A 4 de abril, no meio das tensões
globais que se seguiram aos anúncios de Donald Trump sobre os direitos
aduaneiros, União Europeia (UE), assinalando
30 anos de relações diplomáticas, anunciou uma nova parceria estratégica
com os países da Ásia Central, no
final de uma primeira cimeira UE-Ásia Central, na cidade uzbeque de Samarcanda.
Na
verdade, líderes da UE e da Ásia Central reuniram-se, nos dias 3 e 4, em
Samarcanda, no Uzbequistão, para discutirem o fortalecimento da cooperação, da
estabilidade regional e dos laços económicos e políticos mais profundos, à medida
que a região se volta para a Europa, à luz das novas dinâmicas geopolíticas. Após
anos de reformas e de assistência europeia, os países da Ásia Central – o Cazaquistão, o Quirguizistão, o Tajiquistão, o
Turquemenistão e o Uzbequistão – iniciam a viragem estratégica
para a Europa, enquanto a UE procura parceiros fiáveis nas atuais e rápidas
mudanças geopolíticas.
O
presidente do Uzbequistão, Shavkat Mirziyoyev, anfitrião da inédita cimeira,
classificou-a de “verdadeiramente histórica” e de “oportunidade histórica” para
a região.
A cimeira teve lugar num clima geopolítico e económico turbulento, um dia
depois de o presidente dos Estados Unidos da América (EUA) ter anunciado
uma série de tarifas comerciais globais sobre vários países, incluindo
aliados como a UE e o Reino Unido,
abalando os mercados e atraindo críticas dos líderes mundiais.
Ao assinalar os 30 anos do estabelecimento das relações diplomáticas entre
os dois blocos, o presidente do Conselho Europeu sublinhou a importância da
cooperação multilateral. “No contexto internacional atual, a importância de uma
ordem multilateral funcional e baseada em regras não pode ser subestimada. A
nossa reunião de hoje incentiva, ainda mais, a cooperação entre a União
Europeia e a Ásia Central nas instâncias multilaterais, reforçando o nosso
empenhamento comum, num mundo pacífico e numa ordem global próspera”, vincou António
Costa, que abordou, igualmente, os desafios comuns em matéria de segurança,
chamando a atenção para as múltiplas ameaças, nomeadamente, o terrorismo, o
extremismo violento e o tráfico de droga, que podem alastrar à Ásia Central e à
Europa.
Já a presidente da Comissão Europeia relevou os potenciais benefícios de
laços mais fortes: “A vossa localização estratégica pode abrir rotas comerciais
e fluxos de investimento, a nível mundial. Estes novos investimentos reforçarão
a soberania. Reforçarão as vossas economias. E, mais importante ainda, criarão
novas amizades”, sustentou Ursula von der Leyen.
A presidente da Comissão Europeia disse acreditar que a parceria levará a
novas oportunidades em setores como a energia, o turismo, o comércio e os
transportes, ao anunciar o pacote de investimento de 12 mil milhões de euros na
região: “Este pacote reunirá investimentos da União Europeia e dos estados-membros
e lançará uma nova série de projetos para a Ásia Central. Este é,
verdadeiramente, o início de uma nova era na nossa antiga amizade”, afirmou.
O novo pacote financiará projetos no domínio dos transportes (três mil
milhões de euros), das matérias-primas essenciais (2,5 mil milhões de euros),
da água, da energia e do clima (6,4 mil milhões de euros), bem como da
conetividade digital, alguns dos quais foram autorizados e atribuídos
pelo Banco Europeu para a
Reconstrução e Desenvolvimento (BERD).
O acesso a energias limpas e a terras raras é fundamental para a UE, que
procura alcançar a neutralidade climática, até 2050, e aumentar a sua autonomia
em setores estratégicos. Contudo, parte considerável da extração, da transformação
e da reciclagem, a nível mundial, de matérias-primas críticas, como o lítio,
indispensáveis ao desenvolvimento de energias renováveis, artigos de uso diário
e sistemas de defesa, é controlada pela China, da qual a UE quer desligar-se,
devido às suas práticas comerciais e de política externa agressivas e
protecionistas.
A Ásia Central possui grandes jazidas, incluindo 38,6% do minério
de manganês do Mundo, 30,07% de crómio, 20% de chumbo, 12,6% de zinco e 8,7% de
titânio. “Estas matérias-primas são a força vital da futura economia mundial.
No entanto, são também um ponto de encontro para os atores mundiais. Alguns
estão apenas interessados em explorar e [em] extrair”, considerou Ursula von
der Leyen aos líderes da Ásia Central, acrescentando: “A oferta da Europa é
diferente. Também queremos ser vossos parceiros no desenvolvimento das vossas
indústrias locais. O valor acrescentado tem de ser local. O nosso historial
fala por si.”
Entretanto, a proteção da “ordem multilateral baseada em regras” foi o tema
central do discurso de António Costa. “Temos de trabalhar em conjunto, não só
para defender o multilateralismo, mas também para o reformar, de forma a
torná-lo mais eficaz, inclusivo e adaptado às realidades atuais”, sustentou o
presidente do Conselho Europeu, sublinhando que “as ameaças à segurança são agora
de natureza transnacional” e apelando a uma maior cooperação, a nível
bilateral, regional e multilateral, incluindo em relação à Rússia, que está a
violar a Carta das Nações Unidas e o direito internacional com a invasão em
grande escala da Ucrânia.
Os cinco países da Ásia Central abstiveram-se de votar na Organização das
Nações Unidas (ONU), quanto à agressão da Rússia contra o seu vizinho, optando
pela neutralidade, mas beneficiaram da reexportação para a Rússia de produtos
ocidentais sancionados.
A UE, que impôs 16 pacotes de sanções contra a Rússia, nomeou um enviado
especial para a questão do contorno das sanções, que se deslocou à região em
numerosas ocasiões, nos últimos três anos. E altos funcionários da UE afirmaram,
sob anonimato, antes da cimeira, que os países da Ásia Central têm demonstrado
vontade de cooperar, mas que gostariam de ver mais, sobretudo tendo em conta
as conversações entre os EUA e a Rússia, das quais a Europa tem sido afastada,
provocando receio de que os seus interesses não sejam protegidos. No entanto, a
mesma fonte afirmou que a realização de esforços adicionais sobre o tema é “um
elemento importante para fazer avançar as nossas relações”, mas não condição
prévia.
António Costa referiu, veladamente, a evasão das sanções, avisando que a
Europa continuará a aumentar a pressão sobre a Rússia, sempre que necessário, e
que a “cooperação da Ásia Central é inestimável”. “Contamos com os vossos
esforços contínuos, a este respeito”, vincou.
O presidente Shavkat
Mirziyoyev afirmou que o seu país, o Uzbequistão, “partilha o
compromisso da parte europeia com os princípios e normas do direito
internacional”, “saúda e apoia, plenamente o processo de negociação para a
resolução pacífica da situação na Ucrânia”.
Na cimeira, os líderes concordaram em realizar um Fórum de Investidores, no
final do ano, para garantir mais investimentos, nomeadamente, para o Corredor
de Transporte Transcaspiano, que reduzirá, drasticamente, o tempo necessário
para exportar mercadorias entre as duas regiões, contornando a Rússia, bem como
estabelecer um escritório local do BERD no Uzbequistão.
Apoiaram, igualmente, a ideia de realizar cimeiras semelhantes, de dois em
dois anos.
***
Como esperado,
diversificar as trocas comerciais, afastando-se da Rússia e da China, e reforçar
as relações diplomáticas foram os principais pontos da agenda da cimeira, tendo
ficado relegadas, para segundo plano, as questões dos direitos humanos, embora
tenham sido abordadas, assim como o facto de a Rússia contornar as sanções que
lhe foram aplicadas.
A presidente
da Comissão Europeia e o presidente do Conselho Europeu deslocaram-se a Samarcanda,
na esperança de aprofundar as parcerias com a região rica em recursos naturais,
no domínio da energia e das matérias-primas essenciais. Os dirigentes do bloco
da Ásia Central esperam, entretanto, assegurar investimentos nas suas
indústrias e infraestruturas.
A agenda
incluiu a proteção do multilateralismo, os desafios de segurança comuns e
regionais, a cooperação no domínio das energias limpas, o turismo, os programas
interpessoais e a Ucrânia.
“O
presidente Costa tem sido muito claro, desde o início do seu mandato, em como
acredita que, neste mundo multipolar, a UE precisa realmente de se reconetar
com os seus parceiros globais”, disse um alto funcionário da UE, sob anonimato,
antes da cimeira, referindo que “a Ásia Central é um dos elementos desta
abordagem”.
O motor da
reunião de alto nível foi o objetivo, partilhado por ambas as partes, de se afastarem
da Rússia e da China, dois países que têm sido, por razões históricas e
geográficas, grandes compradores dos produtos da Ásia Central, enquanto a sua
sombra paira sobre a segurança energética e tecnológica da Europa. A invasão em
grande escala e não provocada da Ucrânia por parte da Rússia, juntamente com a
abordagem transacional de Pequim e, agora, de Washington ao comércio e à
política externa, parece ter silenciado a relutância que existe, em relação ao seu
envolvimento mútuo.
Para a UE, não
se trata de desafiar, seriamente, a China e a Rússia, mas de oferecer alternativas
em alguns setores e de competir noutros, especialmente, no que diz respeito às
matérias-primas e à conetividade. Desde o início da guerra, a UE tem vindo a
libertar-se, significativamente, dos combustíveis fósseis russos, mas as
importações de gás natural liquefeito (GNL) russo para os portos europeus e de
petróleo por oleoduto para a Europa Central continuam a ser ponto sensível, porque
ajudam a financiar a máquina de guerra de Moscovo. E esta dependência evidenciou
outra: no atinente à transição ecológica, a UE está demasiado dependente da
China, que controla a extração e o processamento de partes significativas de
muitas terras raras, cruciais para o desenvolvimento das energias renováveis.
A Ásia
Central está a desenvolver a produção de energias renováveis e possui depósitos
de matérias-primas essenciais. A UE assinou dois Memorandos de Entendimento com
o Cazaquistão e com o Uzbequistão, sobre este tema, e chegou, agora, a uma
declaração de intenções mais alargada sobre matérias-primas essenciais. Segundo
a UE, trata-se de uma situação vantajosa para ambas as partes, já que o bloco
assegurará as terras raras de que necessita para impulsionar a sua transição
energética e para reforçar a sua autonomia estratégica, enquanto a região
obterá os investimentos necessários para desenvolver a indústria local.
A UE não
está apenas a promover a extração e a exportação de matérias-primas, mas quer promover
a indústria local na região, ajudando o desenvolvimento de tecnologias limpas,
e investir, em conjunto com os países da Ásia Central, em toda a cadeia de
valor.
Do seu lado,
os países da Ásia Central querem mais parcerias industriais, para desenvolver
as suas bases de produção e o seu “know how”, o que lhes permitirá aumentar as
suas exportações e, por conseguinte, a sua base de clientes. Para isso,
precisam de poder enviar, efetivamente, os seus produtos para a UE, pois o
Tajiquistão é um dos maiores produtores de alumínio do Mundo, mas é quase impossível
exportá-lo para a UE, por causa da logística. Por isso têm-no vendido à China e
à Rússia, o que lhes é muito mais fácil.
O Corredor
de Transporte Transcaspiano foi um dos principais temas abordados pelos líderes
europeus. A UE anunciou, em 2024, que iria afetar 10 mil milhões de euros ao Corredor
do Meio, através da Iniciativa Global Gateway, um montante considerado
insignificante por alguns, pela extensão do percurso e pelo desafio que
representa o terreno montanhoso. De facto, a Iniciativa Global Gateway é muito
lenta a produzir efeitos na vida real, o que é fonte de frustração para vários
países parceiros, incluindo os países da Ásia Central, especialmente, desde que
a Rússia atacou a Ucrânia, levando a UE a impor sanções abrangentes contra o
país.
O BERD
estimou, em 2023, que seriam necessários 18,5 mil milhões de euros de
investimento para concluir os projetos de infraestruturas necessários para a
rota, apenas na Ásia Central. Porém, as infraestruturas são apenas a ponta do
icebergue. Com efeito, os desafios da conetividade, como a limitada
harmonização regulamentar, a ineficiência nas fronteiras e a necessidade de maior
digitalização dos documentos de transporte, continuam a dificultar a eficiência
do trânsito.
Por isso,
vontade política, confiança e coordenação mais forte das partes interessadas
serão fundamentais para enfrentar os desafios da conetividade suave.
Na cimeira,
ambas as partes tiveram de respeitar uma linha ténue. Para a Ásia Central,
trata-se de se aproximar mais do Ocidente, sem incomodar Moscovo ou Pequim. Os
países da Ásia Central tentam seguir a política externa multivetorial, mostrando-se
preparados para cooperar com diferentes atores, sem alienar nenhum deles, isto
é, gostariam de beneficiar de todas as partes. Assim, não querem ir demasiado
longe, especialmente, com o Ocidente, com a UE, pois não querem tornar-se
demasiado pró-Ocidente, por diferentes razões. Entretanto, Bruxelas pretende
fazer acordos com certos regimes acusados de serem autoritários na vizinhança da
Rússia, mas apelando à pressão política e económica sobre Moscovo.
Altos
funcionários da UE insistiram que a questão da evasão às sanções russas seria
levantada na cimeira, dado que alguns dos países da região beneficiaram com a
venda à Rússia de artigos fabricados na Europa, que estão proibidos de entrar
no país. Por exemplo, as exportações alemãs de automóveis e peças de automóvel,
para o Quirguizistão, aumentaram 5500%, em 2023, enquanto, para o Cazaquistão,
aumentaram 720%, de acordo com um relatório de Robin Brooks, economista-chefe
do Instituto de Finanças Internacionais.
A UE está
disposta a cooperar. Gostaria, obviamente, de ver mais, e esta é uma altura em que
as sanções da UE são extremamente importantes, já que pretende manter a pressão
sobre a Rússia. Por isso, considera que “este é um processo contínuo”.
Manter a sua
credibilidade em matéria de direitos humanos poderá ser igualmente difícil para
a UE. Na revisão anual dos direitos humanos em todo o Mundo, a Human Rights
Watch (HRW) afirmou que a UE precisa de “chamar a atenção” dos governos da Ásia
Central para o facto de terem reprimido a dissidência e reforçado o controlo da
liberdade de expressão, nomeadamente através da detenção de críticos do
governo, ativistas e jornalistas.
Ora, estas relações
estão a desenvolver-se e, à medida que se desenvolvem e crescem, podem ter mais
impacto. “Não vamos lá para dar lições. Vamos dar a conhecer as nossas
preocupações, trabalhar com eles, manter um diálogo. Quanto mais dialogarmos,
nos empenharmos e interagirmos, mais acreditamos que podemos mudar e melhorar
todos os aspetos que nos preocupam”, considerou um alto funcionário da UE, frisando
que esta “não tem muita influência sobre estes países” e não está a criá-la,
nesta matéria.
A UE daria mais
dinheiro à sociedade civil, mas está a adotar uma abordagem mais pragmática,
tendência específica de Ursula von der Leyen, bem pragmática em questões de
direitos humanos e muito mais orientada para os interesses.
***
A abordagem
dos direitos humanos, que se invocam, se isso interessa, continua a ser o busílis
nas relações internacionais – um tabu nalguns países, grandes ou pequenos.
2025.04.04 – Louro de Carvalho