Hugo Franco dá-nos conta na edição do “Expresso” desta semana de que o anúncio duma empresa privada de
aliciamento de militares para certas operações na Ucrânia a troco de €2000
euros diários está a despertar a atenção de alguns “contractors” portugueses – histórias de quem esteve em cenários de
guerra e em Kiev.
As empresas militares privadas ou empresas
de prestação de serviços de segurança (em Private Military Company, PMC), classificadas ou definidas como
mercenárias (dispõem de
“soldados de aluguer”) oferecem
aconselhamento ou serviços de natureza militar. Muitas são conhecidas como empresas
privadas de segurança, empresas militares privadas, companhias militares
privadas, prestadores de serviços militares e mesmo indústria militar privada. Os
conhecimentos e serviços oferecidos por elas assemelham-se aos de militares ou
policiais das forças governamentais, na maioria das vezes em escala menor. São,
muitas vezes, serviços de treino ou de complemento a forças armadas oficiais
ao serviço dos governos. Tais empresas podem ser contratadas por outras
empresas privadas para fornecer guarda-costas a funcionários-chave ou para
proteger instalações dessas empresas, sobretudo em territórios hostis.
A contratação
de mercenários é proibida por convenções internacionais, razão pela
qual as PMC tentam diferenciar, às vezes, ardilosamente, as suas atividades do
puro mercenarismo. Mas, quando usam força ofensiva em zona de guerra, podem
efetivamente ser considerados como combatentes ilegais (mercenários), pois, segundo a Convenção
internacional contra o recrutamento, uso, financiamento e treinamento de
mercenários (1989), mercenário é o que, a troco de
avultada quantia de dinheiro, participa diretamente em hostilidades ou em ato
concertado de violência.
Conta o
susodito articulista o caso dum português, cujo nome não revela, que tem sido instado pelas principais empresas militares
europeias e norte-americanas, as Private
Military Contractor (PMC), para
missões específicas no Iraque, na Líbia, na Nigéria e recentemente na Ucrânia. Rejeita
o vocábulo ‘mercenário’, típico de outros tempos de guerras sem lei e
escândalos como os da Blackwater, PMC
norte-americana, envolvida na morte de dezenas de civis na Guerra do Golfo,
embora admita que ainda há alguns por aí, mas, segundo crê, em minoria. Diz que
o ingresso nos quadros de tais empresas se assemelha às triagens para os
serviços secretos: exige enorme formação e a obrigação de seguir trâmites legais,
do que duvido, e burocracias internacionais.
O aludido
operacional age como personal security
detail ou guarda-costas de elite especializado em paramédico. Pode usar nas
suas missões uma pistola de 9 mm, normalmente a SIG Sauer ou a Glock, e
também a AK-47 e a M21 ou, ainda, mas raramente, a AF-15. No entanto, garante
que é proibido disparar nem sequer um tiro de aviso, ao invés do que sucedia
outrora, quando tudo se resolvia à rajada, sendo hoje muito restritas as regras
do uso de fogo. Como sublinha, os contractors
são defensores, não atacantes. E, depois da invasão da Ucrânia pelas tropas de Putin,
o predito operacional foi convidado para uma missão, agora para a tirar pessoas
de zonas alvo dos ataques, assinou com a PMC que o contratou a cláusula de
confidencialidade em virtude da qual não pode revelar pormenores, mas diz que,
neste momento, a empresa do Norte da Europa tem pessoal na Polónia que aciona
os seus homens sempre que necessária a intervenção na Ucrânia. São missões de
extração, segurança, logística, serviços de apoio médico, guarda-costas… A
forma normal de recrutamento é o passa-palavra de quem está no meio, mais
fiável que o anúncio. Todavia, se a procura é superior à oferta, as PMC recorrem
a meios tradicionais de angariação de pessoal para missões espinhosas. Recentemente
uma PMC, cujo nome não é divulgado, pôs um anúncio online numa plataforma de
recrutamento militar a oferecer entre mil a 2 mil dólares por dia e bónus, a
soldados e ex-soldados com “mais de um ano de experiência” em cenários de
guerra e com know how para lidar com
“armas da era soviética” para “extração/agentes de segurança”.
O anúncio
está a aliciar vários portugueses ligados ao setor militar e ao da segurança
privada, pois a proposta “é aliciante em termos monetários”. Um consultor português
na área de segurança refere que recebeu, nos últimos dias, o contacto de mais
de dez militares que leram o anúncio a pedirem conselhos sobre se se deveriam
alistar e rumar a Kiev para se juntarem às forças de Zelensky que combatem a
invasão russa. Porém, o interpelado advertiu-os de que não devem ir,
advertência que muitos seguiram. A razão deste conselho negativo tem a ver
sobretudo com a falta de condições de segurança que podem encontrar no terreno.
Para a PMC poder oferecer condições de sucesso, os operacionais têm de ter boa
capacidade de logística e de comunicações e muito boa saúde. E, pelas informações
que chegam da Ucrânia, é de concluir que não há logística, armamento e munições
suficientes.
As missões
mais arriscadas são as do salvamento e evacuação de famílias, sobretudo estando
crianças em causa. E, em termos monetários, a extração duma pessoa custa no
mínimo 50 mil euros à PMC para três dias de trabalho, mas tem de ser uma missão
simples e sem problemas, caso contrário os custos da operação disparam. Há
alguns anos, num campo petrolífero perto de Bassorá (Iraque) o aludido operacional sentiu um estrondo. A mesquita foi
alvo de ataque terrorista. Os primeiros instantes foram de pânico, pelo
impacto, fumo e fogo. Felizmente não estava lá ninguém àquela hora. O IED (engenho
explosivo improvisado – sigla em inglês) era de
grande potência: era capaz de desfazer um carro blindado B6. O ataque não foi
reivindicado, mas no dia seguinte a empresa norte-americana que explorava o oil
camp foi-se embora.
Supõe-se que,
na Ucrânia, quem paga a estas PMC para introduzirem soldados ocidentais no seu
território é o próprio governo de Kiev, tal como o Kremlin pagará aos soldados
privados, do Wagner Group, que são quase todos russos e têm sido acusados de
crimes de guerra e abusos dos direitos humanos. O referido consultor de
segurança diz nunca ter ouvido falar de um militar português contratado pela esfera
de influência de Moscovo.
O Ministério
dos Negócios Estrangeiros (MNE) reitera o
aviso de março, desaconselhando a ida de militares portugueses para o conflito
na Ucrânia “seja a que título e para que propósito for”. Nessa altura, havia
sete portugueses, todos voluntários, identificados em combate. Embora não
avançando desta vez com qualquer dado em concreto, o MNE diz que é residual o
número de combatentes lusos em solo ucraniano. As autoridades temem que possam
vir a morrer ou a ser capturados. Não há, porém, qualquer relato nesse sentido
no terreno.
Nos últimos
anos, os contractors portugueses têm-se
espalhado por cenários de conflito bélico como Líbia, Somália, Iémen, Iraque ou
Afeganistão, bem como em países em fase de reconstrução ou a bordo de navios de
multinacionais petrolíferas. Estima-se que, no total, sejam entre os 30 e 50
operacionais e a esmagadora maioria pertencia aos comandos, fuzileiros ou
paraquedistas. Conhecem-se quase a todos e constituem “um núcleo muito fechado”.
A falta de perspetivas na carreira militar em Portugal e os altos salários (dos 65 mil
euros por ano aos 200 mil) motivam
muitos operacionais a emigrar para trabalhar na área privada. Quanto mais
arriscada e especializada for a missão e mais currículo tiverem, mais bem pagos
serão. E não há falta de trabalho sobretudo para quem não pisa o risco. Há
guarda-costas, detetores e inativadores de explosivos, pilotos, seguranças de
campos petrolíferos, seguranças de navios, mecânicos de aeronaves, paramédicos,
especialistas em resgates ou operacionais de equipas de reação rápida. Os dados
são escassos, mas há informação de que haverá pelo menos 6 voluntários oriundos
de Portugal que se juntaram às tropas de Zelensky. Estão todos espalhados por
vários setores da linha de combate.
Um soldado
que nasceu em Setúbal, emigrou para França e tem experiência militar como
paraquedista, revelou ter já tido alguns momentos de tensão no conflito em
Irpin e Bucha, na Ucrânia, aonde chegou através da Legião Estrangeira. Testemunhou
a morte de companheiros de combate. Em março, recebeu treino militar perto de
Kiev, juntamente com outros voluntários estrangeiros, e promete ficar na
Ucrânia “até ao fim do conflito”.
***
Em outubro de
2007, um estudo publicado pela ONU concluiu que, embora contratados como guardas
de segurança, os operacionais privados desempenhavam funções militares. Muitos
países, incluindo os EUA e o Reino Unido, não são signatários da convenção acima
referida, que proíbe a contratação de mercenários. Porém, um porta-voz da
missão dos EUA no departamento da ONU em Genebra (UNOG) declarou que a acusação de que os guardas de segurança contratados pelo
governo dos EUA são mercenários é inexata e humilhante para os homens e
mulheres que diariamente colocam as suas vidas em risco para proteger pessoas e
instalações.
Segundo
a Cruz Vermelha, desde o início da década de 1990, mais e mais funções
usualmente efetuadas pelo aparato militar e de segurança dos Estados são
passadas para tais empresas, que, entre outras atividades, operam no apoio
logístico ao deslocamento de soldados e a operações militares, na manutenção de
sistemas de armamentos, na proteção das instalações, na proteção especial a
indivíduos, no treinamento de militares e de forças policiais no próprio país e
no exterior, na obtenção e análise de informações de inteligência, na
custódia e interrogatório de prisioneiros e, às vezes, participam nos combates.
E esta evolução suscita questões acerca da proteção das pessoas que trabalham
para tais empresas, do ponto de vista do Direito Internacional Humanitário.
Nem sempre é claro se essas pessoas devem ser consideradas civis ou
combatentes, distinção que é fundamental, tanto do ponto de vista legal como do
das operações humanitárias.
As empresas
militares privadas estão presentes em países como o Iraque e o Afeganistão,
prestando serviços de escolta e treinamento. E, na Colômbia, contratados
dessas empresas pilotam aviões e helicópteros que localizam e destroem cultivos
de coca. A maioria dessas empresas e dos seus contratados é originária dos
EUA e opera mediante licença outorgada pelo seu governo.
As empresas
militares privadas movimentam mais de USD 100 mil milhões por ano. Segundo
um estudo de 2008 (do
Gabinete do Diretor da Inteligência Nacional dos EUA), os contratados privados totalizam
mais de 29% das pessoas empregadas na Comunidade de Inteligência dos EUA e
custam o equivalente a 49% do seu orçamento.
O debate sobre
a atuação destas empresas alterna-se entre a visão de que estas significam o
enfraquecimento do Estado nacional ou a perda do seu monopólio da violência e a
visão geopolítica, que vê uma espécie de adaptação nessas empresas, por parte de
alguns países, que as utilizam para poderem projetar-se militarmente no
exterior por vias clandestinas, mas não necessariamente ilegais, sem violar as
leis internacionais, causar complicações com o eleitorado doméstico (que não quer os seus soldados
envolvidos em guerras no exterior) ou atritos com outros países.
Em 1994 e
1995 a sul-africana Executive Outcomes (EO) esteve envolta em duas ações na África. Lutou pelo governo
de Angola contra a UNITA depois de ter sido quebrado um acordo de paz
intermediado pela ONU; depois, foi encarregada de conter a Revolutionary
United Front, um movimento de guerrilha da Serra Leoa. Ambas as
missões envolveram o pessoal da empresa treinando 4000 a 5000 integrantes das
tropas de combate do governo angolano, retomando o controlo das minas de diamantes
e forçando uma negociação de paz na Serra Leoa. Em 1999, um incidente da DynCorp
na Bósnia motivou uma ação judicial com base na Lei de Combate a
Organizações Corruptas e Influenciadas pelo Crime Organizado. Foi alegado que funcionários
e supervisores da DynCorp tinham comportamento perverso, ilegal e desumano
comprando mulheres, armas, passaportes falsos, e participando em outros atos
imorais. Em 2000, o programa “Foreign
Correspondent” (da “Australian
Broasdcasting Corporation ABC Television”) transmitiu a reportagem “Sierra
Leone: Soldiers of Fortune”, abordando os feitos do piloto Neall Ellis no
helicóptero MI-24 Hind e pondo a nu falhas da Força de Paz da
ONU e o envolvimento de mercenários na prestação de apoio a operações da ONU
e a operações militares britânicas.
***
É o fim da
linha quando governos e até a ONU confiam as operações bélicas e humanitárias a
privados, sem controlo, e lhes pagam balúrdios. E porquê a exigência de que os
requisitados para a Ucrânia têm de possuir capacidade para lidar com armas da era
soviética? Nada mudou?
2022.05.06 – Louro de Carvalho
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