sábado, 5 de outubro de 2024

Macron apela à total suspensão das exportações de armas para Israel

 

No dia 5 de outubro, dia em que, em muitas cidades de países europeus, houve manifestações pelo fim da guerra em Gaza, o presidente francês, Emmanuel Macron, lançou apelo urgente a que se ponha termo ao fornecimento de armas a Israel, no meio de críticas crescentes à operação de retaliação em Gaza. Esta declaração constitui significativa mudança na posição internacional sobre o conflito israelo-palestiniano.

Macron, frisando a prioridade de “regressar a uma solução política”, afirmou, categoricamente, que a França não envia armas para Israel, distanciando assim o seu país de qualquer envolvimento direto no conflito e sublinhando a necessidade de procurar alternativas diplomáticas.

De acordo com o Instituto Internacional de Investigação sobre a Paz de Estocolmo (SIPRI), “a última exportação de armas importantes da França para Israel foi em 1998”, mas a França tem fornecido “componentes para armas”.

Em fevereiro de 2024, Sébastien Lecornu, ministro francês das Forças Armadas, disse à comissão parlamentar de defesa que as exportações da França para Israel eram apenas de “componentes básicos”, principalmente, para serem reexportados por Israel, e acrescentou que, desde outubro de 2023, tinha dado instruções para que houvesse maior rigor na exportação de componentes “e que o governo procurava ser “irrepreensível” no atinente às exportações de armas para Israel.

Esta tomada de posição de Macron reflete a crescente preocupação internacional com o conflito em Gaza e poderá assinalar importante mudança nas políticas de exportação de armas dos países ocidentais para Israel.

O presidente francês falou à rádio France Inter, afirmando que “a prioridade é regressar a uma solução política, deixar de fornecer armas para levar a cabo os combates em Gaza”, pelo que a França não fornece armas a Israel, para atacar Gaza.

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A tomada de posição de Emmanuel Macron vem na sequência da carta dirigida ao responsável pela diplomacia europeia, a 27 de setembro, em que dezenas de eurodeputados pedem a Josep Borrell que inclua as propostas dos subscritores na ordem de trabalhos da reunião do Conselho da União Europeia (UE), como forma de “restaurar a credibilidade internacional da Europa”.

Considerando, que a 23 de setembro, o exército israelita bombardeou várias zonas do Líbano, nomeadamente, bairros residenciais, matando cerca de 500 pessoas, incluindo, pelo menos, 35 crianças, e ferindo mais de 700 pessoas – isto, na sequência da explosão de milhares de engenhos na semana anterior, que mataram cerca de 40 pessoas e feriram mais de 3400 pessoas, na sua maioria civis, incluindo crianças e profissionais de saúde –, conclui-se pela confirmação de que “Israel não está interessado num acordo de paz ou na libertação dos reféns”.

Com efeito, “o objetivo destas ações é alargar o conflito no Médio Oriente, continuar o genocídio em Gaza e provocar o envolvimento do Irão, com graves consequências para a estabilidade global”. “O completo desrespeito do governo israelita pela vida humana pelos direitos humanos e pelo direito internacional” é claro para toda a gente, como o demonstraram as recentes votações na Assembleia-Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), reza a carta.

Excetuando as declarações e posições inequívocas de Josep Borrell, “o silêncio cúmplice da maioria das instituições e dos estados-membros da UE sobre as ações de Israel, em flagrante contraste com as suas posições claras e ações decisivas em relação a outros conflitos, está a corroer o que resta da credibilidade da União, como defensora do direito internacional, da paz e dos direitos humanos”. E o fornecimento contínuo de armas a Israel diz muito sobre o nosso papel nesta tragédia e torna a UE, no seu conjunto, “moral e juridicamente corresponsável pelos crimes sem fim que estão a ser cometidos perante os nossos olhos”.

Ao arrepio do artigo 2.º do Acordo de Associação UE-Israel, que estabelece que as relações entre as partes (bem como de todas as disposições do próprio acordo) “devem basear-se no respeito pelos direitos humanos e pelos princípios democráticos, que orientam a sua política interna e internacional”, sustentam, sem qualquer fundamento razoável, que o Estado de Israel está a defender o “respeito pelos direitos humanos” que constitui “um elemento essencial deste acordo”.

Por tudo isto, os deputados do Parlamento Europeu (PE) subscritores da carta apelam a Josep Borrell a que volte a incluir na ordem de trabalhos da reunião do Conselho e a que os Ministros dos Negócios Estrangeiros da UE suspendam, imediatamente, o Acordo de Associação UE-Israel e a aplicação de um embargo de armas, até que seja alcançado um acordo de paz duradouro. Na verdade, segundo os subscritores, “estas iniciativas são essenciais, para restaurar a credibilidade internacional da Europa, e cruciais, para permitir esforços sérios e multilaterais no sentido de uma solução diplomática.

Creem que não é tarde para a UE “desempenhar um papel positivo nestes acontecimentos” e sustentam que “não podemos anular os danos causados pelas armas europeias utilizadas para massacrar crianças na Palestina e no Líbano”, mas que “podemos e devemos fazer tudo o que estiver ao nosso alcance para pôr termo a este vergonhoso e interminável ciclo de violência”.

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Estão agendadas manifestações em massa, em várias cidades europeias, incluindo Londres, Berlim, Paris e Roma, com maiores protestos previstos de 5 de a 7 de outubro.

De acordo com a sede da polícia, pelo menos sete mil pessoas saíram às ruas da Piazzale Ostiense, em Roma, apesar da recusa das autoridades locais em autorizar protestos na capital, invocando preocupações de segurança pública com o risco de “glorificação” do atentado de 7 de outubro.

O Ministro do Interior, Matteo Piantedosi, sublinhou que, na véspera deste aniversário importante, a Europa está em alerta máximo para possíveis ataques terroristas. “Esta não é uma situação normal: estamos já numa condição de prevenção máxima”, afirmou.

Da praça, que foi isolada pela polícia, ouviram-se gritos contra Israel e contra o presidente dos Estados Unidos da América (EUA), Joe Biden. “A Itália deixou de vender e enviar armas a Israel, ponha fim imediato ao genocídio em Gaza”, gritaram alguns manifestantes, repetindo, depois: “A revolução começou a 7 de outubro” e “Somos todos antissionistas”.

Ao meio-dia de sábado 5 de outubro, milhares de pessoas reuniram-se em Russell Square, no centro de Londres, com uma grande presença policial. Alguns dos organizadores da marcha disseram que tencionavam atingir empresas e instituições considerados “cúmplices dos crimes de Israel”, incluindo o Barclays Bank e o Museu Britânico. Ben Jamal, diretor da Campanha de Solidariedade com a Palestina, no Reino Unido, disse que ele e outros continuariam a organizar marchas, até que fossem tomadas medidas contra Israel. “Precisamos de ir para a rua, em maior número, para acabar com este massacre e impedir que o Reino Unido seja apanhado nele”, vincou.

Ao invés da maioria das instituições de ensino superior, em Portugal, o Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra (UC) anunciou a suspensão de todas as colaborações que tinha com instituições israelitas, invocando “a flagrante violação do direito internacional e dos direitos humanos do povo palestiniano, que tem vindo a ser perpetrada pelo Estado de Israel, na Faixa de Gaza, e a crescente violência infligida à população palestiniana residente na Cisjordânia”, lê-se em comunicado publicado pela instituição, no fim de setembro.

“Numa altura em que todas as universidades de Gaza foram destruídas ou severamente danificadas, e tendo em consideração os princípios e a missão deste centro de investigação, propomo-nos contribuir para o esforço global de paz e justiça na região. A comunidade académica tem o dever particular de promover a justiça e a igualdade”, acrescenta o comunicado.

No sentido oposto, as universidades portuguesas têm descartado o corte de relações com instituições congéneres em Israel. De acordo com o jornal Expresso, “apesar de garantir que a paz e o direito internacional serão sempre defendidos”, o presidente do Conselho de Reitores das Universidades Portuguesas (CRUP) afirmou, em maio, que será adotada uma posição diferente da que tem vindo a ser exigida por vários movimentos estudantis em Portugal, que pedem o corte de relações entre as universidades dos dois países.

Em Berlim, está prevista para domingo, dia 6, uma marcha da Porta de Brandeburgo até à Bebelplatz. Os meios de comunicação social locais informaram que as forças de segurança alertaram para uma possível sobrecarga, devido à dimensão dos protestos. As autoridades alemãs sublinharam o aumento dos incidentes de antissemitismo e de violência nos últimos dias.

Também se registam protestos noutras partes do Mundo. Por exemplo, nas Filipinas, dezenas de ativistas de esquerda protestaram junto à embaixada dos EUA, em Manila, onde a polícia os impediu de se aproximarem da estância balnear.

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O primeiro-ministro israelita já veio a terreiro criticar o presidente francês e os países francófonos que pediram a suspensão do fornecimento de armas a Israel, por causa da guerra em Gaza e no Líbano. “Enquanto Israel luta contra as forças da barbárie lideradas pelo Irão, todos os países civilizados devem apoiar Israel com firmeza. No entanto, o presidente Macron e outros líderes ocidentais estão, agora, a pedir embargos de armas contra Israel. Deveriam ter vergonha”, afirmou Benjamin Netanyahu, insistindo que o seu país está a travar uma guerra, em várias frentes, contra organizações apoiadas pelo Irão, o inimigo declarado de Israel.

“O Irão impõe um embargo de armas ao Hezbollah, aos ‘Houthis’ (rebeldes no Iémen), ao Hamas e aos seus outros representantes? Claro que não”, afirmou.

“Este eixo do terror está unido, mas os países que, supostamente, se opõem a este eixo de terror estão a pedir um embargo de armas a Israel. É uma pena”, acrescentou Netanyahu, assegurando que o seu país vai vencer, de qualquer modo, e advertiu: “Tenham a certeza de que Israel lutará até que a batalha seja ganha, para o nosso bem e para o bem da paz e da segurança no mundo.”

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A guerra continua. Na tarde de 5 de outubro, um ataque israelita a um campo de refugiados, no Norte do Líbano, matou Saeed Atallah Ali, um dos responsáveis das Brigadas Al Qassam, o braço militar do grupo palestiniano Hamas.

O ataque atingiu a casa onde Saeed Atallah Ali vivia, matando também a mulher e duas filhas. A casa estava localizada no campo de Beddawi, perto de Trípoli, a segunda maior cidade do país.

Este ataque decorreu um dia depois de Israel ter cortado a principal autoestrada que liga o Líbano à Síria, durante outro ataque que deixou duas crateras de ambos os lados da estrada.

A situação na fronteira do Líbano tem estado sob tensão, desde o ataque do Hamas, a 7 de outubro de 2023, com Israel e o Hezbollah a trocar fogo quase diariamente. Porém, o conflito intensificou-se, quando Israel lançou uma invasão terrestre ao Líbano. Israel disse que estava a realizar “ataques terrestres direcionados”, com o objetivo de atingir o Hezbollah.

Do lado libanês, quase duas mil pessoas foram mortas e 1,2 milhões de pessoas fugiram de casa. A maioria destas mortes e deslocamentos diz respeito às últimas semanas.

À medida que o conflito aumenta, vários países estão a organizar missões e evacuação. No dia 4 de outubro, à noite, chegaram a Portugal 16 nacionais e familiares vindos do Líbano, num total de 41 pessoas que pediram para sair do país. O grupo foi transportado num avião da Força Aérea Portuguesa e recebido, em Lisboa, pelo ministro dos Negócios Estrangeiros português, Paulo Rangel. Os Países Baixos repatriaram mais de 180 nacionais e familiares. A bordo do avião, que aterrou na Base Aérea de Eindhoven, seguiam também um cidadão belga, um irlandês e um finlandês. O Ministério dos Negócios Estrangeiros dos Países Baixos está a organizar um segundo voo. E, na manhã do dia 5, um avião militar chegou à Coreia do Sul com 97 pessoas vindas do Líbano. Apenas cerca de 30 nacionais sul-coreanos permanecem no Líbano, sobretudo diplomatas e pessoal da embaixada.

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Peripécias da guerra, com a diplomacia a funcionar tarde, quando não ao contrário. Todavia, o Mundo merece a paz.

2024.10.05 - Louro de Carvalho

A saga do Orçamento do Estado para 2025

 

Muito se tem falado do Orçamento do Estado para 2025 (OE 2025), como se fosse uma vaca sagrada Índia. Pronunciam-se os partidos políticos, os comentadores e cronistas dos diversos meios de comunicação social e, o que tem dado mais nas vistas, o Presidente da República (PR).

O debate parlamentar em torno do OE 2025 ainda não começou, pois ainda não há proposta de lei apresentada pelo governo à Assembleia da República (AR).  

A conferência de líderes analisou, a 25 de setembro, uma proposta de calendário para a realização do debate na generalidade do OE 2025, em 30 e 31 de outubro, com votação final global prevista para 28 de novembro. E, perante os jornalistas, o porta-voz da conferência de líderes, o deputado social-democrata Jorge Paulo Oliveira, salientou que este calendário referente aos debates do Orçamento do Estado para o próximo ano ainda terá de ser objeto de consenso em sede de Comissão de Orçamento e Finanças, sendo esta, “por enquanto, datas indicativas”. Se esta calendarização merecer “luz verde” em Comissão de Orçamento e Finanças, o debate na especialidade do OE 2025 decorrerá, na AR, entre 22 e 28 de novembro.

Por lei, até 10 de outubro, o governo tem de entregar a proposta de Orçamento do Estado na AR.

No passado dia 12, o presidente da Comissão de Orçamento e Finanças, o deputado socialista Filipe Neto Brandão, já tinha proposto que a discussão na generalidade do Orçamento do Estado para 2025 fosse marcada para os dias 30 e 31 de outubro. Nessa calendarização, que foi objeto de uma primeira consensualização na Comissão de Orçamento e Finanças, apontou-se que a discussão orçamental deverá arrancar no dia 28 de outubro, com a audição, em sede de comissão, do ministro das Finanças, Joaquim Miranda Sarmento, seguindo-se, a 29, a audição da ministra do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, Maria do Rosário Palma Ramalho.

Portanto, a discussão que tem ocupado boa parte da ribalta pública é um exercício sobre algo que ainda não existe. Assim, acho esquisito que partidos políticos já tenham decidido votar contra a proposta do OE 2025, sem a conhecerem, embora lhe seja lícito exigir negociações.

Ao mesmo tempo, entendo que as intervenções do PR sobre esta matéria são excessivas, quando não descabidas e abusivas. É normal que o chefe de Estado deseje a aprovação do Orçamento do Estado e que tente exercer, também nesta matéria, a sua magistratura de influência (prerrogativa que os presidentes eleitos em democracia assumiram e propalaram, mas de duvidoso suporte constitucional). Com efeito, comandar, a nível supremo, as forças armadas, garantir a independência, a unidade do Estado e o regular funcionamento das instituições democráticas, bem como cumprir e fazer cumprir a Constituição ou poder enviar mensagens à AR, não conferem especial magistratura de influência presidencial (ver Constituição da República Portuguesa, artigo 120.º e artigo 133.º, alínea d)).

Todavia, como sucedeu em 2021, antes de a proposta do Orçamento entra na AR, o PR avisou que, se o OE 2022 não merecesse aprovação parlamentar, haveria dissolução da AR e convocação de eleições. Essa advertência por antecipação foi uma pressão abusiva, por interferência direta no funcionamento de outro órgão de soberania, constituído por eleição popular direta.

Ora, a rejeição parlamentar do OE 2022 não implicava, necessariamente, a convocação de eleições. Outros países europeus souberam gerir os negócios de Estado, governando no regime de duodécimos (segundo o último orçamento corrigido à taxa de inflação), sem se poder ultrapassar a despesa global, mas com a possibilidade de transferência de verbas entre rubricas orçamentais.

Como é de recordar, as eleições de 2022 conferiram a maioria absoluta ao Partido Socialista (PS), que o chefe de Estado, fazendo uma peculiar (e sem suporte constitucional) leitura dos resultados eleitorais, logo na posse do novo elenco governativo, colou à figura de António Costa, avisando que, se ele cessasse funções como primeiro-ministro, haveria novas eleições. Depois, foi mimando o governo com o designativo de maioria desgastada e requentada, interpelando publicamente governantes e comentando publicamente casos que “ensombravam” o governo.

Agora, o PR, em coerência com o passado, deveria ter avisado que, não sendo aprovado o OE 2025, haveria novas eleições. Porém, limitou-se a vaticinar que, não sendo aprovado o OE, haverá crise política e económica. Supõe novas eleições? Estará à espera das sondagens? Não se sabe. Deu entenderes claros de que o PS deveria viabilizar o OE 2025 e de que o partido do governo deveria aproximar-se de posições da oposição. Neste sentido, referiu que o interesse nacional está para lá do programa do governo.

Por fim, tendo convocado um Conselho de Estado para análise da situação económico-financeira, obviamente com pronunciamentos sobre o OE (no que, a meu ver, o Conselho de Estado não tem competências: cabe-lhe aconselhar o PR em decisões que este deva tomar), o PR veio declarar que não dirá mais nada sobre o OE 2025, porque já disse tudo o que havia a dizer e porque algo que dissesse sobre o tema não adiantaria nada e até poderia ser contraproducente. Foi pena chegar tão tarde a essa conclusão. No entanto, suspendeu a viagem à Estónia e à Polónia, como se alguém acredite que permanecerá, no país, silencioso, em relação a esta matéria.

No quadro dos cronistas e comentadores, há asserções para todos os gostos. Destaco algumas, a título de exemplo.

Dizem alguns, entre os quais Marques Mendes, que o PS devia viabilizar o OE 2025, como fez Marcelo Rebelo de Sousa (MRS), em nome do interesse nacional, quando era líder do Partido Social Democrata (PSD), face ao governo minoritário de António Guterres, em tempo de discussão europeia sobre a moeda única (MRS viabilizou três orçamentos, pela abstenção). Esquecem que MRS exigiu contrapartidas a António Guterres, sendo a mais relevante, o estabelecimento constitucional do referendo, aquando da revisão da Constituição da República Portuguesa (CRP), em 1997, e, por conseguinte, a realização de dois referendos em 1998: um sobre a regionalização; e outro sobre a interrupção voluntaria da gravidez. Em ambos, venceu o “não”. Acresce dizer que, nos termos do atual articulado da CRP (ver artigos 255.º e 256.º), é muito difícil a instituição em concreto das regiões administrativas.

Dizem que não se deve ir para eleições agora, pois temos guerra na Ucrânia e no Médio Oriente. Ora bem. Também já tínhamos essas guerras, respetivamente, desde 24 de fevereiro de 2022 e desde 7 de outubro de 2023, a inflação estava em alta e, em 2022, ainda não havíamos saído totalmente da crise pandémica da covid-19. E ninguém teve pejo (a não ser o PS) em ir para eleições em 2022 e em 2024.

Fala-se de prejuízo para o Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), mas já o tínhamos em 2022. Só que o PRR, agora, “está em melhores mãos” (!).  

Assim, em 2023, perante a demissão, forçada pelos “acontecimentos” (um parágrafo num comunicado), o PR decidiu (embora sem o voto maioritário no Conselho de Estado) convocar eleições, não aceitando outro líder de governo a partir do partido com maioria parlamentar

Outros entendem que o secretário-geral do PS deve deixar passar o OE 2025 e não querer ser “primeiro-ministro do primeiro-ministro”. Foi a Aliança Democrática (AD) que ganhou as eleições, por isso, deve governar sem entraves.

Dizem que, se o PS viabilizar o orçamento, exigindo contrapartidas, fica vinculado à sua execução o que não é verdade, como também não o seria, se votasse a favor, pois uma coisa é a lei e outra é a sua execução. Porém, se o PS viabilizar o orçamento, em nome do interesse nacional, não exigindo contrapartidas, não fica vinculado à sua execução. Ora, se invocar o interesse nacional (conceito demasiado vago e manipulado segundo as óticas partidárias), deve zelar pela sua preservação.

Também se diz que o PS, se não votou a rejeição do programa do governo, deveria viabilizar o OE 2025. Não há nexo necessário entre um instrumento e outro. O programa é uma carta de intenções, ao passo que o OE é um instrumento previsional de organização e planeamento para o ano económico (embora em articulação com anos anteriores e subsequentes), que implica previsão de receitas, a partir de determinadas fontes, e de despesas global e por setores – que precisa de afinação e monitorização constante.   

Da parte de alguns partidos, a estranheza das presentes negociações consiste em o governo estar a negociar, à vez, com o PS e com o Chega. Com o PS, o governo tem reuniões publicitadas; com o Chega, tem reuniões secretas, segundo os comentadores, e discretas, segundo o governo.  

Na verdade, o PS, para viabilizar o OE 2025, pode fazê-lo pela abstenção; já o Chega, para o viabilizar, tem de oferecer o voto favorável, pois não basta a sua abstenção, se o PS votar contra.

Do meu ponto de vista, para conseguir a viabilização do OE 2025 com o Chega, o governo terá de fazer aproximações várias a opções deste partido. Resta saber se o “não é não” de Luís Montenegro se manterá intacto.

Do lado do Chega, que poderia viabilizar o OE 2025, em nome do interesse nacional, sem aproximação da AD às suas posições, está a “irrevogável” decisão de votar “contra”, se o governo não negociar. Porém, já vimos decisões irrevogáveis que foram revogadas, não sei se em nome do interesse nacional.

Quanto à possibilidade de eleições antecipadas, neste momento, há que referir que, se o PR as quiser marcar, é uma legitimidade que lhe assiste. Tantas eleições consecutivas cansarão o eleitorado, mas são o principal recurso em democracia. Previsivelmente, quem ganhará com elas será a AD e o governo, que se vitimizará e apresentará o rol de medidas PowerPoint que gizou, os benefícios sociais em marcha e a resolução de problemas remuneratórios de vários grupos profissionais. Ficarão prejudicados os partidos mais à esquerda, que não tiveram tempo de se revitalizarem; o PS, como responsável pela queda do governo; e o Chega, cuja atuação não é vista como tendo sentido de Estado, mas como aproveitamento do espaço público para mostrar poder. 

Negociar implica diálogo e aproximação de posições. Não há, pois, razoabilidade no postura do líder do maior partido da oposição a afirmar que prefere perder eleições a abandonar algumas convicções. Em política, há linhas vermelhas, mas não cor de sangue. Por outro lado, o governo não pode fazer finca-pé em duas ou três prioridades irrevogáveis. Não tendo maioria absoluta deve governar, negociando. As negociações fazem-se previamente ao debate parlamentar e durante este, mas fora das pantalhas do plenário e das comissões. Nas sessões formais, o guião já deve estar preparado. O improviso, nestas matérias, é inimigo da eficiência e da eficácia.

Ora, o orçamento, apesar de ser necessário e importante, não é vaca sagrada da Índia. Como disse, é o instrumento de organização, planeamento e gestão dos negócios do Estado, mas não dispensa a vigilância da parte de um membro do governo (por exemplo, do secretário de Estado do Orçamento) e de uma direção-geral ou equivalente.

Quanto à desejável realização eventual de eleições antecipadas por parte da AD, é de referir que o eleitorado pode surpreender, penalizando quem, eleito para governar, atira o poder pela janela.

Por fim, como não queria que o PR ficasse na História como o modelo do que não deve ser o mandato de um chefe de Estado, gostaria que fosse menos interveniente em público, que exercesse a sua magistratura de influência com os outros poderes de forma discreta, sem interferir abusivamente nos seus tempos, tendo a paciência de esperar pelo “tempo do Presidente”.

De facto, é confrangedor, para crítico, que seja amigo do chefe de Estado, ver, por exemplo, no blogue “Causa nossa”, do constitucionalista Vital Moreira, 50 posts sob o título “O que o Presidente não deve fazer”. Ao invés do que dizem alguns comentadores, o PR não disse sobre o OE 2025 tudo como devia. Disse, antecipadamente, coisas demais, não respeitando o tempo dos partidos, do governo e da AR. E a separação de poderes dos diversos órgãos de soberania, articulada com a interdependência, é imperativo constitucional (ver CRP, artigo 111.º, n.º 1).      

2024.10.05 – Louro de Carvalho

Líder supremo do Irão elogia ataque a Israel: repetir-se-á, se necessário

 

Numa rara aparição, em cerca de cinco anos, o Ayatollah Ali Khamenei discursou, a 4 de outubro, em Teerão, perante uma multidão de milhares de pessoas, a legitimar o ataque iraniano a Israel.

“O que os decisores militares e políticos considerarem lógico, sensato e correto será feito a seu tempo. Foi feito [recentemente] e, no futuro, voltará a ser feito se necessário”, defendeu o líder supremo do Irão, caraterizando o ataque como o “castigo mínimo” para o que chamou de “crimes espantosos” de Israel.

É de recordar que o Irão lançou, a 1 de outubro, pelo menos, 180 mísseis contra Israel, no mais recente de uma série de ataques em rápida escalada entre Israel e o Irão e os seus aliados, que ameaçam empurrar o Médio Oriente para uma guerra em toda a região. O Irão afirmou que a maioria dos seus mísseis atingiu os alvos pretendidos, mas não houve relatos imediatos de vítimas. Israel afirmou ter intercetado muitos dos mísseis. E as autoridades de Washington disseram que os destroyers americanos ajudaram na defesa de Israel.

Agora, o líder supremo do Irão elogiou o Hezbollah e o Hamas, afirmando que cada ataque contra Israel é “um serviço para toda a região e para toda a Humanidade”. “O Hezbollah e o mártir Sayyed (Nasrallah), com a sua defesa de Gaza e a sua Jihad pela mesquita de Al-Aqsa, atingindo a entidade opressora e tirana, deram um passo em direção a um dever fatídico para com toda a região”, afirmou Khamenei, acrescentando: “Cada sucesso de um indivíduo ou de um grupo, em relação a esta entidade, é um serviço para toda a região e para toda a Humanidade.”

O ministro dos Negócios Estrangeiros do Irão, que viajou até Beirute, avisou Israel de que, se o país atacar o Irão, Teerão retaliará de forma mais forte que no passado. “Se a entidade israelita der qualquer passo ou medida contra nós, a nossa retaliação será mais forte do que a anterior”, disse Abbas Araghchi em conferência de imprensa, após reunião com o presidente do parlamento libanês, Nabih Berri, referindo-se ao recente ataque a Israel, frisando: “A nossa resposta será proporcional e totalmente calculada.”

No Líbano, os ataques aéreos israelitas prosseguiram e foram intensificados, durante a noite, incluindo perto do aeroporto de Beirute. Pelo menos 37 pessoas foram mortas nas últimas 24 horas, segundo informaram as autoridades libanesas na manhã do dia 4.

Israel mantém as ofensivas aéreas sobre o país, com os militares israelitas a ordenarem a retirada dos habitantes de mais de 30 aldeias do Sul do Líbano. E as Forças de Defesa de Israel (FDI) anunciaram, em comunicado, que eliminaram mais de dois mil alvos militares, nomeadamente, dos terroristas: “infraestruturas, edifícios militares, armazéns de armas”.

As FDI informaram que mataram o comandante do Hezbollah responsável pelas comunicações. Nos balanços realizados, a 4 de outubro, contabilizam-se dois mortos para o lado israelita com as FDI a anunciarem a morte de dois soldados, que operavam nas Brigadas Golani no Norte de Israel: Daniel Sofer e Tal Dror, ambos de 19 anos.

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Entretanto, os países da União Europeia (UE) continuam a retirar os seus cidadãos do Líbano, à medida que as hostilidades entre Israel e o Hezbollah se intensificam e os receios de uma guerra regional mais vasta no Médio Oriente aumentam.

A Alemanha retirou do país mais 130 dos seus cidadãos a bordo de um avião militar que aterrou em Frankfurt, no final da tarde do dia 3. Isto, depois de, a 30 de setembro, um avião militar alemão ter transportado 111 pessoas de Beirute para Berlim – famílias de diplomatas alemães, pessoal não essencial e alemães com problemas de saúde.

Os ministérios dos Negócios Estrangeiros e da Defesa alemães afirmaram que o Airbus A330 pertencente à Multinational Multi Role Tanker Transport Unit – frota internacional de transporte aéreo – foi enviado a Beirute, para trazer de volta alemães “particularmente ameaçados”. “Era um risco. Por isso, cada vez que saíamos à rua, era um risco. Onde quer que fossemos, pensávamos que ia acontecer alguma coisa”, disse Samira Salman, ao chegar ao aeroporto.

O Ministério dos Negócios Estrangeiros afirmou, num post no X, que o avião de evacuação trouxe cinco toneladas de ajuda, nomeadamente, equipamento médico, para Beirute.

A Grécia enviou um avião de transporte militar a Beirute, no dia 4, para trazer para casa cidadãos gregos e cipriotas que queriam deixar o Líbano. O C-130, que transportava 38 cipriotas e 22 gregos, aterrou em Larnaca, no Chipre, na tarde desse dia, antes de se dirigir para um aeródromo militar perto de Atenas, no final do dia. Alguns dos que chegaram em segurança a Chipre falaram do medo que sentiram e do que testemunharam. “Foram tempos muito difíceis, sobretudo na última semana. […] Havia muito barulho, era assustador. E ver os civis a sofrer. Foram tempos muito difíceis, especialmente para os meus filhos”, disse uma das pessoas retiradas.

O Ministério dos Negócios Estrangeiros grego criou linhas diretas para as quais os seus cidadãos que vivem no Líbano podem ligar, se precisarem de ajuda para abandonar o país.

A Espanha resgatou o primeiro grupo de cidadãos no dia 4, trazendo 250 pessoas a bordo de dois aviões militares, que aterraram na base aérea de Torrejón, a Leste de Madrid.

Muitos dos resgatados que falaram com a emissora espanhola TVE, no aeroporto de Beirute, disseram que tinham apenas alguns pertences com eles, pois estavam com muita pressa de partir.

“É terrível. Terrível. Ninguém consegue acreditar, não dá para acreditar, por causa da quantidade de bombas, por causa do som dos aviões que não nos deixa a noite toda”, disse um homem.

O Ministério dos Negócios Estrangeiros espanhol declarou que a situação no Líbano é tão grave que parte do pessoal da embaixada será retirada de Beirute num segundo avião, deixando apenas o pessoal necessário para realizar o trabalho diplomático essencial.

A França também começou a retirar os seus cidadãos, tendo o primeiro grupo chegado num dos quatro voos que aterraram no aeroporto Charles de Gaulle, em Paris. “Estou feliz por me ter reunido com a minha família. Mas estou triste por ter deixado o Líbano. A vida lá é muito difícil, especialmente nos últimos tempos. Mas agora sei que estou em segurança, que estou com a minha família”, disse uma mulher à chegada.

A embaixada francesa no Líbano terá negociado dois voos adicionais para Paris com a companhia aérea nacional libanesa MEA, enquanto a transportadora aérea Air France declarou que suspendeu todos os voos de passageiros para o Líbano até, pelo menos, 8 de outubro.

Mais de 300 cidadãos turcos e estrangeiros chegaram ao porto de Mersin, no Sul do país, num navio que partiu de Tripoli. Segundo a agência noticiosa IHA, o navio da Med Lines foi o terceiro a chegar a Mersin, nos últimos dias. Os passageiros viajaram, depois, para os países de origem, informou a IHA. “Vamos a Beirute para trabalhar, regularmente, durante três meses de cada vez. Mas as bombas começaram a explodir à esquerda, à direita, mesmo ao lado do nosso hotel. Não é como o que se vê na televisão, é um banho de sangue”, disse um cidadão turco.

A 1 de outubro, o Ministério dos Negócios Estrangeiros turco declarou que a situação de segurança no Líbano era suscetível de se deteriorar, que tinha criado uma linha direta de emergência para os cidadãos apresentarem pedidos de evacuação e que uma delegação que incluía funcionários do Ministério dos Negócios Estrangeiros, da Direção-Geral de Segurança e da Presidência da Gestão das Migrações foi enviada ao Líbano, para supervisionar o transporte.

Todas estas evacuações ocorreram depois que os militares israelitas avisaram as pessoas para abandonarem uma cidade e outras comunidades no Sul do Líbano que se encontram a Norte de uma zona tampão declarada pela Organização das Nações Unidas (ONU), dando a entender que poderão alargar a operação terrestre contra o grupo militante Hezbollah. De facto, Israel disse às pessoas para abandonarem Nabatieh, capital de província, e outras comunidades a Norte do rio Litani, que constitui o limite Norte da zona fronteiriça estabelecida pelo Conselho de Segurança da ONU, na sequência da guerra de 2006.

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Perante cenário de tanta gravidade, a Comissão Europeia anunciou, a 3 de outubro, mais 30 milhões de euros de ajuda humanitária no Líbano, montante que se junta aos 10 milhões de euros anunciados a 29 de setembro, elevando o total da ajuda humanitária da UE ao país para mais de 104 milhões, a fim de socorrer a população mais necessitada.

Os ataques de Israel ao país vizinho estão a criar nova crise humanitária, após a destruição da Faixa de Gaza, e a deixar o Líbano à beira do colapso. Por isso, a presidente da Comissão Europeia demonstrou preocupação com a escalada do conflito no Médio Oriente e apelou a um cessar-fogo imediato. “Estou extremamente preocupada com a constante escalada das tensões no Médio Oriente. Todas as partes devem fazer tudo o que estiver ao seu alcance para proteger a vida de civis inocentes. Hoje, estamos a intensificar a nossa ajuda humanitária ao povo do Líbano. O nosso novo financiamento garantirá que os civis recebam a tão necessária assistência, durante este período tão difícil. Continuamos a apelar a um cessar-fogo na fronteira com o Líbano e em Gaza, bem como à libertação de todos os reféns”, disse a líder do executivo da UE, em comunicado.

O conflito desencadeou uma deslocação sem precedentes da população no Líbano, tendo já provocado milhares de vítimas e feridos entre os civis. Ali, as pessoas, incluindo os refugiados, (cerca de 2 milhões de libaneses e refugiados) já estavam a viver níveis elevados de pobreza e de insegurança alimentar e tinham um acesso limitado aos serviços. Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), foram encerrados mais de 30 centros de cuidados de saúde primários, nas zonas afetadas do Líbano. O pessoal médico tem dificuldade em lidar com o afluxo diário de novos doentes e, ao abrigo dos planos de emergência do governo, os hospitais e os profissionais de saúde suspenderam as operações não urgentes. E OMS já fez chegar a Beirute o primeiro lote de material médico que mobilizou, chegando, um pouco mais tarde, novos lotes de ajuda.

Desde 2011, a UE afetou mais de 971 milhões de euros, em ajuda humanitária, para responder às necessidades da população, tanto libanesa como refugiada. Agravada a situação, especialmente desde 2019, a ajuda humanitária da UE está a ser entregue tanto aos sírios como aos libaneses mais necessitados. E a UE organizou uma série de conferências de Bruxelas sobre a Síria para dar resposta às necessidades dos refugiados sírios e das comunidades de acolhimento no Líbano.

“A situação humanitária é catastrófica”, disse Hassan Dbouk, chefe da unidade de gestão de catástrofes na cidade libanesa de Tiro citado pela Associated Press (AP), onde muitas pessoas procuraram refúgio. Não há provisões pré-posicionadas, tais como pacotes de alimentos, kits de higiene e colchões, e a deslocação de camiões é, agora, muito perigosa. Os agricultores foram impedidos de aceder às suas terras, devido aos bombardeamentos, e o município tem dificuldades em pagar os salários. Um dos quatro hospitais do distrito foi encerrado, após ter sofrido danos causados por uma greve que afetou o fornecimento de eletricidade e danificou a sala de operações. Em dois outros hospitais, foram partidos vidros de janelas. Por enquanto, os hospitais da cidade estão a receber mais mortos do que feridos.

Uma crise económica que começou em 2019 e a enorme explosão do porto de Beirute, em 2020, deixaram o Líbano com dificuldades em fornecer serviços básicos como eletricidade e cuidados médicos. As divisões políticas deixaram o país de seis milhões de habitantes sem presidente nem governo em funções, durante mais de dois anos, aprofundando um sentimento nacional de abandono que se estende às pessoas de quem o país depende em situações de emergência.

O Líbano está “a braços com múltiplas crises, que ultrapassaram a capacidade de resposta do país”, afirmou Imran Riza, coordenador humanitário da ONU para o Líbano.

Depois, o lixo acumula-se nas ruas de todo o Líbano, porque o número de funcionários municipais diminuiu de 160 para 10.

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Entretanto, enquanto os Houthis do Iémen, apoiados pelo Irão, visam, com drones, a capital israelita, Israel continua a atacar o Líbano, monta uma vaga de ataques aéreos mortais contra alvos dos Houthis e não exclui novos ataques ao Irão. É a dinâmica mortífera da guerra, até à eliminação do último palestiniano, segundo o primeiro-ministro de Israel.

2024.10.04 – Louro de Carvalho

sexta-feira, 4 de outubro de 2024

“Os cidadãos têm o direito de saber como são feitos os regulamentos”

 

Prestes a deixar o cargo de provedora de Justiça Europeia, que ocupa desde 2013, Emily O’Reilly, entrevistada no programa “Global Conversation” da Euronews, referiu, entre os vários temas, que a Comissão Europeia “precisa de ser mais responsabilizada, mais transparente sobre quais os poderes que a influenciam e estar aberta a ouvir todas as partes interessadas”, abordou a limitação de poderes de alguns órgãos da União Europeia (UE) e reiterou a preocupação com o acordo de migração assinado com a Tunísia, num contexto de maior influência da extrema-direita na Europa.

Recentemente, abriu um inquérito à Comissão Europeia pelo aligeiramento de algumas regras da Política Agrícola Comum (PAC), a qual paga muito dinheiro aos agricultores, que fizeram grandes protestos, durante este ano. Neste âmbito, Emily O’Reilly prometeu analisar documentos e entrevistar os funcionários envolvidos. Com efeito, as alterações à PAC pareciam tornar o que os agricultores tinham de fazer, em relação à proteção ambiental, um pouco menos dispendioso e menos difícil. E foi na sequência das grandes manifestações de agricultores que foram feitas tais alterações, o que deixou preocupadas as organizações envolvidas na proteção ambiental.

Logo que a Provedoria de Justiça, que monitoriza o nível de transparência das instituições da UE, tenha respostas, decidirá sobre se tudo se fez de forma correta, se é preciso fazer recomendações ou se bastará dar “orientações gerais, em relação à forma de gerir, adequadamente, estas questões específicas que preocupam muito os cidadãos”.

A Provedoria de Justiça tem a perceção de alguma injustiça no tratamento dos vários interessados nesta matéria, sendo esse um dos temas do seu trabalho. Na verdade, como recorda Emily O’Reilly, Bruxelasé o segundo maior centro de lóbi do Mundo, a seguir a Washington”, pelo que “os cidadãos têm o direito de saber como são feitos os regulamentos e quem os influencia”.

Considerando que, sendo o lóbi importante e que a maioria dos seus agentes está registada e é bem conhecida, a questão coloca-se em relação aos consultores e especialistas convidados (até consta que um académico alemão terá recebido 150 mil euros por seis meses, aconselhar sobre agricultura), o que leva à perceção da falta de transparência sobre quem toma decisões ou sobre quem é consultado.

Neste aspeto, a entrevistada sustenta que, ao invés do que se diz, a Comissão Europeia “é bastante pequena, em comparação com as administrações dos estados-membros”; e, como “não tem, internamente, todos os especialistas de que precisa, quando está a fazer regulamentos ou a dar pareceres, convida vários especialistas dos diferentes setores sobre os quais está a trabalhar”. A questão que se coloca é “o equilíbrio destes grupos de especialistas”. Uma grande empresa pode pagar a muitas pessoas, para serem os seus olhos e ouvidos em Bruxelas, mas uma organização não-governamental (ONG) com baixo orçamento não tem a mesma capacidade de mobilizar muitas pessoas para descobrir o que quer que seja. Por isso, a Comissão tem de garantir que as vozes das ONG, da sociedade civil e de outros são tão ouvidas tanto como as outras vozes. Ora, este equilíbrio está melhor, depois de todos estes anos, pois “há uma maior consciência disso”, na Comissão, por causa do trabalho da Provedoria de Justiça, dos media e da sociedade civil. Porém, “às vezes, ainda surgem problemas” e “as coisas são analisadas caso a caso. Não obstante, “há uma maior aceitação da necessidade de um maior equilíbrio, quando estão a ser decididas grandes questões de interesse público”, porque “a voz de todos tem de ser ouvida”.

Sobre a troca de mensagens da presidente da Comissão Europeia com o diretor executivo da Pfizer, durante a crise da covid-19, para um contrato sobre vacinas, com a recusa de Ursula von der Leyen em divulgar os conteúdos das mensagens, a ainda provedora diz que o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) vai tratar de tudo. E logo se verá.

Descobriu-se ter havido má gestão, pois, inicialmente, a Comissão não considerava as mensagens SMS (mensagens de texto) como documentos. Todavia, segundo o Regulamento 1049, o que faz documento não é o meio, mas o assunto. Isto “não quer dizer que tenham de ser imediatamente divulgados”. Podem até ser verificados, em relação às exceções previstas no Regulamento 1049. Assim, a provedora criticou a Comissão. E, depois, o New York Times, o meio de comunicação que, originalmente, deu a notícia, “levou a Comissão a tribunal”. Não se sabe quando decorrerá o processo judicial, mas será “bom para todos”, pois haverá clarificação da questão pelo TJUE.

Para já, a Comissão deu orientações aos funcionários, em relação à preservação das mensagens de texto e à forma como estas devem ser, devidamente, registadas e publicadas. “Agora todos nós sabemos que, se estivermos a fazer negócios no nosso WhatsApp, no Snapchat ou no que quer que seja, sobretudo, se formos administração pública, (estas mensagens) podem ser divulgadas”, considera a provedora.

A dificuldade de acesso a documentos é uma das maiores queixas junto da Provedoria de Justiça. Cerca de um quarto ou até mais das queixas são conexas com a transparência, em geral, e com o acesso a documentos, que é onde há mais resistência.

A provedora dá-se bem e trabalha bem com a Comissão, tendo acesso a documentos e a casos. Porém, às vezes, há “grandes atrasos”. Por isso e como se tratava de matéria importante, Emily O’Reilly, em 2023, apresentou um relatório especial ao Parlamento Europeu (PE) – só fez isso duas vezes, em 11 anos. O PE apoiou o trabalho e as recomendações da Provedoria de Justiça. Ver-se-á o que acontecerá com a nova Comissão. De facto, pensa-se que as questões de transparência e de acesso a documentos apenas dizem respeito às ONG, à sociedade civil, aos académicos, ao provedor de Justiça, mas têm “importância vital, porque, ao abrigo do Tratado (da União Europeia), os cidadãos têm o direito de participar na vida da União”.

A provedora não pensa que se trate de uma cultura de secretismo ou apenas de burocracia, mas do facto de as administrações tenderem a ficar na defensiva. Ora, a posição normal quanto ao acesso, nos tratados e na regulamentação, é publicar, dar acesso. Assim que tiver acesso aos documentos, é preciso pensar: “Como é que posso disponibilizar isto?”. Porém, na prática, a tendência é a inversa: Como impedir que isto seja divulgado, se houver um problema específico?

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Ao facto de Ursula von der Leyen ter sido reeleita e de ter apresentado os 26 nomeados para a nova Comissão, seguindo-se o escrutínio do PE, a questão que se levanta é se o PE tem ferramentas suficientes para escrutinar se existem, de facto, suspeitas de conflito de interesses.

Segundo a entrevistada, o PE tem poderes de investigação, mas não os mesmos, por exemplo, da Procuradoria de Justiça Europeia ou do Organismo Europeu de Luta Antifraude (OLAF). Pode, assim, haver problemas com alguns comissários designados, mas o mais importante é saber se este PE garantirá que a Comissão será responsabilizada.

Confrontada com o escândalo de corrupção que envolveu membros do PE no fim de 2022 (Qatargate), que ainda está nos tribunais, e questionada se as novas regras são suficientemente fortes para impedir que os eurodeputados cometam irregularidades, Emily O’Reilly sustenta que “as regras foram reforçadas, em relação à gravação das reuniões que estão a ter”. Porém, a questão tem sido sobre o que acontece, se alguém violar uma regra específica. Efetivamente, nem a Comissão nem o PE escaparam à autorregulação. Por exemplo, uma comissão do PE analisa as alegadas violações dos vários códigos, regras e por aí adiante. Depois, responde à presidente, que decide. Houve uma iniciativa para que especialistas independentes integrassem esta comissão, mas foi rejeitada pelo PE. Ou seja, as pessoas que estão na comissão são membros do PE.

Assim, tem havido alguma tensão entre o OLAF e o PE. O OLAF acredita que, nos termos do seu estatuto, tem o direito de investigar o PE como investiga qualquer outra instituição, podendo entrar nos gabinetes, olhando para os computadores e assim por diante. O PE discorda. Por exemplo, aquando do Qatargate, terão os serviços de segurança da Bélgica e talvez de outros países a descobrir tudo. E o diretor do OLAF disse que o PE precisa de lhe dar o mesmo acesso que as outras instituições lhe dão.

Outra questão importante que se levanta, durante as transições, após as eleições é que muitos funcionários, incluindo os comissários, saem e vão trabalhar para o setor privado. A isto a entrevistada contrapõe que Ursula von der Leyen escreveu aos comissários cessantes a lembrar-lhes das obrigações em relação ao período de transição. Resta saber “se isto vai ser monitorizado, de forma adequada”.

Quanto às alterações a fazer à regulamentação sobre o resgate no mar (mais de 500 pessoas morreram, em 2023, no Mar Mediterrâneo), a provedora aponta a Frontex, a Agência da Guarda Costeira e de Fronteiras. As pessoas esperavam que tivesse um papel na busca e salvamento. Mas ela foi muito clara e disse que está para monitorizar, que a sua função não é de busca e salvamento. Ora, segundo Emily O’Reilly, isso deve mudar. É lamentável que não haja uma operação proativa de busca e salvamento na UE (a Provedoria de Justiça descobriu-o, durante a sua investigação).  

Este deve ser um trabalho conjunto europeu, como foi, no passado, depois da guerra na Síria.

Muitas ONG tentaram fazer missões de resgate no Mediterrâneo, mas foram ameaçadas com processos ou acusações. Também a Frontex, depois destes incidentes acontecerem, fica sob o controlo das autoridades do estado-membro que dirige a operação. Não pode agir de forma independente. Em quatro ocasiões em que isto aconteceu, antes de o barco se virar, a Frontex tentou contactar as autoridades gregas, para oferecer ajuda, mas nem obteve resposta. Depois, a Provedoria de Justiça juntou tudo e entregou ao PE. “Este é o fosso entre o que os cidadãos, provavelmente, pensam que podem fazer e o que, realmente, acontece na prática, de acordo com a lei. E, se quiserem corrigir essa lacuna, podem corrigir”, considera a entrevistada.

Sobre o Pacto de Migração e Asilo (PMA), como desafio fundamental nesta matéria, Emily O’Reilly sustenta que “foram feitos ótimos relatos sobre o que está a acontecer em alguns destes países”. Recentemente, o jornal The Guardian, do Reino Unido, publicou uma grande reportagem sobre o que acontece aos migrantes na Tunísia. A UE tem agora um memorando de entendimento com a Tunísia, dá-lhe dinheiro em troca de ajuda para impedir a passagem de migrantes. E a Comissão sabe dos riscos, pois tem de saber que estão a ser cometidos abusos.

Foi questionada a Comissão se tinha avaliado o impacto sobre os direitos fundamentais, antes de fazer o acordo. Não o fez, mas há cláusulas de direitos humanos nos contratos feitos com as organizações de implementação, “os organismos que gastam o dinheiro na Tunísia”.

Mais uma vez, falta “monitorizar e acompanhar essas cláusulas”. Contudo, é de ter em conta que “é muito difícil fazer uma queixa, em relação a sentir que os abusos ocorreram”. Por outro lado, surge a questão de saber se a UE está preparada para travar o financiamento ou para recuperar o dinheiro, se considerar que os direitos humanos estão a ser violados. Isto é politicamente difícil, pois “a Europa está a deslocar-se para a direita e a migração é usada como um instrumento de poder por determinados grupos, determinados líderes políticos”, vinca a provedora.

Por fim, Emily O’Reilly deixa um conselho ao sucessor: “Faça o que é suposto fazer.” E descreveu, em traços largos, a Provedoria de Justiça Europeia: “um gabinete pequeno com um grande mandato” ou “o cão de guarda de toda a administração europeia”; não “um pequeno escritório que lida com pequenas queixas, mantendo a cabeça baixa”. “O provedor tem mesmo que ocupar este papel”, o que ela diz ter tentado fazer nos últimos 11 anos.

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Enfim, aqui fica uma parte significativa do retrato da UE, que tem dificuldade em ser a pátria dos cidadãos e se torna, muitas vezes, a açoteia da burocracia, com portas abertas para os lóbis, mas sem uma janela para os cidadãos. Assim, como é que pode ser voz com autoridade no Mundo?

2024.10.04 – Louro de Carvalho

quinta-feira, 3 de outubro de 2024

Limite de idade pode impedir Amadeu Guerra de concluir o mandato

 

Fiquei surpreendido com o geral aplauso à escolha de Amadeu Guerra – de 69 anos de idade e aposentado desde há quatro anos –, para procurador-geral da República.

O aplauso veio de todos os partidos, embora com alguns líderes a lamentar que o governo não os tenha ouvido – mas com o secretário-geral do Partido Socialista (PS) a referir que fora informado da escolha antes da sua divulgação e que nenhuma norma legal impõe que o principal partido da oposição seja consultado para o efeito –, tal como veio da generalidade dos magistrados judiciais e do Ministério Público (MP), incluindo a incumbente, dos diversos cronistas e comentadores na comunicação social e até de alguns advogados. A exceção à regra terá sido a bastonária da Ordem dos Advogados (OA), que referiu não competir à Ordem pronunciar-se sobre a escolha em causa, mas que lhe desejava sucesso no desempenho do cargo.

É certo que alguém, sustentando que Amadeu Guerra fora o braço direito de Joana Marques Vidal (como elogio), referia que dela se desentendera e batera com a porta, deixando o cargo de diretor do Departamento de Investigação e Ação Penal (DCIAP). Exerceu-o entre 2013 e 2019.   

Por mim, estranhei que a escolha tivesse recaído numa pessoa aposentada há quatro anos, doente e perto de completar 70 anos de idade. E lembrei-me de que o penalista Costa Andrade, então jubilado e de 72 anos de idade, fora eleito pela Assembleia da República (AR) para juiz do Tribunal Constitucional (TC) e cujos pares elegeram como presidente. Manteve-se no cargo durante dois anos. Também um reitor de uma Universidade foi impedido de se recandidatar, porque, a meio do mandato, completaria 70 anos de idade. Por isso, estranhei a escolha.  

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Entretanto, o vice-presidente do Conselho Superior da Magistratura (CSM), juiz conselheiro Luís Azevedo Mendes, defendeu, a 2 de outubro, a revisão do limite de idade para cargos de liderança nas magistraturas, incluindo os de procurador-geral da República e de presidente do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) e alertou que o atual limite de idade pode impedir o recém-nomeado procurador-geral da República, Amadeu Guerra, de 69 anos, de concluir o seu mandato.

Efetivamente, Amadeu Guerra, cuja tomada de posse está agendada para 12 de outubro, está a cerca de três meses de atingir os 70 anos, pois completá-los-á a 9 de janeiro de 2025.

Segundo uma nota do CSM, Luís Azevedo Mendes falava num debate promovido pelo Tribunal da Relação de Évora (TRE), para fazer um balanço sobre os 10 anos da reforma judiciária e para analisar os desafios futuros na área da Justiça. E apontou a necessidade de rever regras relacionadas com o limite de idade para cargos de liderança nas magistraturas, alertando que o limite de idade atual pode impedir que o recém-nomeado procurador-geral da República, Amadeu Guerra, 69 anos, conclua o seu mandato, como acontece com o atual presidente do STJ, João Cura Mariano, e aconteceu com os dois anteriores presidentes daquele tribunal superior, Henrique Araújo e António Joaquim Piçarra.

Na opinião do vice-presidente do CSM, é necessário reconsiderar estas regras e permitir que os mandatos destes cargos de confiança possam ir além dos 70 anos de idade.

Durante o debate, Luís Azevedo Mendes abordou ainda temas como o envelhecimento dos juízes, a necessidade de uma nova abordagem no recrutamento de juízes e nas vantagens de maior cooperação entre o CSM e o Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais (CSTAF), partilhando, por exemplo, infraestruturas, recursos tecnológicos e meios humanos, preservando cada um as suas competências. E destacou o trabalho do CSM na área das novas tecnologias, “assumindo o esforço para ter o controlo das plataformas tecnológicas utilizadas pelos tribunais”, numa alusão ao SEGIP – Sistema Eletrónico de Informação Processual, que está a ser utilizado para apoiar os megaprocessos.

A questão foi, inicialmente, levantada pelo antigo PGR José Cunha Rodrigues, que defendeu a alteração da lei, e subscrita, agora, pelo vice-presidente do CSM, para quem é necessário reconsiderar as regras, permitindo que os mandatos na liderança das magistraturas judicial e o Ministério Público possam ir além dos 70 anos de idade. Porém, ao invés do que eu penso, estes crânios sustentam que a lei deve ser alterada e não cumprida.

Por sua vez, o governo rejeita que o limite de 70 anos de idade para o exercício de funções de magistrados se aplique ao recém-nomeado procurador-geral da República (PGR), considerando ser “uma falsa questão”. “O governo considera que é uma falsa questão, pois não há qualquer limite legal quanto à idade do procurador-geral da República. Os limites previstos na lei aplicam-se às funções de magistrado (isto é, quando exerçam funções da magistratura, o que não é o caso do PGR – que até poderia não ser um magistrado) ou a funcionários públicos (que o PGR nitidamente não é)”, defendeu o Ministério da Justiça (MJ), em resposta à Lusa.

Assim, o gabinete da ministra Rita Alarcão Júdice sublinhou que, “como o PGR não está no exercício de funções de magistrado, nem de funcionário público, esse problema não se põe”.

Na verdade, o artigo 175.º do Estatuto dos Magistrados do Ministério Público (EMP) estabelece que o procurador-geral da República é nomeado e exonerado nos termos da Constituição; que o seu mandato tem a duração de seis anos, sem prejuízo do disposto na alínea m) do artigo 133.º da Constituição (o governo pode livremente propor ao chefe de Estado a nomeação ou a exoneração); que a nomeação implica a exoneração de anterior cargo, quando recaia em magistrado judicial ou do MP ou em trabalhador com vínculo de emprego público; que, após a cessação de funções, o procurador-geral da República nomeado nestes termos tem direito a reingressar no quadro de origem, sem perda de antiguidade e do direito à promoção; que, se não for magistrado judicial ou do MP ou trabalhador com vínculo de emprego público é aplicável o disposto no artigo 29.º da Lei n.º 4/85, de 9 de abril (direito a subsídio em caso de incapacidade); que, se for magistrado, o tempo de serviço desempenhado no cargo conta por inteiro, como se o tivesse prestado na magistratura, indo ocupar o lugar que lhe competiria, se não tivesse interrompido o exercício da função, nomeadamente, sem prejuízo das promoções e do acesso a que entretanto tivesse direito; e que, sendo nomeado procurador-geral da República um magistrado judicial que, na altura da nomeação, se encontre graduado para o STJ, aquele tem direito, na data em que cessar funções, à reconstituição da situação que teria, caso aquela nomeação não tivesse ocorrido.

Nestes termos, a escolha pode não recair num magistrado, nem em alguém ligado à função pública. Pode ser, por exemplo, advogado ou professor de direito de uma universidade privada. Porém, o artigo 13.º do EMP estabelece que são magistrados do MP: “a) o procurador-geral da República; b) o vice-procurador-geral da República; c) os procuradores-gerais-adjuntos; d) os procuradores da República; e) os magistrados do Ministério Público na qualidade de procuradores europeus delegados; f) o magistrado do Ministério Público representante de Portugal na EUROJUST e respetivos adjunto e assistente.

Nestes termos, o procurador-geral da República, independentemente da sua proveniência, exerce funções de magistrado. Também os juízes do TC podem não ser magistrados, mas, no exercício do mandato, são juízes-conselheiros.

Além disso, o artigo 193.º, n.º 1, alínea a), do EMP estabelece que os magistrados do MP cessam funções “No dia em que completem 70 anos de idade”. Assim, a lei não constitui um regime de exceção para o procurador-geral da República. Contudo, depois que vi um decreto-lei (aprovado em Conselho de Ministros e promulgado pelo atual Presidente da República) a retirar os administradores da Caixa Geral de Depósitos do Estatuto do Gestor Público (EGP) e, a seguir, o chefe de Estado vir defender que eram obrigados a declarar ao TC os seus rendimentos e o seu património, por estarem integrados no EGP, tudo é possível.

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Quem não se dá pelos ajustes é o antigo primeiro-ministro (PM) José Sócrates, que veio criticar, a 3 de outubro, a escolha de Amadeu Guerra para procurador-geral da República, argumentando que existe uma violação do EMP.

Embora o ex-PM esteja desacreditado na opinião pública, a sua crítica merece atenção.

Refere que “é a primeira vez que se nomeia alguém já reformado e perto de fazer 70 anos”. Depois, considera que “a ele não se aplicarão os artigos 13.º e 193.º da lei do Estatuto do Ministério Público – o primeiro diz que o procurador-geral [da República] é magistrado; o segundo diz que todos os magistrados cessarão funções no dia em que fizerem 70 anos”. “Uma lei para todos, outra para o novo PGR. Assim começa um mandato dedicado à “defesa da legalidade democrática”, atira.

Todavia, José Sócrates ataca a escolha do antigo diretor do DCIAP e ex-procurador regional de Lisboa para procurador-geral da República, considerando que foi responsável pela sua prisão preventiva “sem acusação” e que a sua nomeação irá beneficiar de uma exceção à lei.

Numa declaração enviada à comunicação social, intitulada “Prémio de carreira”, o antigo secretário-geral do PS refere que se diz “para aí, com indisfarçado júbilo, que o novo procurador-geral foi responsável pela Operação Marquês”, processo em que, de acordo com um acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa (TRL), José Sócrates deverá ser julgado por três crimes de corrupção, 13 de branqueamento e seis de fraude. “Não me parece que lhe possamos negar essa responsabilidade. Não assinou a acusação, é certo, mas foi responsável”, frisa o antigo PM, dando como exemplos, entre outras situações e casos, “a transmissão televisiva” da sua detenção no aeroporto de Lisboa quando, regressava de Paris a novembro de 2014, e “a invocação do perigo de fuga, quando estava a entrar no país, não a sair”.

Segundo José Sócrates, o magistrado foi responsável pela prisão preventiva de 11 meses sem acusação, pela violação dos prazos de inquérito e pelos crimes de violação do segredo de justiça.

Em relação a outros processos judiciais, também segundo Sócrates, foi responsável pelo inquérito da EDP, há 12 anos, sem acusação (agora com mais um mês de adiamento); pelo inquérito das parcerias público-privadas, que esteve 10 anos em investigação e que ainda espera instrução (12 anos depois); pelo arquivamento do processo dos submarinos; e pela decisão de não investigar a suspeita levantada na carta rogatória do MP brasileiro, uma alusão ao alegado caso de financiamento da campanha eleitoral do Partido Social Democrata (PSD), em 2015.

No entanto, para José Sócrates, a Operação Marquês “tirou do espaço público um antigo primeiro-ministro, impediu a sua candidatura a Presidente da República e impediu ainda que o PS ganhasse as eleições legislativas de 2015. […] Dez anos depois, recebe o seu prémio de carreira: a nomeação como procurador-geral. E com o aplauso de todos, todos os da política”, crítica ao PS.

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Amadeu Guerra assume funções, quando o escrutínio à ação da Justiça, em geral, e do MP, em particular, está mais vigoroso do que nunca, um escrutínio saudável em democracia robusta que incide sobre os outros pilares do Estado de Direito, como são os poderes executivo e legislativo. 

A escolha de Amadeu Guerra, que dirigiu o DCIAP, com os processos mais complexos de criminalidade organizada, não mereceu a unanimidade de aplausos, segundo Valentina Marcelino, pois “quem só olha para alguns dos processos mais mediáticos, que envolvem figuras políticas, tem dificuldade em reconhecer-lhe competência na forma como os geriu”. Por exemplo, a Operação Marquês começou torta e nunca se endireitou. Foi megalómana, a alimentar tabloides com inúmeras violações do segredo de justiça, quando, tendo em conta a magnitude do que estava em causa (suspeitas de corrupção de um chefe de governo) deveria ter sido acusação à prova de bala, com factos seguros, para chegar rapidamente a julgamento. Porém, teve os seus sucessos.

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Penso que a coordenação do MP é demasiado espinhosa para uma pessoa com mais de 70 anos. Teve sucessos Amadeu Guerra? Obviamente. Contudo, é difícil um magistrado não conhecer alguns insucessos e não ter cometido alguns erros. O elogio generalizado pareceu-me ou hipócrita ou de júbilo (apenas pela despedida de lucília Gago, o que é pouco). Tenho dito.

2024.10.03 – Louro de Carvalho

Missão do FMI arrasa prioridades orçamentais do governo

 

O governo considera como prioridades orçamentais a taxa especial para jovens de imposto sobre o rendimento das pessoas singulares (IRS), o designado IRS jovem, e a descida faseada da taxa do imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas (IRC), de 2025 a 2028 (sendo de 19,5%, em 2025, e ficando em 15%, a partir de 2028), aplicável a todas as empresas.

As receitas de dois dos principais impostos (IRS e IRC) não devem cair mais, porque o governo (este e os que lhe sucederem a seguir, no “médio prazo”) precisa de garantir “uma política fiscal prudente”, de modo a reduzir a reduzir o peso da dívida pública, que se mantém acima de 90% do produto interno bruto (PIB) e é suposto que caia “para 60% do PIB, dentro de 15 anos”, avisa a missão do Fundo Monetário Internacional (FMI), na nova avaliação anual ao País (o chamado relatório Artigo IV), divulgado a 2 de outubro.

A equipa de avaliadores, liderada pelo economista  Jean-François Dauphin, vai mais longe, advertindo que “novas reduções de impostos e novos aumentos de salários e pensões precisam de ser cuidadosamente calibrados”.

Além disso, o novo estudo da instituição liderada por Kristalina Georgieva deixa avisos sobre o rumo da despesa. Tomou nota dos anúncios de aumentos salariais atribuídos a professores e às forças armadas, bem como a outros que estão na calha para outros grupos profissionais do setor público. E também tomou nota da decisão do governo de aumentar mais os pensionistas pobres. Tudo isto configura um tipo de medidas que levanta reservas ao FMI, sobretudo, se não vierem acompanhadas de medidas de “compensação”.

Para a missão do FMI, o “forte desempenho das receitas, provavelmente, ajudará a atingir as metas orçamentais”. Porém, este desempenho é “temporário” e os “pequenos excedentes”, previstos para este ano e para o próximo, são de natureza “cíclica”, isto é, sem medidas estruturais, pelo que não deverão repetir-se.

Quando o governo e o maior partido da oposição, o Partido Socialista (PS) estão a tentar negociar com pinças as traves mestras do próximo Orçamento do Estado para 2025 (OE 2025), designadamente, o que fazer no âmbito da descida programada da taxa base do IRC até 15%, em 2027, e no IRS jovem, o FMI pede prudência quanto a grandes generosidades fiscais, recordando, repetidas vezes, ao longo desta avaliação, que o país continua muito endividado, o que acarreta riscos.

“A médio prazo, uma política orçamental prudente, apoiada por compensações das recentes medidas expansionistas, continua a ser fundamental para a redução da dívida pública, ao mesmo tempo que a composição orçamental deverá tornar-se mais favorável ao crescimento”, sustenta avaliação do grupo liderado por Jean-François Dauphin, considerando ser “apropriada uma orientação orçamental globalmente neutra, com a continuação de pequenos excedentes orçamentais a médio prazo, tal como pretende o governo”.

Este plano “garantiria uma redução sustentada da dívida, com a dívida a atingir 60% do PIB, no prazo de 15 anos, reconstruindo, assim, as reservas orçamentais, para fazer face a riscos de contingência e [para] reduzir a vulnerabilidade do País face a mudanças nos sentimentos do mercado”. Porém, segundo o FMI, “dado o impacto negativo permanente de algumas das medidas de receitas e despesas decididas em 2024, serão necessárias medidas de compensação adicionais para atingir as metas e [para] criar espaço adicional para investimentos que promovam o crescimento em infraestruturas e capital humano”.

O FMI insiste que o governo “deveria incluir nestas medidas uma reforma fiscal abrangente que reduzisse as distorções fiscais e medidas para fazer face às pressões do envelhecimento e para aumentar a eficiência da despesa”. “Uma composição orçamental mais favorável ao investimento público resultaria também numa redução mais rápida da dívida, impulsionando o crescimento”, vinca o FMI.

A missão para Portugal considera genericamente que “as medidas fiscais devem ser concebidas no âmbito de uma reforma fiscal abrangente que vise simplificar o sistema e reduzir significativamente o número de isenções [benefícios fiscais]”.

No caso do IRS, o FMI, preocupado com o impacto na receita que as medidas tomadas e a serem tomadas pelo governo e o pelo poder político (Parlamento) possa ter na estabilidade das contas públicas, adverte que “a receita do IRS e a sua taxa média estão abaixo da média da Zona Euro”; e, “considerando o investimento e as necessidades de redução da dívida”, sustenta que “estas receitas de IRS não deverão diminuir ainda mais”.

“Embora os ajustamentos na progressividade possam alcançar os objetivos de redistribuição, uma maior utilização de despesas sociais sujeitas a condições de recursos poderia ser considerada para reduzir a desigualdade, uma vez que a sua contribuição para a redistribuição fiscal em Portugal é inferior à dos pares da Zona Euro”, consideram os avaliadores, que alertam para o facto de as “taxas de imposto preferenciais baseadas na idade” serem dispendiosas e levantarem questões de limiar e de equidade, bem como de a sua eficácia na redução da emigração ser incerta.

Efetivamente, jovens que tenham um emprego superior a 1500 euros agarram-se a ele com unhas e dentes e podem suportar a taxa normal de IRS; dificilmente as empresas do setor privado, exceto a banca e similares, contratarão jovens por salários muito altos; e havendo, num serviço público ou num escritório privado um jovem de 34 anos com taxa reduzida em IRS e um trabalhador de 36 anos que aufira um salario bruto igual, este sentir-se-á desmotivado ao ter no fim do mês um salário líquido muito baixo do que o jovem de 34 anos. Aqui está um povo de falta de equidade.

Por outro lado, segundo o FMI, “a reintrodução de taxas fiscais preferenciais para profissionais estrangeiros poderá atrair mais trabalhadores qualificados, mas irá distorcer ainda mais o sistema fiscal e poderá agravar os problemas de acessibilidade à habitação”.

O FMI refere que, “embora as receitas do IRC se situem, geralmente, em linha com a média da Zona Euro, a taxa legal de imposto combinada é mais elevada do que nos pares da Área do Euro”. Por isso, está contra o corte de taxas direto da taxa até 15% em 2027, como quer o governo: “Em vez de reduzir a taxa base, deveria ser dada prioridade à redução das sobretaxas progressivas e locais, o que ajudaria a alinhar a taxa média de IRC com a média da Zona Euro, incentivando ao mesmo tempo o crescimento empresarial”.

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Todavia, nem só de impostos e de salários fala o FMI. Também faz previsões sobre o crescimento e sobre matérias a ele atinentes.

Assim, o FMI revê em baixa crescimento do PIB português para 1,9%, em 2024. Ou seja, segundo os avaliadores, o crescimento do PIB português, em 2024, diminuiu em 0,1%; e os maiores entraves ao crescimento são o envelhecimento da população e a fraca produtividade o fraco investimento.

Não obstante, o FMI mantém-se confiante de que Portugal vai registar um excedente, de 0,2% do PIB, enquanto a dívida pública deverá recuar para 94,4% do PIB.

Assim, o FMI reviu em baixa as previsões para o crescimento da economia portuguesa este ano, de 2% para 1,9%, de acordo com o relatório final ao abrigo do Artigo IV.

Em julho, nas conclusões preliminares da visita a Portugal no âmbito do Artigo IV, o FMI previa um crescimento de 2%, que reviu, agora, para 1,9%, número que fica abaixo do estimado pelo governo (2%), segundo foi transmitido aos partidos nas reuniões sobre o Orçamento do Estado para 2024.

Para o FMI, “Portugal recuperou fortemente dos sucessivos choques que atingiram a economia global desde a pandemia”, como se lê na nota divulgada, a 2 de outubro, sobre a conclusão da consulta ao abrigo do Artigo IV, sendo que o “crescimento em 2023 continuou a exceder a média da área do euro, impulsionado pelo forte consumo privado, [pelas] exportações líquidas e [pelo] investimento apoiado por fundos da União Europeia (UE)”.Parte inferior do formulário

A instituição liderada por Kristalina Georgieva prevê que o crescimento permanecerá robusto, no curto prazo, e que “a inflação deve desacelerar ainda mais”, mas avisa que “o baixo crescimento da produtividade, o envelhecimento da população e o investimento moderado continuam a ser restrições a um maior crescimento e melhores padrões de vida no médio prazo”.

Quanto aos preços, o FMI prevê que a inflação, medida pelo índice harmonizado de preços no consumidor (IHPC), que permite comparações internacionais, será de 2,5% este ano.

Já para o saldo orçamental, o FMI mantém que Portugal registará um excedente, de 0,2% do PIB, enquanto a dívida pública deverá recuar para 94,4% do PIB, como já foi referido.

Na avaliação do Conselho Executivo do FMI, é ainda de destacar o alerta de que “Portugal ainda enfrenta problemas estruturais de longa data de pressões demográficas, investimento insuficiente e produtividade reduzida que restringem o crescimento potencial”, pelo que os avaliadores “encorajaram as autoridades a manter uma política orçamental prudente, seguir de perto os riscos no setor financeiro e promover maior produtividade e transição verde, inclusivamente através da alavancagem contínua de fundos da UE”.

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Entretanto, o governo faz orelhas moucas, em relação às advertências do FMI no atinente ao IRS jovem e à redução do IRC.

O plano do governo para reduzir a fundo o IRS aplicado aos jovens com idade até aos 35 anos e para cortar, de forma faseada, até 2028, a taxa nominal do IRC a todas as empresas é para seguir em frente, apesar a missão de avaliação do FMI a Portugal ter avisado que ambas as medidas estão mal desenhadas, havendo mesmo grandes dúvidas sobre a sua eficácia.

No caso do IRS Jovem, o modelo defendido pelo governo prejudica a equidade entre jovens e é ineficaz na atração de mais trabalhadores qualificados, além de poder agravar os problemas de acesso à habitação; e, no caso do corte transversal da taxa de base do IRC, a prioridade devia ser simplificar o regime, aliviando esta carga fiscal por via da redução das sobretaxas hoje em vigor, como as derramas, por exemplo.

Na conferência de imprensa da reunião do Conselho de Ministros, o ministro da Presidência, António Leitão Amaro, disse que “a conclusão geral” da missão avaliadora do FMI confirma que “o governo está numa trajetória de equilíbrio orçamental, e equilíbrio virtuoso”, até porque sinalizou que os excedentes orçamentais previstos, ainda que pequenos, “são adequados”.

Quanto à descida faseada do IRC e ao IRS jovem, disse que são prioridades orçamentais do governo, que se mantêm, até porque estão suportadas em acordo com os parceiros sociais. E o governo respeita a palavra dada. Caramba! Dá para gostar deste governo, não?!

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Ora, o FMI não é uma organização socialista, muito menos de extrema-esquerda. Contudo, parece vir no encalço do Partido Socialista (PS) nas questões do IRS jovem e no IRC. Não sei se o PS manterá as suas linhas vermelhas viabilizar o OE 2025. A ver vamos.

Parece que o governo da direita, dita moderada, agora não segue dos ditames do antigo credor. Longe estão, graças a Deus, os tempos da troika (de que o FMI fazia parte) em que o governo da República ia além da troika. Já parece Pedro Nuno Santos, quando era jovem. Se o governo for assim até 2028, contra tudo e contra todos, estará de parabéns; e nós teremos ordem, paz, progresso e riqueza!

Quem não quer a redução de impostos e de contribuições, a par do aumento substancial de salários, de pensões e de subsídios, dos benefícios sociais (educação, saúde cultura e transportes, tudo gratuito)?  Porém, milagres os homens não os fazem!

2024.10.03 – Louro de Carvalho