sábado, 25 de fevereiro de 2017

SMS e negócios de Estado

Tenho enorme dificuldade em perceber e aceitar que os negócios de Estado sejam tratados superficialmente como se fossem brincadeiras de miúdos, o que fica espelhado no modo como são abordadas algumas questões na praça pública, a facilidade como altas figuras da República falam das diversas matérias, as queixinhas e intrigas que alguns protagonizam e sobretudo a utilização de SMS (Short Message Service).
Mário Centeno terá expedido e recebido SMS na comunicação com António Domingues a propósito das condições exigidas por este para aceitar as funções de liderança na CGD, designadamente em matéria salarial e declarativa (sobretudo no âmbito da declaração de rendimentos e de património junto do TC), o que desembocou na publicação do Decreto-lei n.º 39/2016, de 28 de julho, que retirava os então futuros gestores do banco público do regime do estatuto do gestor público, com a fundamentação vertida no texto preambular do referido normativo.
Porque já deixei entender a minha dupla posição sobre essa matéria (quanto à não bondade do decreto-lei e quanto à sua alegada ineficácia por supostamente a Lei n.º 4/83, de 2 de abril, não ficar revogada), abstenho-me de a repetir. Agora, vem ao caso a posição do PSD e, em certa medida, a do CDS sobre uma potestativa nova Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) sobre a Caixa Geral de Depósitos e as relações dos partidos ditos da direita com o Presidente da República.
Foi criada uma CPI, a requerimento do PSD e do CDS, para investigar o que se passou na/e com a CGD desde 2003 até ao presente que viesse a justificar a situação que levou à necessidade de capitalizar o banco do Estado. Porém, quando a CPI entendeu maioritariamente (com os votos do PS, PCP e BE) rejeitar o pedido do PSD e do CDS sobre o conhecimento da correspondência entre Domingues e Centeno, nomeadamente as SMS, que podia denotar algum compromisso do Ministro das Finanças atingente à dispensa da entrega das declarações ao TC (Tribunal Constitucional), por não se integrar no âmbito do objeto da CPI, os partidos requerentes levaram o caso à conferência de líderes parlamentares. Aí, o Presidente da Assembleia da República, Eduardo Ferro Rodrigues, houve por bem não admitir a discussão da matéria por se tratar de um assunto da CPI com que a conferência nada tinha a ver, não tendo que dar quaisquer orientações à Comissão.
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A situação teve como desfecho a demissão do Presidente de CPI, não se sabendo se a mesma produzirá o consequente relatório ou se ficamos por aqui mesmo sem apuramento de resultados e concomitantemente as respetivas responsabilidades. Isto, depois de inúmeras pessoas terem sido ouvidas, até contradizendo-se umas às outras.
Mas os dois partidos ditos da direita parlamentar anunciaram a constituição de uma nova CPI para obter conhecimento das SMS que Centeno e Domingues trocaram entre si, ao mesmo tempo que Domingues parecia prometer que, embora não fosse esse o seu desejo, estará disposto a enviar à CPI as SMS se os deputados lho pedirem.
Ferro Rodrigues reagiu preventivamente em nome do regimento e da Constituição. Por um lado, à luz do regimento, não se torna plausível a existência paralela de duas CPI com o mesmo ou similar objeto; por outro, o n.º 1 do artigo 34.º da CRP garante a inviolabilidade do “sigilo da correspondência e dos outros meios de comunicação privada”.  
Entretanto, Assunção Cristas, líder do CDS, no debate quinzenal com o Primeiro-Ministro no Parlamento, no dia 22, anunciou ter solicitado uma audiência ao Presidente da República a queixar-se do funcionamento da Assembleia da República onde alegadamente a esquerda oprimia os direitos da minoria – o que levou a que Ferro Rodrigues garantisse que a porta do seu gabinete estava sempre aberta para receber as reclamações, sendo que a Constituição consagra a separação dos poderes, e um deputado centrista a argumentar que fora o Presidente do Parlamento a fechar a porta às reclamações e a advertir que a condução dos trabalhos da parte do Presidente não permite apartes desse género.
Por seu turno, os partidos à esquerda e Ferro Rodrigues chamaram a atenção para a separação dos poderes, reiterando que o Parlamento não responde perante o Presidente da República.
Porém, Marcelo Rebelo de Sousa agendou a audiência solicitada para o passado dia 24 e recebeu a delegação do CDS chefiada por Cristas, mas convidou, para uma hora antes, Ferro Rodrigues a fim de almoçar em Belém com o Presidente.
O que transpareceu para público foi a receção anfitriã e o acompanhamento de Ferro por Marcelo até à porta e uma imagem fotográfica que denota troca amistosa de confidências, levando à conclusão de que tudo vai bem entre os dois Presidentes, o do órgão plural e o do órgão unipessoal.
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Entrementes, o Presidente Marcelo, foi duramente criticado, à direita, por dar a cara, confiado no Primeiro-Ministro, pela inevitável permanência de Mário Centeno na pasta das Finanças e, recentemente, por ter comparado a situação em que alguns queriam ver a saída de Centeno do Governo com aquele momento em que Vítor Gaspar se despediu em 2013, provocando a crise política de que resultou a “irrevogável” apresentação do pedido de demissão do vice-primeiro-ministro e a tentativa de conciliação dos partidos para um governo de Salvação nacional proposta pelo Presidente da República de então.
Todavia, é de notar que a posição de Marcelo em relação a Centeno conheceu quatro momentos distintos: o assentimento, ao que se sabe agora, relativo aquando da promulgação do aludido decreto-lei; a posição clara que relativiza a força do decreto-lei, quando esclarece que este, não revogando a aludida lei de 1983, não dispensa os gestores do banco público das obrigações declarativas junto do TC e que, se as dúvidas persistirem, podem os deputados em sede legislativa proceder à respetiva clarificação; a fé confessada no Primeiro-Ministro de que não houve compromisso de Centeno com Domingues, baseada no facto de o Chefe do Governo ter garantido que não houve nenhum documento formal escrito nesse sentido, levando o Presidente a acreditar em António Costa e no seu Ministro, o que provocou críticas duras sobre o alegado envolvimento excessivo do Presidente na solidariedade com o Governo e a descrença no crédito da palavra de Ministro; a tomada de posição mais calculada, depois de António Lobo Xavier ter garantido no programa “Quadratura do Círculo” na SIC Notícias que havia SMS para Domingues comprometedores para Centeno e, eventualmente, Lobo Xavier os ter mostrado ao Presidente. Como é do conhecimento público, o Primeiro-Ministro, apesar de ausente, solicitou uma audiência ao Presidente para Centeno. E Centeno, que se explicou junto do Presente, veio a público dizer, em conferência de imprensa, que nunca tinha declarado que não havia entendimento sobre as matérias em causa, mas que admitia ter havido “erro de perceção mútuo” e que o seu lugar estava naturalmente à disposição do Primeiro-Ministro.
Daqui resultou: uma declaração de confiança de António Costa no Ministro das Finanças; uma declaração de Marcelo a dizer, entre outras coisas, que, “ouvido o Senhor Primeiro-Ministro, que lhe comunicou manter a sua confiança no Senhor Professor Doutor Mário Centeno, aceitou tal posição, atendendo ao estrito interesse nacional, em termos de estabilidade financeira”; e uma reação de críticos do desempenho presidencial de Marcelo a recordar que, nos termos da Constituição, não cabe ao Presidente manifestar ou não confiança nos ministros, mas apenas nomeá-los ou exonerá-los sob proposta do Primeiro-Ministro (vd alínea h do art.º 33.º da CRP), sem do que só este é que é responsável pela informação a prestar a Presidente sobre o andamento da política interna e externa do país (vd alínea c do n.º 1 do art.º 201.º da CRP), sendo os ministros responsáveis perante o Parlamento, no quadro da responsabilidade do Governo (vd n.º 2 do art.º 191.º da CRP).  
Recentemente, Marcelo comparou, como se disse, a questão Centeno com a questão Gaspar, o que deixou furioso o PSD, que entende que as situações são incomparáveis. É óbvio que os conteúdos e contornos dos dois momentos não são iguais, mas são igualmente suscetíveis. Antes, era a situação de crise devida ao programa de resgate do país; agora é o tempo da credibilização da governança apoiada numa inédita melhoria parlamentar, com a Europa a olhar de soslaio para a solução, mas com resultados à vista, nomeadamente a redução da dívida líquida, algum aumento do poder de compra e a iminência da saída do país do processo de défice excessivo.
Por outro lado, a criação de uma nova CPI, que parecia absurda, graças ao cuidado com que o requerimento foi redigido, delimitando o seu objeto, nos termos regimentais e constitucionais, tornou-se viável e sem criar suscetibilidades aos partidos da maioria, dado que o objeto não parece um duplicado da outra CPI sobre a CGD, no que Marcelo terá ajudado Ferro Rodrigues a não ver objeções regimentais e constitucionais, bem como quaisquer outros problemas, ao funcionamento da nova Comissão. Ademais, veio Jorge Miranda, prestigiado constitucionalista, dizer que o artigo 34.º da CRP não se aplica à troca de correspondência entre Centeno e Domingues por não estar no estrito âmbito da esfera privada, mas atingir negócios (que não segredos, digo eu) de Estado.
Assim, embora Marcelo tenha dito que SMS de Centeno/Domingues não o façam mudar de posição e Costa tenha dito que “só um PM insano dispensaria este ministro” (vd Expresso de hoje, 25 de fevereiro).
Pode, no entanto, suceder que Centeno, se for desmascarado com as SMS e/ou se se sentir agastado, venha a bater com a porta quando conseguir sem margem para dúvidas a saída de Portugal do procedimento por défice excessivo.
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Em suma, há demasiado fumo nestas questões de Estado, que não podiam ser tratadas assim. Comunicar sobre matéria pública por email e SMS revela superficialidade e torna-se perigoso. Fala-se muito de situações e métodos que nunca se sabe se estão no campo das hipóteses e que podem ser utilizados por outrem ad libitum. E, nisto, seriedade e conversação franca exigem-se!

2017.02.25 – Louro de Carvalho

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