violento sobre o manso. Jesus é rei, mas o seu reino não é desse Mundo. O Mundo de Jesus é o Mundo novo e eterno, que Deus prepara para todos, dando a vida pela nossa salvação. É o reino dos céus, que Cristo traz à terra, derramando a graça e a verdade. “O Mundo, do qual Jesus é rei, redime a criação arruinada pelo mal com a própria força do amor divino. Jesus salva a criação, porque Jesus liberta, Jesus perdoa, Jesus dá a paz e a justiça. O reino de Jesus é o reino do perdão. Ele nunca se cansa de perdoar. Se há algo de mau dentro de ti, pede perdão, porque Ele perdoa sempre” – diz o Papa.

Jesus fala a Pilatos de muito perto, olhos nos olhos. Contudo, permanecendo distante dele, vive num Mundo diferente e não se abre à verdade, apesar de a ter diante de si. Manda crucificar Jesus e ordena que se escreva na cruz: “Rei dos Judeus”, mas sem compreender o significado destas palavras. No entanto, Cristo veio ao Mundo, a este Mundo, no qual quem é da verdade ouve a sua voz. “É a voz do rei do universo, que nos salva”, vinca o Santo Padre.

A escuta do Senhor, que “é rei num trono de luz”, infunde luz ao nosso coração e à nossa vida. Por isso, cada um deve perguntar-se: Posso dizer que Jesus é o meu “rei”? Ou tenho outros “reis” no coração? A sua Palavra é o meu guia, a minha certeza? Vejo n’Ele o rosto misericordioso de Deus que perdoa sempre, que está à espera para nos conceder o perdão?

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Este Evangelho leva-nos até ao pretório, situado em Jerusalém, na fortaleza Antónia (em homenagem ao triúnviro romano Marco António), que albergava a guarnição romana de Jerusalém. Jesus tinha sido para aí levado depois de, na madrugada desse dia, ter sido considerado “réu de morte” pelas autoridades religiosas judaicas reunidas no palácio do sumo-sacerdote.

É manhã cedo. Pôncio Pilatos, o prefeito romano que administrou a Judeia e a Samaria entre os anos 26 e 36, está sentado na cadeira do poder. Jesus está diante dele, manietado como delinquente. Pilatos vivia habitualmente no seu palácio de Cesareia Marítima, junto do mar, a cerca de cem quilómetros de Jerusalém; mas, nas grandes festas, estava em Jerusalém com tropas de reforço, para manter a ordem na cidade.

As informações de Flávio Josefo e de Fílon apresentam Pôncio Pilatos como um governante duro e violento, obstinado e severo, tendo ordenado execuções de opositores sem processo legal. As queixas de excessiva crueldade apresentadas contra ele pelos samaritanos, no ano 35, levaram Vitélio, o legado romano na Síria, a tomar posição e a enviá-lo a Roma para se explicar diante do imperador. E foi deposto do seu cargo de governador da Judeia logo a seguir.

Porém, João, no relato do julgamento de Jesus, apresenta Pôncio Pilatos como um homem fraco, indeciso e volúvel, uma espécie de marioneta manobrada pelos líderes judaicos. Esta apresentação deve ser tentativa de lançar a culpa e a responsabilidade da condenação de Jesus para cima das autoridades judaicas: foram elas que promoveram e insistiram na condenação de Jesus, enquanto Pilatos tentou libertá-lo. Quando o autor do Quarto Evangelho escreve (por volta do ano 100), os cristãos evitavam quaisquer polémicas com o poder imperial, que poderiam ter consequências nefastas na vida da Igreja.

O início de interrogatório revela qual era a acusação apresentada pelas autoridades judaicas contra Jesus: tinha pretensões messiânicas; pretendia restaurar o reino ideal de David e libertar Israel dos opressores. Esta linha de acusação vê em Jesus um agitador político empenhado em mudar o Mundo pela força, que fundamenta as suas pretensões e a sua ação no poder das armas e na autoridade dos exércitos. Porém, a resposta de Jesus situa as coisas na perspetiva correta. Assume-se, com toda a frontalidade e liberdade, como o messias que Israel esperava e confirma a sua qualidade de rei, mas, descarta qualquer identificação com os reis que Pilatos conhece e com a forma como eles exercem o poder. Os reis deste Mundo apoiam-se na força das armas e impõem, autoritariamente, aos outros homens o seu domínio, que gera opressão, injustiça e sofrimento. Jesus, em contraste, é prisioneiro indefeso, abandonado pelos amigos, ridicularizado pelos líderes judaicos, desprezado pelo povo; não procurou poder, mas disponibilizou-se para servir todos, especialmente, os pobres e os humildes; não se interessou por defender os seus interesses, mas por obedecer à vontade de Deus, seu Pai; não pensou em acumular riquezas, mas em amar os homens até ao dom da própria vida. A sua realeza é da ordem de Deus. É a realeza que contrapõe o amor ao poder, toca os corações e, em vez de produzir morte, produz vida. Jesus é rei e messias, mas não impõe a ninguém o seu reinado. Apenas propõe aos homens um Mundo novo, assente numa lógica de amor, de doação, de entrega, de serviço.

A declaração de Jesus causa estranheza ao prefeito, que não entende que um rei renuncie ao poder e à força e fundamente a realeza no amor e na doação da vida. O comentário de Pilatos – “Então, Tu és Rei” – parece uma deixa de alguém para quem as declarações do interlocutor não são claras, conservando a porta aberta a ulteriores explicações. Na sequência, Jesus confirma a sua realeza e o sentido e do seu reinado.

A realeza de Jesus consiste em dar testemunho da verdade. Para o autor deste Evangelho, a verdade é a realidade de Deus. Essa verdade tem a porta aberta, mas sucede que, muitas vezes, só entra meia pessoa. Ora, é preciso que entre na porta da verdade a pessoa toda. Essa verdade manifesta-se nos gestos, nas palavras e nas atitudes de Jesus e, de modo especial, no amor vivido até ao extremo do dom da vida. Essa verdade opõe-se à mentira do egoísmo, do pecado, da opressão, da injustiça, tudo o que desfeia a vida do homem e o impede de alcançar a vida plena.

A proposta de Jesus visa provocar uma resposta do homem. Quem é de Deus e quer viver de acordo com a realidade de Deus, escuta a voz de Jesus; compromete-se a segui-Lo, renuncia ao egoísmo e faz da sua vida dom de amor a Deus e aos irmãos. Passa, então, a integrar a comunidade do Reino de Deus. Cristo é a testemunha fiel do Reino que está nos corações das pessoas e no seio de cada comunidade. Ele é o próprio reino. Como diz o Salmista, os testemunhos do Senhor “são dignos de toda a fé” e “a santidade habita na sua casa por todo o sempre”.

Maria, serva do Senhor, sentiu tudo isto. Por isso, como exorta o Papa, rezemos-Lhe, “enquanto aguardamos, com esperança, o reino de Deus”.  

2024.11.26 – Louro de Carvalho

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