domingo, 6 de outubro de 2024

Recados políticos no 114.º aniversário da Implantação da República

 

O presidente da Câmara de Lisboa, Carlos Moedas, na cerimónia do 5 de Outubro, na Praça do Município, em Lisboa, destacou a “feliz coincidência” que é os 114 anos da Implantação da República corresponderem aos 50 anos do 25 de Abril, mas, logo, desviou o discurso para outra data, que, pelas evocações feitas, cumpriu o desígnio de deixar recados políticos: os 500 anos do nascimento de Luís de Camões. Sem referir o Orçamento do Estado para 2025 (OE 2025), citou Camões, para censurar desvios no “caminho, porque foram preferidas vaidades pessoais”.

O autarca alfacinha tomou o poeta quinhentista para lhe servir de mote na advertência aos políticos, com recado indireto à viabilização do OE 2025, que deverão guiar-se pelo “estado do país”, em vez de se orientarem por “estados da alma”. “Quantas vezes, na nossa História, nos desviámos do caminho, porque foram preferidas vaidades pessoais e interesses partidários, em vez do bem comum ou do interesse nacional?”, questionou, para sustentar que o 5 de Outubro de 1910 “foi uma resposta contra a vaidade de políticos que se achavam donos do país”.

Carlos Moedas frisou que o país precisa “de imigração”, mas sem “aceitar uma política de portas escancaradas que conduz à desordem, dá espaço a redes criminosas e multiplica casos de escravatura moderna”. E, afirmando que a “segurança” é um dos ativos importantes de Portugal, reiterou o apelo ao governo para o reforço do policiamento de Lisboa, para que entrem “mais 200 agentes para a Polícia Municipal”, tal como pediu mais competência para estas polícias, que traz “mais segurança para as cidades”. “Se hoje temos um claro problema de pessoas em situação de sem-abrigo no país, deve-se também à irresponsabilidade em lidar com a imigração, acusou.

O edil lisboeta aproveitou o ensejo para enfatizar que a autarquia resolveu “uma das situações mais graves” de Lisboa. “Ontem, ajudamos todas as pessoas que estavam à volta da Igreja do Anjos a encontrar um teto”, garantiu.

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Para o Presidente da República (PR), é mais importante “viver com liberdade” e “sem repressão”, “com tolerância e universalismo” do que com “fechamento”. Esta ideia foi transversal ao discurso presidencial, ficando claro que “nem a República nem a democracia estão acabadas nem perfeitas, mas estão vivas”. O chefe de Estado afirmou que “a República renasceu na coragem dos jovens militares no 25 de abril de 1974”, e elencou os desafios por que Portugal tem passado.

“Resistiu ao 28 de maio de [19]26”, vincou o PR, em alusão ao golpe que impôs a ditadura e o fim da Primeira República. “A mais imperfeita democracia é muito melhor do que a mais tentadora ditadura. Por isso, vale a pena aqui virmos, todos os anos, até para dizermos que queremos que a nossa República democrática seja mais livre, mais igual, mais justa, mais solidária, para o bem de Portugal, que é o que nos une, agora e sempre”, defendeu, para lembrar que a República e a democracia têm de mudar “nos dois milhões de pobres e mais os em risco de pobreza, nas desigualdades entre pessoas e territórios, no combate à corrupção, o envelhecimento coletivo”, pois “a República e a democracia assistiram a partidos e a forças sociais subirem e descerem, ao surgimento de outras, década após década, e, às vezes, à adaptação das originárias”.

Como corolário da sua intervenção, Marcelo Rebelo de Sousa especificou as razões pelas quais a República e a democracia estão vivas. “Viver com liberdade é muito melhor do que viver com repressão. Pluralismo é muito melhor do que verdade única. Tolerância e universalismo [são] muito melhor[es] do que [a] aversão ao diferente e [o] fechamento”, considerou.

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No final da cerimónia, que decorreu vedada ao público, a líder parlamentar do Partido Socialista (PS), Alexandra Leitão, questionada pelos jornalistas sobre as referências do discurso de Moedas, disse não conhecer “nenhum dirigente partidário que ponha os seus estados de alma acima” dos interesses nacionais. E insistiu, cortesmente, no silêncio que guarda sobre o OE2025. “Vamos aguardar, serenamente, a resposta oficial e formal do governo”, atirou.

Margarida Balseiro Lopes, ministra e dirigente do Partido Social-democrata (PSD), escusou-se a comentar as negociações orçamentais por ser dia para falar do 5 de Outubro, sublinhando os alertas do PR para as imperfeições da democracia a corrigir.

Sobre a contraproposta orçamental que o líder do PS apresentou, na véspera, ao governo, frisou que aquele era o 5 de Outubro, pelo que estava em causa a intervenção do PR, não o OE 2025.

A ministra, questionada sobre as declarações do edil lisboeta, o social-democrata Carlos Moedas, que citou Camões para criticar os que no presente estão “reféns de ansiedades pessoais e partidárias”, abdicando do “interesse nacional”, respondeu: “Eu compreendo a pergunta, mas a minha resposta vai ser sempre igual: não vou falar do Orçamento do Estado.”

Margarida Balseiro Lopes destacou do discurso presidencial a importância da República e da democracia, referindo que “fez sempre essa relação, mas, sobretudo, alertando para as imperfeições” e para o que é preciso corrigir. “Falou d[ess]a necessidade e nós estamos perfeitamente alinhados com essa preocupação com o combate às desigualdades, com combate à pobreza, com o combate à corrupção, mas há uma mensagem que eu queria destacar: a necessidade de rejuvenescer o país”, enfatizou.

A dirigente do PSD assinalou que o PR “falou do envelhecimento” de Portugal, considerando que o país precisa de reter jovens. “Precisamos de ter essa capacidade de oferecer boas condições, de sermos audazes, corajosos, nas medidas, nas políticas públicas para conseguirmos também cumprir esse desígnio de fixar os jovens cá”, considerou.

O porta-voz do Livre, Rui Tavares, acusou Carlos Moedas de “ir atrás do discurso da extrema-direita”, relativamente à imigração, e negou que a situação dos sem-abrigo no largo dos Anjos esteja resolvida. “Uma pessoa pergunta se Mário Soares, alguma vez, teria deixado fazer este discurso sobre imigrantes e ir atrás sem ter, a certa altura, um estado de alma, um grito de alma a dizer: Os outros receberam-nos bem, quando fomos exilados. Receberam-nos bem, quando passamos a salto”, questionou.

No seu discurso, o autarca defendeu que o país não pode “aceitar uma política de portas escancaradas que conduz à desordem”. E líder do Livre acusou-o de “ir atrás da extrema-direita” e de citar Camões, “desconhecendo a História”. “É bonito citar Camões, mas é mais bonito não passar o mandato inteiro (já lá vão três anos) do presidente da Câmara a chamar a tudo aquilo que inaugura, às vezes de mandatos precedentes, ‘factory’ não sei quê, ‘hub’ não sei que mais. A Língua Portuguesa existe, mas, se não cuidarmos dela, vai definhando”, observou.

O deputado do Livre lembrou que Luís de Camões, “o grande poeta nacional”, “tinha um imigrante ao lado” a ajudá-lo, quando morreu, “na miséria”.

Rui Tavares negou que a Câmara de Lisboa tenha resolvido a situação dos imigrantes que estão, há meses, a viver em tendas junto à igreja dos Anjos, ao invés do que foi anunciado por Carlos Moedas no seu discurso. “O largo dos Anjos não apresentava nenhuma diferença sensível, nesta manhã. A situação dos sem-abrigo não é de um largo. É de uma cidade inteira, na qual o presidente Carlos Moedas pouco ou nada fez para resolver esta situação”, apontou.

Sobre o OE2025, defendeu que deveria “ser negociado de outra forma”.

A deputada única do partido Pessoas-Animais-Natureza (PAN) referiu: “Olhamos para estas intervenções como mais do mesmo, todos os anos ouvimos o mesmo género de intervenção, aqui, neste tipo de cerimónias, sendo que evocar a implantação da República tem de ter mais do que uma cerimónia evocativa, tem de se traduzir numa mudança efetiva para o país que queremos construir e para o futuro que queremos deixar para as próximas gerações.”

Para a líder do PAN, foram discursos virados para o passado, com pouco foco nos “desafios do presente para os Portugueses, mas também de Portugal a nível global”. “Não podemos continuar a alimentar esta cultura do medo, do ‘nós e eles’, não podemos continuar a olhar para as questões e os desafios da segurança apenas numa perspetiva da imigração, esquecendo-nos no papel que a integração também tem nestas políticas, a própria habitação e as soluções”, avisou.

Outro aspeto criticado foi o facto de ter ficado de fora “o flagelo da violência doméstica”. “Ano após ano, parece que ‘é vira o disco e toca o mesmo’. Não temos, de facto, aqui uma visão do futuro das reformas”, lamentou.

O PAN quer também respostas a desafios como o das alterações climáticas e como é que as cidades como Lisboa se vão adaptar. “Não houve uma palavra dedicada a estes mesmos desafios e aquilo que verificamos é que estas políticas continuam fechadas num núcleo político mais conservador e mais virado para as políticas do passado, ao invés de olharmos efetivamente para aquilo que são as preocupações dos portugueses”, condenou.

Numa altura em que se discute o OE 2025, Inês Sousa Real defendeu que o que os Portugueses querem saber é como é que se vai “garantir a melhoria da sua qualidade de vida”, seja do ponto de vista financeiro, seja na acessibilidade aos transportes públicos, na qualidade de vida e até “mesmo ao nível da proteção animal, que é uma matéria sempre deixada para trás”.

Já o líder parlamentar do Chega, Pedro Pinto, disse que se reviu nas palavras do autarca, “quando falou que Portugal tem um problema com a imigração e deve valorizar as suas forças de segurança”. Porém, classificou o discurso presidencial de contraditório, por ter andado, algum tempo, com o “discurso do medo” em torno da possibilidade de o OE 2025 não ser viabilizado e por, agora, ter dito que “Portugal, desde que é uma República, tem superado todas as crises”.

Salientou que o partido está, desde 10 de março, disponível para um acordo de governo com o PSD”. “Aquilo também que se percebeu […] é que existe um acordo já entre o PS e o PSD, percebe-se claramente”, afirmou, acrescentando: “Eles vão ficar com o ónus disso.”

Também o dirigente do Partido Comunista Português (PCP) João Ferreira apontou uma lacuna no discurso do PR. “Disse que havia a necessidade de combater a pobreza, as desigualdades sociais. É difícil não subscrever essas palavras, a questão é como. Sobre isso nada foi dito”, apontou.

Depois, criticou a discussão sobre o OE2025, por estar “longe do que verdadeiramente interessa”.

O líder parlamentar do partido co Centro Democrático Social (CDS), Paulo Núncio, assinalou a “intransigência, inflexibilidade e radicalismo” do PS, em relação ao imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas (IRC), lembrando a contraproposta do líder socialista à proposta do governo.

O líder parlamentar do Bloco de Esquerda (BE) aplaudiu o discurso presidencial e criticou o do edil alfacinha, sobre imigração, considerando lamentável “a colagem à extrema-direita” e comparando o autarca a um pequeno Napoleão”.

“O Presidente da República fez um discurso que lhe era pedido, neste dia republicano. Recordou que o melhor período da República é da República democrática, que tem muitas insuficiências, que tem muitos problemas para resolver e, por isso, o nosso futuro coletivo só pode passar por almejar uma República mais igual, mais justa e mais solidária e mereceu o nosso aplauso por causa disso”, disse Fabian Figueiredo, mas alertando que “transpareceu” um aviso no discurso do PR: o facto de a República produzir “figuras e momentos menores, mais lamentáveis”.

“Mostra que a República é também capaz de produzir os seus pequenos Napoleões e o que nós ouvimos, hoje, do presidente da Câmara de Lisboa foi um discurso de um pequeno Napoleão que não reconhece o facto de Lisboa estar pior”, condenou.

Ao discurso sobre imigração o bloquista contrapôs que, “se há portas escancaradas em Lisboa”, são-no “à especulação imobiliária e ao excesso de carga turística”, que geram falta de habitação, área em quem tem culpas o presidente da Câmara de Lisboa. E foi lamentável a forma como este se colou ao discurso de extrema-direita, alimentando mitos sobre as pessoas que são essenciais para a economia da cidade e para a economia de todo o país. “Os imigrantes não são responsáveis pelo aumento da criminalidade. Isto já foi desmentido uma vez atrás da outra”, precisou.

Lamentando que o autarca tenha feito uma evocação de Camões, colado às mentiras da extrema-direita contra quem vem para Portugal, que é essencial, Fabian Figueiredo classificou este como um discurso “das figuras menores da História do movimento republicano”.

Sobre o OE2025, defendeu que “a esquerda tem de se apresentar como alternativa à governação da direita”, criticando que o debate seja sobre “quem e como é que baixa mais os impostos às empresas milionárias”. “O caminho que a esquerda tem de se ter é um caminho ambicioso de construção de alternativa e isso não se faz sancionando as políticas da direita. Quem se coloca no campo da viabilização do orçamento não se coloca no campo da alternativa”, avisou.

“O que a esquerda em Portugal tem que fazer é construir um programa alternativo ao da direita”, pois, “no campo da oposição, constrói-se alternativa com quem está no campo da oposição”.

Já a líder parlamentar da Iniciativa Liberal (IL), Mariana Leitão, considerou que “a negociação [entre PSD e PS], até onde já chegou, neste momento, já é má o suficiente para o país”. Por isso, afirmou que “é preferível eleições a um mau orçamento”.

Também José Pedro Aguiar-Branco, presidente da Assembleia da República, se disse confiante na viabilização do OE2025. “Estou esperançoso que assim seja. Acho que é importante, porque dá uma imagem real de maturidade política. Muito mais fácil é criar ruturas. O trabalho de chegar a consensos é mais difícil. Por isso, saúdo esta capacidade de fazer consenso”, declarou, acrescentando que “é normal haver negociações e ajustamentos”, frisou.

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O edil alfacinha, ao citar Camões, terá aludido a “Os Lusíadas”, Canto IV, est. 95-99 e Canto VIII, est. 96-99. Todavia, a citação é forçada e desadequada. Camões não fala contra a imigração, mas sentiu as suas dificuldades, na Índia e em Macau; e, no tempo da sua decrepitude e à hora da morte, tinha um imigrante a ajudá-lo. Também, se a imigração dá azo à escravidão, não é do lado do imigrante, mas do explorador, o residente.

Já o PR fez discurso ajustado à efeméride e fez bem em não ter navegado no OE 2025.   

2024.10.06 – Louro de Carvalho

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