É o tema da
mensagem pontifícia para o LVI Dia
Mundial das Comunicações Sociais, que se assinala no VII domingo da Páscoa
e, em Portugal, também Solenidade da Ascensão do Senhor.
A mensagem do
Papa foi, como é habitual, publicada no dia 24 de janeiro, dia litúrgico de São
Francisco de Sales, padroeiro dos jornalistas. Na sequência do tema do ano
passado, “ir e ver”, para descobrir a realidade e a narrar “a partir da
experiência dos acontecimentos e do encontro com as pessoas”, Francisco fixa-se
no verbo “escutar”, “decisivo na gramática da comunicação e condição para o
autêntico diálogo”, que é, agora portador dum repto a todos os profissionais da
comunicação, nomeadamente jornalistas, políticos e, por certo, homens e
mulheres que, na Igreja, detêm o múnus e o ónus do serviço à palavra e pela
palavra.
Aponta o
Pontífice a tendência hodierna para a perda da capacidade de ouvir a pessoa que
está à nossa frente, quer no quadro das relações quotidianas, quer no debate dos assuntos
mais prementes da convivência civil. A tentação é pensar, de imediato, em
responder ao que o outro está a dizer. Paralelamente, a escuta experimenta
importante desenvolvimento no campo comunicativo e informativo, com as várias
ofertas de podcast e chat audio, confirmando a
essencialidade da escuta para a comunicação humana.
A propósito, Francisco
recorda que um médico ilustre, a quem foi perguntado qual era a maior
necessidade do ser humano, respondera que era o desejo ilimitado de ser ouvido.
Por isso, apesar de frequentemente oculto, é desejo que interpela o educador, o
formador ou quem desempenhe, de algum modo, o papel de comunicador: os pais e
os professores, os pastores e os agentes pastorais, os operadores da informação
e quantos prestam um serviço social ou político.
Não surpreende que um papa se ancore nas páginas bíblicas para indicar o caminho para a
aprendizagem da escuta, escuta que não se reduz à perceção acústica, mas que é
a marca da relação dialogal entre os homens, como o é da relação dialogal entre
Deus e a humanidade. De facto, “o shema’ Israel – escuta, Israel” (Dt 6,4),
do Decálogo – é continuamente lembrado na Bíblia, a ponto de Paulo afirmar que
“a fé vem da escuta” (Rm 10,17). De facto, entre os cinco sentidos,
Deus privilegia o ouvido, quiçá por ser menos invasivo e mais discreto que a
vista, deixando mais livre o interlocutor.
É a escuta
que leva Deus revelar-Se como Aquele que, falando, cria o homem à sua imagem e,
ouvindo-o, o reconhece como interlocutor. Porque ama o homem, dirige-lhe a
Palavra e “inclina o ouvido” para o escutar. Ao invés, o homem foge da relação
e fecha o ouvido para não ter de executar. E esta atitude de recusa pode
redundar em agressividade sobre o outro, como sucedeu com os ouvintes de
Estêvão que, tapando os ouvidos, se atiraram todos contra ele (cf At 7,57).
Deus chama
explicitamente o homem a uma aliança de amor, para que possa tornar-se
plenamente o que é: imagem e semelhança de Deus na capacidade de ouvir, de acolher,
de dar espaço ao outro, pois, “a escuta é uma dimensão do amor”. Por
conseguinte, Jesus convida os discípulos a verificarem a qualidade da sua
escuta. “Vede, pois, como ouvis”
(Lc 8, 8) é a advertência que lhes faz depois de ter contado a
parábola do semeador, sugerindo que não basta ouvir, mas que é preciso fazê-lo
bem. Na verdade, só prestando atenção a quem ouvimos, àquilo
que ouvimos e ao modo
como ouvimos, poderemos crescer na arte de comunicar.
Todos temos dois
ouvidos, mas, não raro, mesmo que tenhamos “um ouvido perfeito, é-nos difícil
escutar o outro, por causa da surdez interior, bem pior que a surdez física. É
que a escuta não tem a ver só com o sentido do ouvido, mas com a pessoa toda,
sendo o coração a verdadeira sede da escuta. Salomão, apesar de muito jovem, pediu
ao Senhor “um coração que escuta”. E Santo Agostinho convidava à escuta com o
coração, ao acolhimento das palavras, não exteriormente nos ouvidos, mas no coração.
Assim, a
primeira escuta, quando se procura uma comunicação verdadeira, é a escuta de si
mesmo, relevando o que nos torna únicos na criação: o desejo de estar em relação
com os outros e com o Outro, pois não fomos feitos para viver como átomos, mas
juntos.
O Papa
adverte para o uso do ouvido que não é de verdadeira escuta, mas atitude de
espia. É a tentação de sempre, mas que, agora, em tempo da social web, “está mais assanhada”, servindo
até para instrumentalizar os outros em torno dos nossos interesses. Ao invés, o
que torna boa e humana a comunicação é a escuta do outro que, do está à nossa
frente, abeirando-nos dele com abertura leal, confiante e honesta.
A falta de
escuta, que experimentamos na vida quotidiana, é real também na vida pública,
onde com frequência, em vez de escutar, “se fala pelos cotovelos”, se procura
mais o consenso que a verdade e o bem e se presta mais atenção à audience
que à escuta. Ora, a boa comunicação não procura prender a atenção do público
com a piada fútil e ridicularizante, mas presta atenção às razões do outro e
procura fazer compreender a complexidade da realidade.
Esta visão
papal leva à aposta na prevalência duma ética da comunicação que ultrapasse o
pragmatismo da conquista de público, de leitores ou de audiências, seja por que
meio for.
Há,
efetivamente, muitos pretensos diálogos em que não comunicamos, pois apenas esperamos
que o outro acabe de falar para impormos o nosso ponto de vista. Nestas
situações, segundo Abraham Kaplan, o diálogo não passa de duólogo,
ou seja, monólogo a duas vozes. Ao invés, na verdadeira comunicação, o ‘eu’ e o
‘tu’ encontram-se ambos “em saída”, a tender um para o outro.
Nestes termos,
a escuta é o primeiro e indispensável ingrediente da boa comunicação. Não se
comunica, se primeiro não se escutou, nem se faz bom jornalismo sem a
capacidade de escutar. Para uma informação sólida, equilibrada e completa, é
preciso ter escutado. Para narrar um facto ou descrever uma realidade numa
reportagem, é essencial ter sabido escutar, prontos mesmo a mudar de ideia, a
modificar as próprias hipóteses com que partíramos para o terreno. É preciso
ouvir, mesmo que as pessoas não saibam ou não consigam falar, sem as expor
demasiado, sem as ridicularizar ou humilhar, mas intuindo as suas alegrias,
esperanças, aspirações, desilusões e dores. Na verdade, só ultrapassando o
monólogo, se pode chegar à concordância de vozes que é garantia da verdadeira
comunicação. Ouvir várias fontes, “não parar na primeira locanda” garante
credibilidade e seriedade à informação que transmitimos. Escutar várias vozes –
inclusive na Igreja – entre irmãos e irmãs, permite exercitar a arte do
discernimento, que se apresenta sempre como a capacidade de se orientar numa
sinfonia de vozes.
Francisco
menciona o cardeal Agostinho Casaroli, que falava do martírio da paciência,
necessário para escutar e fazer-se escutar nas negociações com os
interlocutores mais difíceis a fim de se obter o maior bem possível em
condições de liberdade limitada. Ao mesmo tempo, o Pontífice, partindo da curiosidade
da criança que “olha para o mundo em redor com os olhos arregalados”, quer que
se escute com este estado de espírito, pois “haverá sempre qualquer coisa, por
mínima que seja”, que poderemos aprender do outro e fazer frutificar nas nossas
vidas.
E o Papa
aponta dois contextos adversos à dinâmica da boa comunicação: a pandemia, que
originou um ambiente de grande desconfiança que anteriormente se foi acumulando
relativamente à “informação oficial”, causando mesmo uma espécie de “infodemia”,
que tornou menos credível e transparente o mundo da informação (verborreia e
contradição); e a crescente realidade das migrações, para a qual ninguém tem
receita pronta, estável e adequada. São contextos em que se agudizou a
necessidade de ser ouvido e a que falta, muitas vezes, a capacidade de escuta.
O Pontífice sublinha que, na Igreja, há grande necessidade de escutar e de nos
escutarmos. Porém, os cristãos esquecem que o serviço da escuta lhes foi
confiado por Aquele que é o ouvinte por excelência e em cuja obra somos
chamados a participar. E cita o teólogo Dietrich Bonhöffer, para afirmar que o
primeiro serviço na comunhão que devemos aos outros é prestar-lhes ouvidos,
pois “quem não sabe escutar o irmão, depressa deixará de ser capaz de escutar o
próprio Deus”. Assim, na ação pastoral, a obra mais importante é o “apostolado
do ouvido”: escutar, antes de falar; e oferecer um pouco do próprio tempo para
escutar as pessoas é o grande gesto de caridade.
Por fim, o Papa
fala do processo sinodal em curso como “grande ocasião de escuta recíproca”. E
frisa que a comunhão não é o resultado de estratégias e programas, mas se
edifica na escuta mútua entre irmãos e irmãs, não na uniformidade, mas a pluralidade
e variedade das vozes: a polifonia. Por isso, exorta: “Cientes de participar
numa comunhão que nos precede e inclui, possamos descobrir uma Igreja
sinfónica, na qual cada um é capaz de cantar com a própria voz, acolhendo como
dom as dos outros, para manifestar a harmonia do conjunto que o Espírito Santo
compõe”.
2022.05.29 – Louro de Carvalho
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