Prestes a deixar o cargo de provedora de Justiça Europeia, que ocupa
desde 2013, Emily O’Reilly, entrevistada no programa “Global Conversation” da Euronews, referiu, entre os vários temas, que a Comissão Europeia “precisa
de ser mais responsabilizada, mais transparente sobre quais os poderes que a
influenciam e estar aberta a ouvir todas as partes interessadas”, abordou a
limitação de poderes de alguns órgãos da União Europeia (UE) e reiterou a preocupação
com o acordo de migração assinado com a Tunísia, num contexto de maior
influência da extrema-direita na Europa.
Recentemente, abriu um inquérito à Comissão Europeia pelo aligeiramento
de algumas regras da Política Agrícola Comum (PAC), a qual paga muito dinheiro
aos agricultores, que fizeram grandes protestos, durante este ano. Neste âmbito,
Emily O’Reilly prometeu analisar
documentos e entrevistar os funcionários envolvidos. Com efeito, as alterações à
PAC pareciam tornar o que os agricultores tinham de fazer, em relação à
proteção ambiental, um pouco menos dispendioso e menos difícil. E foi na sequência
das grandes manifestações de agricultores que foram feitas tais alterações, o que
deixou preocupadas as organizações envolvidas na proteção ambiental.
Logo que a Provedoria de Justiça, que monitoriza o nível de
transparência das instituições da UE, tenha
respostas, decidirá sobre se tudo se fez de forma correta, se é preciso fazer recomendações ou se bastará dar “orientações
gerais, em relação à forma de gerir, adequadamente, estas questões específicas
que preocupam muito os cidadãos”.
A Provedoria
de Justiça tem a perceção de alguma
injustiça no tratamento dos vários interessados nesta matéria, sendo esse um
dos temas do seu trabalho. Na verdade, como recorda Emily O’Reilly,
Bruxelas “é o segundo maior centro de lóbi do Mundo, a seguir a
Washington”, pelo que “os cidadãos têm o direito de saber como são feitos os
regulamentos e quem os influencia”.
Considerando que, sendo o lóbi importante e que a maioria dos seus
agentes está registada e é bem conhecida, a questão coloca-se em relação aos consultores
e especialistas convidados (até consta que um académico alemão terá recebido
150 mil euros por seis meses, aconselhar sobre agricultura), o que leva à
perceção da falta de transparência sobre quem toma decisões ou sobre quem é
consultado.
Neste aspeto, a entrevistada sustenta que, ao invés do que se diz, a
Comissão Europeia “é bastante
pequena, em comparação com as administrações dos estados-membros”; e, como “não
tem, internamente, todos os especialistas de que precisa, quando está a fazer regulamentos
ou a dar pareceres, convida vários especialistas dos diferentes setores
sobre os quais está a trabalhar”. A questão que se coloca é “o equilíbrio
destes grupos de especialistas”. Uma grande empresa pode pagar a muitas pessoas,
para serem os seus olhos e ouvidos em Bruxelas, mas uma organização não-governamental
(ONG) com baixo orçamento não tem a mesma capacidade de mobilizar muitas
pessoas para descobrir o que quer que seja. Por isso, a Comissão tem de
garantir que as vozes das ONG, da sociedade civil e de outros são tão ouvidas
tanto como as outras vozes. Ora, este
equilíbrio está melhor, depois de todos estes anos, pois “há uma maior
consciência disso”, na Comissão, por causa do trabalho da Provedoria de Justiça,
dos media e da sociedade civil. Porém, “às vezes, ainda surgem problemas” e “as
coisas são analisadas caso a caso. Não obstante, “há uma maior aceitação da
necessidade de um maior equilíbrio, quando estão a ser decididas grandes
questões de interesse público”, porque “a voz de todos tem de ser ouvida”.
Sobre a troca de mensagens da presidente da Comissão Europeia com o
diretor executivo da Pfizer, durante a crise da covid-19, para um contrato
sobre vacinas, com a recusa de Ursula von der Leyen em divulgar os conteúdos das
mensagens, a ainda provedora diz que o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE)
vai tratar de tudo. E logo se verá.
Descobriu-se
ter havido má gestão, pois, inicialmente, a Comissão não considerava as
mensagens SMS (mensagens de texto) como documentos. Todavia, segundo o
Regulamento 1049, o que faz documento não é o meio, mas o assunto. Isto “não
quer dizer que tenham de ser imediatamente divulgados”. Podem até ser
verificados, em relação às exceções previstas no Regulamento 1049. Assim, a
provedora criticou a Comissão. E, depois, o New York Times, o meio de comunicação que, originalmente, deu a
notícia, “levou a Comissão a tribunal”. Não se sabe quando decorrerá o processo
judicial, mas será “bom para todos”, pois haverá clarificação da questão pelo
TJUE.
Para já, a Comissão
deu orientações aos funcionários, em relação à preservação das mensagens de
texto e à forma como estas devem ser, devidamente, registadas e publicadas. “Agora
todos nós sabemos que, se estivermos a fazer negócios no nosso WhatsApp, no
Snapchat ou no que quer que seja, sobretudo, se formos administração pública,
(estas mensagens) podem ser divulgadas”, considera a provedora.
A dificuldade de acesso a documentos é uma das maiores queixas junto da Provedoria
de Justiça. Cerca de um
quarto ou até mais das queixas são conexas com a transparência, em geral, e com
o acesso a documentos, que é onde há mais resistência.
A provedora
dá-se bem e trabalha bem com a Comissão, tendo acesso a documentos e a casos. Porém,
às vezes, há “grandes atrasos”. Por isso e como se tratava de matéria
importante, Emily O’Reilly, em 2023,
apresentou um relatório especial ao Parlamento Europeu (PE) – só fez isso duas
vezes, em 11 anos. O PE apoiou o trabalho e as recomendações da
Provedoria de Justiça. Ver-se-á o que acontecerá com a nova Comissão. De facto,
pensa-se que as questões de transparência e de acesso a documentos apenas dizem
respeito às ONG, à sociedade civil, aos académicos, ao provedor de Justiça, mas
têm “importância vital, porque, ao abrigo do Tratado (da União Europeia), os
cidadãos têm o direito de participar na vida da União”.
A provedora não pensa que se trate de uma cultura de secretismo ou apenas
de burocracia, mas do facto de as administrações tenderem a ficar na defensiva.
Ora, a posição normal quanto ao acesso,
nos tratados e na regulamentação, é publicar, dar acesso. Assim que tiver
acesso aos documentos, é preciso pensar: “Como é que posso disponibilizar
isto?”. Porém, na prática, a tendência é a inversa: Como impedir que isto seja
divulgado, se houver um problema específico?
***
Ao facto de Ursula von der Leyen ter sido reeleita e de ter apresentado
os 26 nomeados para a nova Comissão, seguindo-se o escrutínio do PE, a questão
que se levanta é se o PE tem ferramentas suficientes para escrutinar se existem,
de facto, suspeitas de conflito de interesses.
Segundo a
entrevistada, o PE tem poderes de investigação, mas não os mesmos, por exemplo,
da Procuradoria de Justiça Europeia ou do Organismo Europeu de Luta Antifraude (OLAF). Pode, assim, haver
problemas com alguns comissários designados, mas o mais importante é saber se
este PE garantirá que a Comissão será responsabilizada.
Confrontada com o escândalo de corrupção que envolveu membros do PE no
fim de 2022 (Qatargate), que ainda está nos tribunais, e questionada se as
novas regras são suficientemente fortes para impedir que os eurodeputados
cometam irregularidades, Emily O’Reilly sustenta que “as regras foram
reforçadas, em
relação à gravação das reuniões que estão a ter”. Porém, a questão tem sido
sobre o que acontece, se alguém violar uma regra específica. Efetivamente, nem
a Comissão nem o PE escaparam à autorregulação. Por exemplo, uma comissão do PE
analisa as alegadas violações dos vários códigos, regras e por aí adiante. Depois,
responde à presidente, que decide. Houve uma iniciativa para que especialistas
independentes integrassem esta comissão, mas foi rejeitada pelo PE. Ou seja, as
pessoas que estão na comissão são membros do PE.
Assim, tem havido alguma tensão entre o OLAF
e o PE. O OLAF acredita que, nos termos do seu estatuto, tem o direito de
investigar o PE como investiga qualquer outra instituição, podendo entrar nos gabinetes,
olhando para os computadores e assim por diante. O PE discorda. Por exemplo, aquando do
Qatargate, terão os serviços de
segurança da Bélgica e talvez de outros países a descobrir tudo. E o diretor do
OLAF disse que o PE precisa de lhe dar o mesmo acesso que as outras instituições
lhe dão.
Outra questão importante que se levanta, durante as transições, após as
eleições é que muitos funcionários, incluindo os comissários, saem e vão
trabalhar para o setor privado. A isto a entrevistada contrapõe que Ursula von der Leyen escreveu aos comissários
cessantes a lembrar-lhes das obrigações em relação ao período de transição.
Resta saber “se isto vai ser monitorizado, de forma adequada”.
Quanto às alterações a fazer à regulamentação sobre o resgate no mar (mais
de 500 pessoas morreram, em 2023, no Mar Mediterrâneo), a provedora aponta a Frontex, a Agência da Guarda Costeira e de
Fronteiras. As pessoas esperavam que tivesse um papel na busca e salvamento.
Mas ela foi muito clara e disse que está para monitorizar, que a sua função não
é de busca e salvamento. Ora, segundo Emily
O’Reilly, isso deve mudar. É lamentável que não haja uma operação proativa
de busca e salvamento na UE (a Provedoria de Justiça descobriu-o, durante a sua
investigação).
Este deve ser um trabalho conjunto europeu, como foi, no passado, depois
da guerra na Síria.
Muitas ONG
tentaram fazer missões de resgate no Mediterrâneo, mas foram ameaçadas com
processos ou acusações. Também a Frontex, depois destes incidentes acontecerem,
fica sob o controlo das autoridades do estado-membro que dirige a operação. Não
pode agir de forma independente. Em quatro ocasiões em que isto aconteceu,
antes de o barco se virar, a Frontex tentou contactar as autoridades gregas, para
oferecer ajuda, mas nem obteve resposta. Depois, a Provedoria de Justiça juntou
tudo e entregou ao PE. “Este é o fosso entre o que os cidadãos, provavelmente,
pensam que podem fazer e o que, realmente, acontece na prática, de acordo com a
lei. E, se quiserem corrigir essa lacuna, podem corrigir”, considera a
entrevistada.
Sobre o Pacto de Migração e Asilo (PMA), como desafio fundamental nesta
matéria, Emily O’Reilly sustenta que “foram feitos
ótimos relatos sobre o que está a acontecer em alguns destes países”. Recentemente,
o jornal The Guardian, do Reino
Unido, publicou uma grande reportagem sobre o que acontece aos migrantes
na Tunísia. A UE tem agora um memorando de entendimento com a Tunísia,
dá-lhe dinheiro em troca de ajuda para impedir a passagem de
migrantes. E a Comissão sabe dos riscos, pois tem de saber que estão a ser
cometidos abusos.
Foi
questionada a Comissão se tinha avaliado o impacto sobre os direitos
fundamentais, antes de fazer o acordo. Não o fez, mas há cláusulas de direitos
humanos nos contratos feitos com as organizações de implementação, “os
organismos que gastam o dinheiro na Tunísia”.
Mais uma vez, falta “monitorizar e acompanhar essas cláusulas”. Contudo,
é de ter em conta que “é muito
difícil fazer uma queixa, em relação a sentir que os abusos ocorreram”. Por
outro lado, surge a questão de saber se a UE está preparada para travar o
financiamento ou para recuperar o dinheiro, se considerar que os direitos
humanos estão a ser violados. Isto é politicamente difícil, pois “a Europa está
a deslocar-se para a direita e a migração é usada como um instrumento de
poder por determinados grupos, determinados líderes políticos”, vinca a provedora.
Por fim, Emily O’Reilly deixa um
conselho ao sucessor: “Faça o que é suposto fazer.” E descreveu, em traços
largos, a Provedoria de Justiça Europeia: “um gabinete pequeno com um grande
mandato” ou “o cão de guarda de toda a administração europeia”; não “um pequeno
escritório que lida com pequenas queixas, mantendo a cabeça baixa”. “O provedor
tem mesmo que ocupar
este papel”, o que ela diz ter tentado fazer nos últimos 11 anos.
***
Enfim,
aqui fica uma parte significativa do retrato da UE, que tem dificuldade em ser
a pátria dos cidadãos e se torna, muitas vezes, a açoteia da burocracia, com
portas abertas para os lóbis, mas sem uma janela para os cidadãos. Assim, como
é que pode ser voz com autoridade no Mundo?
2024.10.04 – Louro
de Carvalho
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