De acordo
com o respetivo comunicado, ficamos a saber que o Conselho de Ministros aprovou,
no dia 26 de maio, a proposta de lei, a submeter à apreciação do Parlamento, de
regulação do acesso a metadados referentes a comunicações eletrónicas para fins
de investigação penal. O diploma estabelece regras de acesso pelas autoridades
judiciárias a dados de tráfego tratados por empresas que oferecem redes e ou
serviços de comunicações eletrónicas para efeitos de faturação, estando em
causa a investigação de certos crimes e desde que isso se torne “indispensável
para a descoberta da verdade ou a prova seja, de outra forma, impossível ou
muito difícil de obter”.
Trata-se de reformular
a Lei n.º 32/2008, de 17 de julho, que “transpõe para a ordem jurídica
interna a Diretiva n.º 2006/24/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15
de março, relativa à conservação de dados gerados ou tratados no contexto da
oferta de serviços de comunicações eletrónicas publicamente disponíveis ou de
redes públicas de comunicações”, prevalecendo em vigor na redação que lhe deu a
Lei n.º 79/2021, de 24 de novembro.
Como observou a ministra Catarina
Sarmento e Castro, na conferência de imprensa subsequente à reunião do Conselho
de Ministros, a susodita proposta de lei não cria “uma base de dados específica para a investigação
criminal”. A este respeito, a titular da pasta da Justiça vincou: “Mudámos o
paradigma”. E esclareceu que a proposta prevê “o acesso às bases de dados que
já existem e que são mantidas pelas operadoras no exercício da sua atividade
comercial, ou seja, não vamos manter uma base de dados separada, com dados
conservados durante um ano para a exclusiva finalidade da investigação
criminal, vamos, antes, aceder às bases de dados que, no dia a dia da sua
atividade corrente, estas operadoras já utilizam na sua prestação de serviços”.
A governante
reforçou que não se pretende criar “um dever de retenção da informação relativa
a todas as pessoas”, mas que “há uma mudança de paradigma; e para a
investigação criminal serão utilizados os dados de que hoje, correntemente, as
operadoras já dispõem”, sendo o acesso feito “para que se possa combater o
terrorismo, a criminalidade organizada, o tráfico de pessoas e o tráfico de
droga”.
Catarina
Sarmento e Castro salientou que havia que cumprir a decisão do Tribunal Constitucional
(TC) e que não se podia “interferir naquilo que ficou resolvido” com o acórdão
daquele tribunal, que declarou inconstitucionais normas da Lei n.º 32/2008, de
17 de julho, sobre a utilização dos metadados pela investigação criminal. Com efeito,
“aquela base de dados deixou de existir”; dá-se um passo em frente para “aceder
a alguma informação”; e a proposta de lei resolve a questão colocada pela decisão
do TC (penso que vale o mesmo aceder à
base comum ou a uma específica).
A ministra
enfatizou que o diploma, a submeter à Assembleia da República, resultou de um
grupo de trabalho que envolveu órgãos de polícia criminal e a Procuradoria-Geral
da República; e que este grupo considerou que “era suficiente a informação das
operadoras de telecomunicações” no âmbito da sua atividade comercial para a
investigação criminal.
***
Esta iniciativa
governamental decorre do facto de o Tribunal de Justiça de União Europeia (TJUE)
haver reprovado a predita diretiva comunitária. Fê-lo com base em queixa que
lhe foi apresentada.
Na sequência,
em Portugal, a Provedora de Justiça requereu ao TC, a
apreciação e declaração, com força obrigatória geral, da inconstitucionalidade
das normas constantes dos artigos 4.º, 6.º e 9.º da Lei n.º 32/2008, de 17 de
julho, por violarem o princípio da proporcionalidade na restrição dos direitos
à reserva da intimidade da vida privada e familiar (n.º 1 do art.º 26.º da
Constituição), ao sigilo das comunicações (n.º 1 do art.º 34.º da Constituição)
e a uma tutela jurisdicional efetiva (n.º 1 do art.º 20.º da Constituição).
Na sequência, pelo acórdão n.º 268/2022, o TC decidiu: declarar a inconstitucionalidade, com
força obrigatória geral, da norma do artigo 4.º da Lei n.º 32/2008, de 17 de
julho, conjugada com o seu art.º 6.º, por violação do disposto nos números 1 e
4 do art.º 35.º e do n.º 1 do art.º 26.º, em conjugação com o n.º 2 do art.º
n.º 18.º, todos da Constituição; e declarar a inconstitucionalidade, com força
obrigatória geral, da norma do art.º 9.º da mesma lei, no referente à
transmissão de dados armazenados às autoridades competentes para investigação,
deteção e repressão de crimes graves, na parte em que não prevê uma notificação
ao visado de que os dados conservados foram acedidos pelas autoridades de
investigação criminal, a partir do momento em que tal comunicação não seja
suscetível de comprometer as investigações nem a vida ou integridade física de
terceiros, por violação do disposto no n.º 1 do art.º 35.º e do n.º 1 do art.º
20.º, em conjugação com o n.º 2 do art.º 18.º, todos da Constituição.
O Primeiro-Ministro, invocando o n.º 3 do art.º 282.º da Constituição,
apontou que os casos julgados (de que não haja recurso) não são abrangidos pelo
dito acórdão, uma vez que o TC não declarou incluí-los na abrangência da sua decisão
– o que mereceu, da parte do bastonário da Ordem dos Advogados, a acusação de
que o chefe do Governo se estava a intrometer na área da justiça, acusação abstrusa,
pois isso é também sustentado pelo advogado José de Matos Correia.
Ao invés, o Presidente da República opinou que os processos poderão de ter
de ser revistos e outras vozes da área da justiça clamaram que vinha aí o caos.
E alguns juízes do TC vieram lançar em público a hipótese de os processos serem
revistos, pois há uma norma que estabelece que a prova produzida por meios
ilegais é nula. Nesse caso, deveriam tê-lo escrito no acórdão.
Entretanto, a Procuradora-Geral da República arguiu junto do TC a nulidade
do acórdão n.º 268/2022, com base na possibilidade de vulnerar os interesses da
legalidade democrática e da promoção da defesa dos valores constitucionais do
Estado de direito democrático e da boa administração, que o Ministério Público defende;
na contradição entre a fundamentação e a decisão, pois o n.º 18 da
fundamentação exclui do juízo de inconstitucionalidade os dados de base, embora
o dispositivo declare a inconstitucionalidade de todo o art.º 4.º da lei em
referência; e na omissão de pronúncia, pois não fixou o Tribunal “os efeitos da inconstitucionalidade, permitindo a
aplicação retrospetiva, e mesmo retroativa, da sua doutrina, pondo em risco
aqueles interesses constitucionalmente protegidos”. Porém, o TC, pelo acórdão
n.º 382/2022, conclui que “a Procuradora-Geral da República
carece de legitimidade, processual e constitucional, para suscitar o presente
incidente pós-decisório, razão pela qual se decide não tomar conhecimento do
requerimento apresentado”. Ora, do meu ponto de vista, a Procuradora-Geral
da República, se pode suscitar a fiscalização sucessiva da constitucionalidade,
há de ter legitimidade para suscitar um incidente pós-decisório. Todavia,
parece excessivo ter arguido a nulidade, podendo ter optado pelo pedido de clarificação,
designadamente sobre a retroatividade ou não dos efeitos do acórdão – sendo perfeitamente
legítimo que o TC tomasse nova decisão complementar, até porque o n.º 1 do
referido art.º 282.º da Constituição estabelece que “a declaração de inconstitucionalidade
ou de ilegalidade produz efeitos desde a entrada em vigor” da norma em causa e “determina
a repristinação das normas que ela tenha revogado”. E, assim, para que não se
entrasse num pântano de insegurança jurídica, teria sido útil que o TC fixasse
os efeitos da sua decisão com um alcance mais restrito que o previsto, a teor
do art.º do n.º 4 do art.º 282.º da Constituição.
As decisões dos tribunais “são obrigatórias para
todas as entidades públicas e privadas e prevalecem sobre as de quaisquer
outras autoridades” (n.º 2 do art.º 205.º da Constituição). Porém, não podem
escapar ao escrutínio da opinião pública e à crítica, se merecida. Nem parece
que membro do governo ou deputado que faça comentário crítico aos tribunais belisque
o princípio da separação dos poderes, a menos que torpedeie a justiça ou a crítica
seja deveras demolidora.
Também não percebo como pôde a Procuradora-Geral da República recomendar
aos procuradores que se escudassem na Lei n.º 41/2004, de
18 de agosto, que se tornou obsoleta com a publicação da lei que agora viu
julgadas inconstitucionais algumas das suas normas basilares e que não estão
protegidas pela anterior. Com efeito, quando há reordenamento da matéria, a lei
vigente deveria ter-se por revogada. E não vejo como a manutenção da informação
sensível por um ano viola o princípio da proporcionalidade e, se for por seis
meses, já estará tudo bem, como não entendo que se possam manter chamadas e
dados, mas sem referência à localização do telefone usado.
Enfim, somos chamados a uma excessiva defesa dos
dados pessoais, com sabor a ultraliberalismo, e não zelamos o interesse público
e a sujeição do interesse particular ao interesse geral, de tal modo que dificilmente
será eficaz o combate ao crime organizado – corrupção, branqueamento de
capitais, etc. – ao terrorismo e mesmo comuns crimes de sangue. Até parece que
não se quer combater o crime. Ao invés, quer-se pôr o país em roda livre, a
rogo de interesses instalados.
Por fim, acresce insustentável o anúncio, por
parte do Presidente da República, da sua intenção de sujeitar ao juízo prévio do
TC a futura lei cujo conteúdo ainda não está fixado, ou seja, tem dúvidas sobre
o que ainda não existe, o que não é plausível. E, por outro lado, parece que o
TC está com tendência a judicializar o poder político que resulte de eleições,
quando a casa da democracia é o Parlamento e o titular do poder soberano é o
povo, que paga a todos os detentores do exercício do poder, em que se inclui, obviamente,
a administração da justiça.
2022.05.26
– Louro de Carvalho
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