quinta-feira, 3 de outubro de 2024

Limite de idade pode impedir Amadeu Guerra de concluir o mandato

 

Fiquei surpreendido com o geral aplauso à escolha de Amadeu Guerra – de 69 anos de idade e aposentado desde há quatro anos –, para procurador-geral da República.

O aplauso veio de todos os partidos, embora com alguns líderes a lamentar que o governo não os tenha ouvido – mas com o secretário-geral do Partido Socialista (PS) a referir que fora informado da escolha antes da sua divulgação e que nenhuma norma legal impõe que o principal partido da oposição seja consultado para o efeito –, tal como veio da generalidade dos magistrados judiciais e do Ministério Público (MP), incluindo a incumbente, dos diversos cronistas e comentadores na comunicação social e até de alguns advogados. A exceção à regra terá sido a bastonária da Ordem dos Advogados (OA), que referiu não competir à Ordem pronunciar-se sobre a escolha em causa, mas que lhe desejava sucesso no desempenho do cargo.

É certo que alguém, sustentando que Amadeu Guerra fora o braço direito de Joana Marques Vidal (como elogio), referia que dela se desentendera e batera com a porta, deixando o cargo de diretor do Departamento de Investigação e Ação Penal (DCIAP). Exerceu-o entre 2013 e 2019.   

Por mim, estranhei que a escolha tivesse recaído numa pessoa aposentada há quatro anos, doente e perto de completar 70 anos de idade. E lembrei-me de que o penalista Costa Andrade, então jubilado e de 72 anos de idade, fora eleito pela Assembleia da República (AR) para juiz do Tribunal Constitucional (TC) e cujos pares elegeram como presidente. Manteve-se no cargo durante dois anos. Também um reitor de uma Universidade foi impedido de se recandidatar, porque, a meio do mandato, completaria 70 anos de idade. Por isso, estranhei a escolha.  

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Entretanto, o vice-presidente do Conselho Superior da Magistratura (CSM), juiz conselheiro Luís Azevedo Mendes, defendeu, a 2 de outubro, a revisão do limite de idade para cargos de liderança nas magistraturas, incluindo os de procurador-geral da República e de presidente do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) e alertou que o atual limite de idade pode impedir o recém-nomeado procurador-geral da República, Amadeu Guerra, de 69 anos, de concluir o seu mandato.

Efetivamente, Amadeu Guerra, cuja tomada de posse está agendada para 12 de outubro, está a cerca de três meses de atingir os 70 anos, pois completá-los-á a 9 de janeiro de 2025.

Segundo uma nota do CSM, Luís Azevedo Mendes falava num debate promovido pelo Tribunal da Relação de Évora (TRE), para fazer um balanço sobre os 10 anos da reforma judiciária e para analisar os desafios futuros na área da Justiça. E apontou a necessidade de rever regras relacionadas com o limite de idade para cargos de liderança nas magistraturas, alertando que o limite de idade atual pode impedir que o recém-nomeado procurador-geral da República, Amadeu Guerra, 69 anos, conclua o seu mandato, como acontece com o atual presidente do STJ, João Cura Mariano, e aconteceu com os dois anteriores presidentes daquele tribunal superior, Henrique Araújo e António Joaquim Piçarra.

Na opinião do vice-presidente do CSM, é necessário reconsiderar estas regras e permitir que os mandatos destes cargos de confiança possam ir além dos 70 anos de idade.

Durante o debate, Luís Azevedo Mendes abordou ainda temas como o envelhecimento dos juízes, a necessidade de uma nova abordagem no recrutamento de juízes e nas vantagens de maior cooperação entre o CSM e o Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais (CSTAF), partilhando, por exemplo, infraestruturas, recursos tecnológicos e meios humanos, preservando cada um as suas competências. E destacou o trabalho do CSM na área das novas tecnologias, “assumindo o esforço para ter o controlo das plataformas tecnológicas utilizadas pelos tribunais”, numa alusão ao SEGIP – Sistema Eletrónico de Informação Processual, que está a ser utilizado para apoiar os megaprocessos.

A questão foi, inicialmente, levantada pelo antigo PGR José Cunha Rodrigues, que defendeu a alteração da lei, e subscrita, agora, pelo vice-presidente do CSM, para quem é necessário reconsiderar as regras, permitindo que os mandatos na liderança das magistraturas judicial e o Ministério Público possam ir além dos 70 anos de idade. Porém, ao invés do que eu penso, estes crânios sustentam que a lei deve ser alterada e não cumprida.

Por sua vez, o governo rejeita que o limite de 70 anos de idade para o exercício de funções de magistrados se aplique ao recém-nomeado procurador-geral da República (PGR), considerando ser “uma falsa questão”. “O governo considera que é uma falsa questão, pois não há qualquer limite legal quanto à idade do procurador-geral da República. Os limites previstos na lei aplicam-se às funções de magistrado (isto é, quando exerçam funções da magistratura, o que não é o caso do PGR – que até poderia não ser um magistrado) ou a funcionários públicos (que o PGR nitidamente não é)”, defendeu o Ministério da Justiça (MJ), em resposta à Lusa.

Assim, o gabinete da ministra Rita Alarcão Júdice sublinhou que, “como o PGR não está no exercício de funções de magistrado, nem de funcionário público, esse problema não se põe”.

Na verdade, o artigo 175.º do Estatuto dos Magistrados do Ministério Público (EMP) estabelece que o procurador-geral da República é nomeado e exonerado nos termos da Constituição; que o seu mandato tem a duração de seis anos, sem prejuízo do disposto na alínea m) do artigo 133.º da Constituição (o governo pode livremente propor ao chefe de Estado a nomeação ou a exoneração); que a nomeação implica a exoneração de anterior cargo, quando recaia em magistrado judicial ou do MP ou em trabalhador com vínculo de emprego público; que, após a cessação de funções, o procurador-geral da República nomeado nestes termos tem direito a reingressar no quadro de origem, sem perda de antiguidade e do direito à promoção; que, se não for magistrado judicial ou do MP ou trabalhador com vínculo de emprego público é aplicável o disposto no artigo 29.º da Lei n.º 4/85, de 9 de abril (direito a subsídio em caso de incapacidade); que, se for magistrado, o tempo de serviço desempenhado no cargo conta por inteiro, como se o tivesse prestado na magistratura, indo ocupar o lugar que lhe competiria, se não tivesse interrompido o exercício da função, nomeadamente, sem prejuízo das promoções e do acesso a que entretanto tivesse direito; e que, sendo nomeado procurador-geral da República um magistrado judicial que, na altura da nomeação, se encontre graduado para o STJ, aquele tem direito, na data em que cessar funções, à reconstituição da situação que teria, caso aquela nomeação não tivesse ocorrido.

Nestes termos, a escolha pode não recair num magistrado, nem em alguém ligado à função pública. Pode ser, por exemplo, advogado ou professor de direito de uma universidade privada. Porém, o artigo 13.º do EMP estabelece que são magistrados do MP: “a) o procurador-geral da República; b) o vice-procurador-geral da República; c) os procuradores-gerais-adjuntos; d) os procuradores da República; e) os magistrados do Ministério Público na qualidade de procuradores europeus delegados; f) o magistrado do Ministério Público representante de Portugal na EUROJUST e respetivos adjunto e assistente.

Nestes termos, o procurador-geral da República, independentemente da sua proveniência, exerce funções de magistrado. Também os juízes do TC podem não ser magistrados, mas, no exercício do mandato, são juízes-conselheiros.

Além disso, o artigo 193.º, n.º 1, alínea a), do EMP estabelece que os magistrados do MP cessam funções “No dia em que completem 70 anos de idade”. Assim, a lei não constitui um regime de exceção para o procurador-geral da República. Contudo, depois que vi um decreto-lei (aprovado em Conselho de Ministros e promulgado pelo atual Presidente da República) a retirar os administradores da Caixa Geral de Depósitos do Estatuto do Gestor Público (EGP) e, a seguir, o chefe de Estado vir defender que eram obrigados a declarar ao TC os seus rendimentos e o seu património, por estarem integrados no EGP, tudo é possível.

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Quem não se dá pelos ajustes é o antigo primeiro-ministro (PM) José Sócrates, que veio criticar, a 3 de outubro, a escolha de Amadeu Guerra para procurador-geral da República, argumentando que existe uma violação do EMP.

Embora o ex-PM esteja desacreditado na opinião pública, a sua crítica merece atenção.

Refere que “é a primeira vez que se nomeia alguém já reformado e perto de fazer 70 anos”. Depois, considera que “a ele não se aplicarão os artigos 13.º e 193.º da lei do Estatuto do Ministério Público – o primeiro diz que o procurador-geral [da República] é magistrado; o segundo diz que todos os magistrados cessarão funções no dia em que fizerem 70 anos”. “Uma lei para todos, outra para o novo PGR. Assim começa um mandato dedicado à “defesa da legalidade democrática”, atira.

Todavia, José Sócrates ataca a escolha do antigo diretor do DCIAP e ex-procurador regional de Lisboa para procurador-geral da República, considerando que foi responsável pela sua prisão preventiva “sem acusação” e que a sua nomeação irá beneficiar de uma exceção à lei.

Numa declaração enviada à comunicação social, intitulada “Prémio de carreira”, o antigo secretário-geral do PS refere que se diz “para aí, com indisfarçado júbilo, que o novo procurador-geral foi responsável pela Operação Marquês”, processo em que, de acordo com um acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa (TRL), José Sócrates deverá ser julgado por três crimes de corrupção, 13 de branqueamento e seis de fraude. “Não me parece que lhe possamos negar essa responsabilidade. Não assinou a acusação, é certo, mas foi responsável”, frisa o antigo PM, dando como exemplos, entre outras situações e casos, “a transmissão televisiva” da sua detenção no aeroporto de Lisboa quando, regressava de Paris a novembro de 2014, e “a invocação do perigo de fuga, quando estava a entrar no país, não a sair”.

Segundo José Sócrates, o magistrado foi responsável pela prisão preventiva de 11 meses sem acusação, pela violação dos prazos de inquérito e pelos crimes de violação do segredo de justiça.

Em relação a outros processos judiciais, também segundo Sócrates, foi responsável pelo inquérito da EDP, há 12 anos, sem acusação (agora com mais um mês de adiamento); pelo inquérito das parcerias público-privadas, que esteve 10 anos em investigação e que ainda espera instrução (12 anos depois); pelo arquivamento do processo dos submarinos; e pela decisão de não investigar a suspeita levantada na carta rogatória do MP brasileiro, uma alusão ao alegado caso de financiamento da campanha eleitoral do Partido Social Democrata (PSD), em 2015.

No entanto, para José Sócrates, a Operação Marquês “tirou do espaço público um antigo primeiro-ministro, impediu a sua candidatura a Presidente da República e impediu ainda que o PS ganhasse as eleições legislativas de 2015. […] Dez anos depois, recebe o seu prémio de carreira: a nomeação como procurador-geral. E com o aplauso de todos, todos os da política”, crítica ao PS.

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Amadeu Guerra assume funções, quando o escrutínio à ação da Justiça, em geral, e do MP, em particular, está mais vigoroso do que nunca, um escrutínio saudável em democracia robusta que incide sobre os outros pilares do Estado de Direito, como são os poderes executivo e legislativo. 

A escolha de Amadeu Guerra, que dirigiu o DCIAP, com os processos mais complexos de criminalidade organizada, não mereceu a unanimidade de aplausos, segundo Valentina Marcelino, pois “quem só olha para alguns dos processos mais mediáticos, que envolvem figuras políticas, tem dificuldade em reconhecer-lhe competência na forma como os geriu”. Por exemplo, a Operação Marquês começou torta e nunca se endireitou. Foi megalómana, a alimentar tabloides com inúmeras violações do segredo de justiça, quando, tendo em conta a magnitude do que estava em causa (suspeitas de corrupção de um chefe de governo) deveria ter sido acusação à prova de bala, com factos seguros, para chegar rapidamente a julgamento. Porém, teve os seus sucessos.

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Penso que a coordenação do MP é demasiado espinhosa para uma pessoa com mais de 70 anos. Teve sucessos Amadeu Guerra? Obviamente. Contudo, é difícil um magistrado não conhecer alguns insucessos e não ter cometido alguns erros. O elogio generalizado pareceu-me ou hipócrita ou de júbilo (apenas pela despedida de lucília Gago, o que é pouco). Tenho dito.

2024.10.03 – Louro de Carvalho

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