sexta-feira, 4 de outubro de 2024

“Os cidadãos têm o direito de saber como são feitos os regulamentos”

 

Prestes a deixar o cargo de provedora de Justiça Europeia, que ocupa desde 2013, Emily O’Reilly, entrevistada no programa “Global Conversation” da Euronews, referiu, entre os vários temas, que a Comissão Europeia “precisa de ser mais responsabilizada, mais transparente sobre quais os poderes que a influenciam e estar aberta a ouvir todas as partes interessadas”, abordou a limitação de poderes de alguns órgãos da União Europeia (UE) e reiterou a preocupação com o acordo de migração assinado com a Tunísia, num contexto de maior influência da extrema-direita na Europa.

Recentemente, abriu um inquérito à Comissão Europeia pelo aligeiramento de algumas regras da Política Agrícola Comum (PAC), a qual paga muito dinheiro aos agricultores, que fizeram grandes protestos, durante este ano. Neste âmbito, Emily O’Reilly prometeu analisar documentos e entrevistar os funcionários envolvidos. Com efeito, as alterações à PAC pareciam tornar o que os agricultores tinham de fazer, em relação à proteção ambiental, um pouco menos dispendioso e menos difícil. E foi na sequência das grandes manifestações de agricultores que foram feitas tais alterações, o que deixou preocupadas as organizações envolvidas na proteção ambiental.

Logo que a Provedoria de Justiça, que monitoriza o nível de transparência das instituições da UE, tenha respostas, decidirá sobre se tudo se fez de forma correta, se é preciso fazer recomendações ou se bastará dar “orientações gerais, em relação à forma de gerir, adequadamente, estas questões específicas que preocupam muito os cidadãos”.

A Provedoria de Justiça tem a perceção de alguma injustiça no tratamento dos vários interessados nesta matéria, sendo esse um dos temas do seu trabalho. Na verdade, como recorda Emily O’Reilly, Bruxelasé o segundo maior centro de lóbi do Mundo, a seguir a Washington”, pelo que “os cidadãos têm o direito de saber como são feitos os regulamentos e quem os influencia”.

Considerando que, sendo o lóbi importante e que a maioria dos seus agentes está registada e é bem conhecida, a questão coloca-se em relação aos consultores e especialistas convidados (até consta que um académico alemão terá recebido 150 mil euros por seis meses, aconselhar sobre agricultura), o que leva à perceção da falta de transparência sobre quem toma decisões ou sobre quem é consultado.

Neste aspeto, a entrevistada sustenta que, ao invés do que se diz, a Comissão Europeia “é bastante pequena, em comparação com as administrações dos estados-membros”; e, como “não tem, internamente, todos os especialistas de que precisa, quando está a fazer regulamentos ou a dar pareceres, convida vários especialistas dos diferentes setores sobre os quais está a trabalhar”. A questão que se coloca é “o equilíbrio destes grupos de especialistas”. Uma grande empresa pode pagar a muitas pessoas, para serem os seus olhos e ouvidos em Bruxelas, mas uma organização não-governamental (ONG) com baixo orçamento não tem a mesma capacidade de mobilizar muitas pessoas para descobrir o que quer que seja. Por isso, a Comissão tem de garantir que as vozes das ONG, da sociedade civil e de outros são tão ouvidas tanto como as outras vozes. Ora, este equilíbrio está melhor, depois de todos estes anos, pois “há uma maior consciência disso”, na Comissão, por causa do trabalho da Provedoria de Justiça, dos media e da sociedade civil. Porém, “às vezes, ainda surgem problemas” e “as coisas são analisadas caso a caso. Não obstante, “há uma maior aceitação da necessidade de um maior equilíbrio, quando estão a ser decididas grandes questões de interesse público”, porque “a voz de todos tem de ser ouvida”.

Sobre a troca de mensagens da presidente da Comissão Europeia com o diretor executivo da Pfizer, durante a crise da covid-19, para um contrato sobre vacinas, com a recusa de Ursula von der Leyen em divulgar os conteúdos das mensagens, a ainda provedora diz que o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) vai tratar de tudo. E logo se verá.

Descobriu-se ter havido má gestão, pois, inicialmente, a Comissão não considerava as mensagens SMS (mensagens de texto) como documentos. Todavia, segundo o Regulamento 1049, o que faz documento não é o meio, mas o assunto. Isto “não quer dizer que tenham de ser imediatamente divulgados”. Podem até ser verificados, em relação às exceções previstas no Regulamento 1049. Assim, a provedora criticou a Comissão. E, depois, o New York Times, o meio de comunicação que, originalmente, deu a notícia, “levou a Comissão a tribunal”. Não se sabe quando decorrerá o processo judicial, mas será “bom para todos”, pois haverá clarificação da questão pelo TJUE.

Para já, a Comissão deu orientações aos funcionários, em relação à preservação das mensagens de texto e à forma como estas devem ser, devidamente, registadas e publicadas. “Agora todos nós sabemos que, se estivermos a fazer negócios no nosso WhatsApp, no Snapchat ou no que quer que seja, sobretudo, se formos administração pública, (estas mensagens) podem ser divulgadas”, considera a provedora.

A dificuldade de acesso a documentos é uma das maiores queixas junto da Provedoria de Justiça. Cerca de um quarto ou até mais das queixas são conexas com a transparência, em geral, e com o acesso a documentos, que é onde há mais resistência.

A provedora dá-se bem e trabalha bem com a Comissão, tendo acesso a documentos e a casos. Porém, às vezes, há “grandes atrasos”. Por isso e como se tratava de matéria importante, Emily O’Reilly, em 2023, apresentou um relatório especial ao Parlamento Europeu (PE) – só fez isso duas vezes, em 11 anos. O PE apoiou o trabalho e as recomendações da Provedoria de Justiça. Ver-se-á o que acontecerá com a nova Comissão. De facto, pensa-se que as questões de transparência e de acesso a documentos apenas dizem respeito às ONG, à sociedade civil, aos académicos, ao provedor de Justiça, mas têm “importância vital, porque, ao abrigo do Tratado (da União Europeia), os cidadãos têm o direito de participar na vida da União”.

A provedora não pensa que se trate de uma cultura de secretismo ou apenas de burocracia, mas do facto de as administrações tenderem a ficar na defensiva. Ora, a posição normal quanto ao acesso, nos tratados e na regulamentação, é publicar, dar acesso. Assim que tiver acesso aos documentos, é preciso pensar: “Como é que posso disponibilizar isto?”. Porém, na prática, a tendência é a inversa: Como impedir que isto seja divulgado, se houver um problema específico?

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Ao facto de Ursula von der Leyen ter sido reeleita e de ter apresentado os 26 nomeados para a nova Comissão, seguindo-se o escrutínio do PE, a questão que se levanta é se o PE tem ferramentas suficientes para escrutinar se existem, de facto, suspeitas de conflito de interesses.

Segundo a entrevistada, o PE tem poderes de investigação, mas não os mesmos, por exemplo, da Procuradoria de Justiça Europeia ou do Organismo Europeu de Luta Antifraude (OLAF). Pode, assim, haver problemas com alguns comissários designados, mas o mais importante é saber se este PE garantirá que a Comissão será responsabilizada.

Confrontada com o escândalo de corrupção que envolveu membros do PE no fim de 2022 (Qatargate), que ainda está nos tribunais, e questionada se as novas regras são suficientemente fortes para impedir que os eurodeputados cometam irregularidades, Emily O’Reilly sustenta que “as regras foram reforçadas, em relação à gravação das reuniões que estão a ter”. Porém, a questão tem sido sobre o que acontece, se alguém violar uma regra específica. Efetivamente, nem a Comissão nem o PE escaparam à autorregulação. Por exemplo, uma comissão do PE analisa as alegadas violações dos vários códigos, regras e por aí adiante. Depois, responde à presidente, que decide. Houve uma iniciativa para que especialistas independentes integrassem esta comissão, mas foi rejeitada pelo PE. Ou seja, as pessoas que estão na comissão são membros do PE.

Assim, tem havido alguma tensão entre o OLAF e o PE. O OLAF acredita que, nos termos do seu estatuto, tem o direito de investigar o PE como investiga qualquer outra instituição, podendo entrar nos gabinetes, olhando para os computadores e assim por diante. O PE discorda. Por exemplo, aquando do Qatargate, terão os serviços de segurança da Bélgica e talvez de outros países a descobrir tudo. E o diretor do OLAF disse que o PE precisa de lhe dar o mesmo acesso que as outras instituições lhe dão.

Outra questão importante que se levanta, durante as transições, após as eleições é que muitos funcionários, incluindo os comissários, saem e vão trabalhar para o setor privado. A isto a entrevistada contrapõe que Ursula von der Leyen escreveu aos comissários cessantes a lembrar-lhes das obrigações em relação ao período de transição. Resta saber “se isto vai ser monitorizado, de forma adequada”.

Quanto às alterações a fazer à regulamentação sobre o resgate no mar (mais de 500 pessoas morreram, em 2023, no Mar Mediterrâneo), a provedora aponta a Frontex, a Agência da Guarda Costeira e de Fronteiras. As pessoas esperavam que tivesse um papel na busca e salvamento. Mas ela foi muito clara e disse que está para monitorizar, que a sua função não é de busca e salvamento. Ora, segundo Emily O’Reilly, isso deve mudar. É lamentável que não haja uma operação proativa de busca e salvamento na UE (a Provedoria de Justiça descobriu-o, durante a sua investigação).  

Este deve ser um trabalho conjunto europeu, como foi, no passado, depois da guerra na Síria.

Muitas ONG tentaram fazer missões de resgate no Mediterrâneo, mas foram ameaçadas com processos ou acusações. Também a Frontex, depois destes incidentes acontecerem, fica sob o controlo das autoridades do estado-membro que dirige a operação. Não pode agir de forma independente. Em quatro ocasiões em que isto aconteceu, antes de o barco se virar, a Frontex tentou contactar as autoridades gregas, para oferecer ajuda, mas nem obteve resposta. Depois, a Provedoria de Justiça juntou tudo e entregou ao PE. “Este é o fosso entre o que os cidadãos, provavelmente, pensam que podem fazer e o que, realmente, acontece na prática, de acordo com a lei. E, se quiserem corrigir essa lacuna, podem corrigir”, considera a entrevistada.

Sobre o Pacto de Migração e Asilo (PMA), como desafio fundamental nesta matéria, Emily O’Reilly sustenta que “foram feitos ótimos relatos sobre o que está a acontecer em alguns destes países”. Recentemente, o jornal The Guardian, do Reino Unido, publicou uma grande reportagem sobre o que acontece aos migrantes na Tunísia. A UE tem agora um memorando de entendimento com a Tunísia, dá-lhe dinheiro em troca de ajuda para impedir a passagem de migrantes. E a Comissão sabe dos riscos, pois tem de saber que estão a ser cometidos abusos.

Foi questionada a Comissão se tinha avaliado o impacto sobre os direitos fundamentais, antes de fazer o acordo. Não o fez, mas há cláusulas de direitos humanos nos contratos feitos com as organizações de implementação, “os organismos que gastam o dinheiro na Tunísia”.

Mais uma vez, falta “monitorizar e acompanhar essas cláusulas”. Contudo, é de ter em conta que “é muito difícil fazer uma queixa, em relação a sentir que os abusos ocorreram”. Por outro lado, surge a questão de saber se a UE está preparada para travar o financiamento ou para recuperar o dinheiro, se considerar que os direitos humanos estão a ser violados. Isto é politicamente difícil, pois “a Europa está a deslocar-se para a direita e a migração é usada como um instrumento de poder por determinados grupos, determinados líderes políticos”, vinca a provedora.

Por fim, Emily O’Reilly deixa um conselho ao sucessor: “Faça o que é suposto fazer.” E descreveu, em traços largos, a Provedoria de Justiça Europeia: “um gabinete pequeno com um grande mandato” ou “o cão de guarda de toda a administração europeia”; não “um pequeno escritório que lida com pequenas queixas, mantendo a cabeça baixa”. “O provedor tem mesmo que ocupar este papel”, o que ela diz ter tentado fazer nos últimos 11 anos.

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Enfim, aqui fica uma parte significativa do retrato da UE, que tem dificuldade em ser a pátria dos cidadãos e se torna, muitas vezes, a açoteia da burocracia, com portas abertas para os lóbis, mas sem uma janela para os cidadãos. Assim, como é que pode ser voz com autoridade no Mundo?

2024.10.04 – Louro de Carvalho

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