Muito
se tem falado do Orçamento do Estado para 2025 (OE 2025), como se fosse uma
vaca sagrada Índia. Pronunciam-se os partidos políticos, os comentadores e
cronistas dos diversos meios de comunicação social e, o que tem dado mais nas
vistas, o Presidente da República (PR).
O
debate parlamentar em torno do OE 2025 ainda não começou, pois ainda não há
proposta de lei apresentada pelo governo à Assembleia da República (AR).
A conferência de líderes analisou, a 25 de
setembro, uma proposta de calendário para a realização do debate na generalidade
do OE 2025, em 30 e 31 de outubro, com votação final global prevista para 28 de
novembro. E, perante
os jornalistas, o porta-voz da conferência de líderes, o deputado
social-democrata Jorge Paulo Oliveira, salientou que este calendário referente
aos debates do Orçamento do Estado para o próximo ano ainda terá de ser objeto
de consenso em sede de Comissão de Orçamento e Finanças, sendo esta, “por
enquanto, datas indicativas”. Se esta calendarização merecer “luz verde” em
Comissão de Orçamento e Finanças, o debate na especialidade do OE 2025
decorrerá, na AR, entre 22 e 28 de novembro.
Por lei, até 10 de outubro, o governo tem de entregar a
proposta de Orçamento do Estado na AR.
No passado dia 12, o presidente da Comissão de Orçamento e
Finanças, o deputado socialista Filipe Neto Brandão, já tinha proposto que a
discussão na generalidade do Orçamento do Estado para 2025 fosse marcada para
os dias 30 e 31 de outubro. Nessa calendarização, que foi objeto de uma
primeira consensualização na Comissão de Orçamento e Finanças, apontou-se que a
discussão orçamental deverá arrancar no dia 28 de outubro, com a audição, em
sede de comissão, do ministro das Finanças, Joaquim Miranda Sarmento,
seguindo-se, a 29, a audição da ministra do Trabalho, Solidariedade e Segurança
Social, Maria do Rosário Palma Ramalho.
Portanto, a discussão que tem ocupado boa parte da ribalta
pública é um exercício sobre algo que ainda não existe. Assim, acho esquisito
que partidos políticos já tenham decidido votar contra a proposta do OE 2025,
sem a conhecerem, embora lhe seja lícito exigir negociações.
Ao mesmo tempo, entendo que as intervenções do PR sobre esta
matéria são excessivas, quando não descabidas e abusivas. É normal que o chefe
de Estado deseje a aprovação do Orçamento do Estado e que tente exercer, também
nesta matéria, a sua magistratura de influência (prerrogativa que os
presidentes eleitos em democracia assumiram e propalaram, mas de duvidoso
suporte constitucional). Com efeito, comandar, a nível supremo, as forças
armadas, garantir a independência, a unidade do Estado e o regular
funcionamento das instituições democráticas, bem como cumprir e fazer cumprir a
Constituição ou poder enviar mensagens à AR, não conferem especial magistratura
de influência presidencial (ver Constituição
da República Portuguesa, artigo 120.º e artigo 133.º, alínea d)).
Todavia, como sucedeu em 2021, antes de a proposta do
Orçamento entra na AR, o PR avisou que, se o OE 2022 não merecesse aprovação
parlamentar, haveria dissolução da AR e convocação de eleições. Essa
advertência por antecipação foi uma pressão abusiva, por interferência direta
no funcionamento de outro órgão de soberania, constituído por eleição popular
direta.
Ora, a rejeição parlamentar do OE 2022 não implicava,
necessariamente, a convocação de eleições. Outros países europeus souberam
gerir os negócios de Estado, governando no regime de duodécimos (segundo o
último orçamento corrigido à taxa de inflação), sem se poder ultrapassar a
despesa global, mas com a possibilidade de transferência de verbas entre
rubricas orçamentais.
Como é de recordar, as eleições de 2022 conferiram a maioria
absoluta ao Partido Socialista (PS), que o chefe de Estado, fazendo uma
peculiar (e sem suporte constitucional) leitura dos resultados eleitorais, logo
na posse do novo elenco governativo, colou à figura de António Costa, avisando
que, se ele cessasse funções como primeiro-ministro, haveria novas eleições. Depois,
foi mimando o governo com o designativo de maioria desgastada e requentada,
interpelando publicamente governantes e comentando publicamente casos que “ensombravam”
o governo.
Agora, o PR, em coerência com o passado, deveria ter avisado
que, não sendo aprovado o OE 2025, haveria novas eleições. Porém, limitou-se a
vaticinar que, não sendo aprovado o OE, haverá crise política e económica.
Supõe novas eleições? Estará à espera das sondagens? Não se sabe. Deu
entenderes claros de que o PS deveria viabilizar o OE 2025 e de que o partido
do governo deveria aproximar-se de posições da oposição. Neste sentido, referiu
que o interesse nacional está para lá do programa do governo.
Por fim, tendo convocado um Conselho de Estado para análise
da situação económico-financeira, obviamente com pronunciamentos sobre o OE (no
que, a meu ver, o Conselho de Estado não tem competências: cabe-lhe aconselhar
o PR em decisões que este deva tomar), o PR veio declarar que não dirá mais
nada sobre o OE 2025, porque já disse tudo o que havia a dizer e porque algo
que dissesse sobre o tema não adiantaria nada e até poderia ser contraproducente.
Foi pena chegar tão tarde a essa conclusão. No entanto, suspendeu a viagem à
Estónia e à Polónia, como se alguém acredite que permanecerá, no país,
silencioso, em relação a esta matéria.
No quadro dos cronistas e comentadores, há asserções para
todos os gostos. Destaco algumas, a título de exemplo.
Dizem alguns, entre os quais Marques Mendes, que o PS devia
viabilizar o OE 2025, como fez Marcelo Rebelo de Sousa (MRS), em nome do
interesse nacional, quando era líder do Partido Social Democrata (PSD), face ao
governo minoritário de António Guterres, em tempo de discussão europeia sobre a
moeda única (MRS viabilizou três orçamentos, pela abstenção). Esquecem que MRS exigiu
contrapartidas a António Guterres, sendo a mais relevante, o estabelecimento
constitucional do referendo, aquando da revisão da Constituição da República Portuguesa (CRP), em 1997, e, por conseguinte, a realização de dois referendos
em 1998: um sobre a regionalização; e outro sobre a interrupção voluntaria da
gravidez. Em ambos, venceu o “não”. Acresce dizer que, nos termos do atual
articulado da CRP (ver artigos 255.º
e 256.º), é muito difícil a instituição em concreto das regiões administrativas.
Dizem que não se deve ir para eleições agora, pois temos
guerra na Ucrânia e no Médio Oriente. Ora bem. Também já tínhamos essas
guerras, respetivamente, desde 24 de fevereiro de 2022 e desde 7 de outubro de
2023, a inflação estava em alta e, em 2022, ainda não havíamos saído totalmente
da crise pandémica da covid-19. E ninguém teve pejo (a não ser o PS) em ir para
eleições em 2022 e em 2024.
Fala-se de prejuízo para o Plano de Recuperação e Resiliência
(PRR), mas já o tínhamos em 2022. Só que o PRR, agora, “está em melhores mãos”
(!).
Assim, em 2023, perante a demissão, forçada pelos “acontecimentos”
(um parágrafo num comunicado), o PR decidiu (embora sem o voto maioritário no
Conselho de Estado) convocar eleições, não aceitando outro líder de governo a
partir do partido com maioria parlamentar
Outros entendem que o secretário-geral do PS deve deixar passar
o OE 2025 e não querer ser “primeiro-ministro do primeiro-ministro”. Foi a
Aliança Democrática (AD) que ganhou as eleições, por isso, deve governar sem
entraves.
Dizem que, se o PS viabilizar o orçamento, exigindo
contrapartidas, fica vinculado à sua execução o que não é verdade, como também
não o seria, se votasse a favor, pois uma coisa é a lei e outra é a sua
execução. Porém, se o PS viabilizar o orçamento, em nome do interesse nacional,
não exigindo contrapartidas, não fica vinculado à sua execução. Ora, se invocar
o interesse nacional (conceito demasiado vago e manipulado segundo as óticas
partidárias), deve zelar pela sua preservação.
Também se diz que o PS, se não votou a rejeição do programa
do governo, deveria viabilizar o OE 2025. Não há nexo necessário entre um
instrumento e outro. O programa é uma carta de intenções, ao passo que o OE é
um instrumento previsional de organização e planeamento para o ano económico (embora
em articulação com anos anteriores e subsequentes), que implica previsão de
receitas, a partir de determinadas fontes, e de despesas global e por setores –
que precisa de afinação e monitorização constante.
Da parte de alguns partidos, a estranheza das presentes
negociações consiste em o governo estar a negociar, à vez, com o PS e com o
Chega. Com o PS, o governo tem reuniões publicitadas; com o Chega, tem reuniões
secretas, segundo os comentadores, e discretas, segundo o governo.
Na verdade, o PS, para viabilizar o OE 2025, pode fazê-lo
pela abstenção; já o Chega, para o viabilizar, tem de oferecer o voto
favorável, pois não basta a sua abstenção, se o PS votar contra.
Do meu ponto de vista, para conseguir a viabilização do OE
2025 com o Chega, o governo terá de fazer aproximações várias a opções deste
partido. Resta saber se o “não é não” de Luís Montenegro se manterá intacto.
Do lado do Chega, que poderia viabilizar o OE 2025, em nome
do interesse nacional, sem aproximação da AD às suas posições, está a
“irrevogável” decisão de votar “contra”, se o governo não negociar. Porém, já
vimos decisões irrevogáveis que foram revogadas, não sei se em nome do
interesse nacional.
Quanto à possibilidade de eleições antecipadas, neste
momento, há que referir que, se o PR as quiser marcar, é uma legitimidade que
lhe assiste. Tantas eleições consecutivas cansarão o eleitorado, mas são o
principal recurso em democracia. Previsivelmente, quem ganhará com elas será a
AD e o governo, que se vitimizará e apresentará o rol de medidas PowerPoint que gizou, os benefícios
sociais em marcha e a resolução de problemas remuneratórios de vários grupos
profissionais. Ficarão prejudicados os partidos mais à esquerda, que não
tiveram tempo de se revitalizarem; o PS, como responsável pela queda do
governo; e o Chega, cuja atuação não é vista como tendo sentido de Estado, mas
como aproveitamento do espaço público para mostrar poder.
Negociar implica diálogo e aproximação de posições. Não há, pois,
razoabilidade no postura do líder do maior partido da oposição a afirmar que prefere
perder eleições a abandonar algumas convicções. Em política, há linhas
vermelhas, mas não cor de sangue. Por outro lado, o governo não pode fazer
finca-pé em duas ou três prioridades irrevogáveis. Não tendo maioria absoluta
deve governar, negociando. As negociações fazem-se previamente ao debate
parlamentar e durante este, mas fora das pantalhas do plenário e das comissões.
Nas sessões formais, o guião já deve estar preparado. O improviso, nestas matérias,
é inimigo da eficiência e da eficácia.
Ora, o orçamento, apesar de ser necessário e importante, não
é vaca sagrada da Índia. Como disse, é o instrumento de organização,
planeamento e gestão dos negócios do Estado, mas não dispensa a vigilância da
parte de um membro do governo (por exemplo, do secretário de Estado do Orçamento)
e de uma direção-geral ou equivalente.
Quanto à desejável realização eventual de eleições antecipadas
por parte da AD, é de referir que o eleitorado pode surpreender, penalizando
quem, eleito para governar, atira o poder pela janela.
Por fim, como não queria que o PR ficasse na História como o
modelo do que não deve ser o mandato de um chefe de Estado, gostaria que fosse
menos interveniente em público, que exercesse a sua magistratura de influência
com os outros poderes de forma discreta, sem interferir abusivamente nos seus tempos,
tendo a paciência de esperar pelo “tempo do Presidente”.
De facto, é confrangedor, para crítico, que seja amigo do
chefe de Estado, ver, por exemplo, no blogue “Causa nossa”, do
constitucionalista Vital Moreira, 50 posts
sob o título “O que o Presidente não deve fazer”. Ao invés do que dizem alguns
comentadores, o PR não disse sobre o OE 2025 tudo como devia. Disse, antecipadamente,
coisas demais, não respeitando o tempo dos partidos, do governo e da AR. E a separação
de poderes dos diversos órgãos de soberania, articulada com a interdependência,
é imperativo constitucional (ver CRP,
artigo 111.º, n.º 1).
2024.10.05
– Louro de Carvalho
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