Um estudo realizado por uma
equipa da Universidade de Coimbra (UC) conclui que a pandemia de covid-19 teve “um
significativo impacto negativo na saúde mental dos jovens portugueses,
especialmente nos níveis de depressão e de ansiedade”, mas também no aumento da
tristeza, medo,
raiva e, enfim, descida da felicidade – segundo informação da UC à Lusa.
Este estudo
sobre o efeito da pandemia na saúde mental dos jovens integra-se no projeto
SMS (“Sucesso, Mente e
Saúde”), financiado pelo
programa “Portugal Inovação Social” e
pelo município da Figueira da Foz, que tem como grande objetivo a promoção da
saúde mental e o combate ao estigma social e ao insucesso escolar associados à
doença mental.
Trata-se de resultados ainda
preliminares, mas indicam que 14% dos
adolescentes, com idades compreendidas entre os 13 e os 16 anos e uma média de
idades de 14 anos, apresentam “sintomatologia depressiva elevada (acima do
percentil 90) durante a
pandemia, percentagem superior à encontrada num estudo conduzido pela mesma
equipa de investigadores durante a crise financeira portuguesa de 2009-2014,
que era de 08%”.
Este estudo
longitudinal, liderado por Ana Paula Matos, docente da FPCEUC (Faculdade
de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Coimbra) com a colaboração de
investigadores das universidades Emory, nos Estados Unidos da América, e da
Islândia, assinala que o referido aumento de emoções negativas, “como tristeza,
medo e raiva, e de sintomas de ansiedade e de uma descida da
felicidade”, coloca as raparigas em desvantagem, pois “apresentam níveis de
medo, tristeza e raiva significativamente mais elevados do que os rapazes”.
Os
investigadores começaram por comparar os níveis de emocionalidade negativa e
positiva vivenciados pelos jovens, antes e depois da 1.ª vaga da pandemia, a
partir duma amostra constituída por 206 adolescentes a frequentar o 9.º ano de
escolaridade (51%
raparigas), tendo-se
verificado, como se disse, “um aumento significativo da tristeza, do medo e da
raiva e uma descida da felicidade”. Posteriormente, na segunda vaga da pandemia
em Portugal, em novembro-dezembro de 2020, em que se registou um aumento de
casos na população mais jovem, parte da amostra (122 adolescentes) foi reavaliada, vindo a verificar-se “nova subida dos níveis
de medo, assim como um aumento significativo de sintomas de ansiedade,
comparando os dois momentos da pandemia” (primeira e segunda vagas).
Segundo Ana
Paula Matos, docente da FPCEUC e investigadora do Centro de Investigação em
Neuropsicologia e Intervenção Cognitivo-Comportamental, “as raparigas
apresentaram níveis significativamente mais elevados do que os rapazes, de
medo, tristeza e raiva, quer antes do surto pandémico de covid-19, quer nas duas
vagas da pandemia”.
Os
especialistas analisaram ainda os fatores de proteção e de risco para o
desenvolvimento da depressão, concluindo, segundo Paula Matos, que as competências
de autocompaixão e de atenção plena (mindfulness), uma visão mais positiva de si próprio/a e a realização de
mais atividades de lazer “são fatores de proteção, isto é, fatores que previnem
a depressão” e que, ao invés, “a sintomatologia de ansiedade constitui um
fator de risco e um preditor de depressão”.
Ana Paula
Matos sustenta que estes resultados “salientam a necessidade de se dotarem os
jovens de mecanismos de proteção para a depressão, promovendo competências de
autocompaixão e mindfulness e uma perceção mais positiva de
si próprio/a”, o que se enquadra no âmbito dos objetivos do projeto SMS, já
referido, cujos resultados preliminares indicam uma redução de sintomatologia
depressiva e tristeza, bem como um aumento de mecanismos de autorregulação
emocional”.
***
Já em abril de 2020 Patrícia Branco referia que Boaventura
de Sousa Santos instigara a examinar os efeitos da quarentena provocada pela covid-19
em diversos grupos de pessoas vulneráveis ou para quem o isolamento social é
muito negativo: mulheres, precários, sem-abrigo, refugiados, idosos, presos. Porém,
salientava uma vulnerabilidade que merece especial atenção, a das crianças e
dos jovens, pois as relações com os outros grupos apresentados são múltiplas,
sendo que dessas relações depende o maior ou menor impacto que a covid-19
poderá ter sobre as crianças e os jovens. Apesar de o número de contágios entre
crianças e jovens ser inferior e com efeitos ligeiros em relação ao que
acontece noutros contextos epidémicos, as crianças são particularmente
vulneráveis aos efeitos sociais e económicos do confinamento.
É certo que as crianças não são todas iguais, nem os impactos
do isolamento se lhes fazem sentir de igual modo, mas o isolamento a que estamos
obrigados tem um efeito de amplificador das desigualdades sociais. E ainda não
tinha vindo o segundo confinamento, que piorou tudo!
Assim,
quanto ao isolamento em casa, é de referir que, a par de casas com jardim,
logradouro e varanda, há casas pequenas e sobrelotadas, muitas das quais sem
condições de habitabilidade e salubridade, o que torna difícil, por exemplo, lavar
as mãos com frequência. Há crianças que não têm casa e muitas para quem a covid-19
pode significar ainda a perda do ou dos adultos cuidadores de referência. E é de
pensar nas crianças que vivem com as mães na prisão, nas famílias monoparentais
e nas crianças cujos cuidadores são as e os avós.
Ficar em
casa pode efetivamente evitar o contágio, mas pode, segundo os pediatras, ter
efeitos perversos no desenvolvimento, já que a assunção de vitamina D, a
prática de exercício ao ar livre e a rotina de sair à rua são fundamentais e,
de forma especial, para os autistas. E diga-se que o badalado superior ringesse
das crianças pareceu inferior ao dos canídeos, para os quais a legislação
previu o passeio higiénico acompanhado do respetivo dono.
Ora, se já
nos debatíamos com a excessiva sedentarização das crianças, prisão ao mundo da
consola, computador e internet e risco de obesidade, o confinamento não fez
mais que agravar estas situações negativas potenciando a antissocialização das
crianças e adolescentes.
Em Itália,
apesar de o Governo ter esclarecido que às crianças é permitido sair por tempo
breve e perto de casa, as reações logo se fizeram sentir, com muitos vizinhos a
insultar os pais das crianças que saíam de casa com elas – atitude semelhante à
de um fascismo social.
Ficar em
casa pode ser ficar em ambiente hostil, pois, tendo aumentado a violência
doméstica, aumentaram as possibilidades de estarem envolvidas crianças, para
quem diminuíram as formas de se fazerem escutar, com as visitas pelas/os técnicas/os
das CPCJ reduzidas ao mínimo, sendo que as escolas, muitas vezes as principais
sinalizadoras das situações, fecharam.
O fecho de
escolas levou à prossecução do ano escolar através de meios ou ferramentas
virtuais. E os efeitos foram mais que muitos: crianças que têm computador,
tablet, smartphone, que os sabem manusear ou cujos progenitores as conseguem
auxiliar; crianças e progenitores que, tendo os aparelhos, são analfabetos
informáticos e têm dificuldades em aceder às plataformas digitais; crianças que
convivem com um ou dois progenitores em teletrabalho; e crianças que não têm
computador/telemóvel, ou tendo-os, não têm acesso à internet. Ora, estas
situações implicavam que, previamente, as escolas estivessem dotadas de
instrumentos capazes de providenciar uma didática à distância, e que os
professores fossem capazes, num curto espaço de tempo, de preparar aulas e
materiais.
O regresso
da telescola surgiu, mas sem garantia do acompanhamento das crianças e
adolescentes, atreitos à dispersão. E fazer aulas síncronas para crianças do
1.º Ciclo a olhar para o pequeno ecrã sem verem os colegas e com a ligação a
ficar intermitente não passa de remendo mal pregado. E descurou-se o papel da
escola no nivelamento social, bem como a tendência para a agudização das desigualdades
de aprendizagem.
Depois, o
fecho das escolas não tem efeitos só em termos da aprendizagem. Há crianças cuja
única refeição quente é a servida na escola. É certo que várias centenas de
escolas continuam a assegurar as refeições. E, se havia famílias que, antes da
pandemia, conseguiam assegurar que nada faltasse em casa, muitos trabalhadores
precários ou que trabalhavam no mercado informal de trabalho perderam a sua
fonte de rendimento, de que resultaram situações de desespero. E são as
crianças que delas dão mais conta, revelando, nas suas ações, formas de
resistência.
Enfim, há
que pensar nas crianças que perderam os idosos da família sem poderem fazer o
luto.
***
Entretanto, surgiu em Leiria, no outono de
2016, e vem-se espalhando pelo país o programa “Brincar de Rua” para combater o sedentarismo das crianças, devolvendo-lhes
a rua para brincar com a colaboração de guardiões (voluntários que
recebem formação) para a brincadeira decorrer em segurança. Porém, em confinamento,
edita e-books temáticos, descarregáveis gratuitamente, ajudando pais e filhos.
O “Brincar de Rua”, ora ‘recolhido’, acabou
de lançar um e-book sobre o combate à obesidade infantil. De facto, a pandemia veio agravar o
que era evidente: as crianças estavam confinadas em casa, entre telhados e
paredes. E isso tornou-se mais visível com a pandemia. Agora os adultos (pais/avós) em casa veem como elas passam ali o
dia. E, sobretudo, veem que não basta descartá-las para as instituições, mas que
têm de pensar no legado a deixar-lhes.
O e-book surge como chamada de alerta para esta realidade,
pois estudo recente mostra que no primeiro confinamento as crianças levaram 80%
do tempo em atividades sedentárias. E a APCOI (Associação Portuguesa contra a Obesidade Infantil) fala do que o “Brincar de Rua” verificara: quando voltámos à escola, os miúdos pareciam
mais gordinhos. E, num estudo com a Universidade de Lisboa sobre a
obesidade infantil, concluiu pelo aumento do peso nas crianças.
Isto que dizer que os
sinais foram
acentuados pela pandemia, mas já se evidenciavam pela nossa tendência de mundo
ocidental de privilegiar o estudo, focando-nos demasiado nas atividades
intelectuais, sem equacionarmos como deve ser o verdadeiro impacto dos ecrãs na
vida dos miúdos, “sobretudo pelo que não dão”.
Os ecrãs dão estímulos que não se coadunam com as
necessidades da criança, pois a sua experiência tem de ser essencialmente
sensorial e motora, de investimento corporal. E só a partir da puberdade é que
as coisas mais intelectuais começam a ganhar espaço significativo.
Assim, pôr a criança de 2 anos a pegar num tablet, a de 5
anos a passar horas à frente dum ecrã ou a 10 anos a passar 300 minutos à frente
dum ecrã por dia, é construir o edifício do ser pelo telhado e com riscos.
Porém, isto só se consegue com empatia e sabendo lidar com as birras.
Além do aludido e-book, há vários já planeados, sendo o próximo sobre os ecrãs. A estrutura é: o que a ciência diz sobre o tema; e como podemos pensar proativamente para combater e prevenir este problema. São dirigidos aos pais e podem ser descarregados gratuitamente no site do “Brincar de Rua”. Começou-se pelo sedentarismo e obesidade infantil por se tratar do problema cuja consequência será mais silenciosa. A criança obesa pode começar a desenvolver sintomas patológicos graves. Um corpo obeso vai-se deteriorando e vai gerando patologias que se podem alojar, não de forma imediata, mas a médio e longo prazo. Assim, antes da covid, já a OMS falava da pandemia do sedentarismo e obesidade infantil.
Os responsáveis pelo “Brincar
de Rua” dizem que, de momento, o programa suporta os custos com ganhos que
teve antes da pandemia e com o prémio da UEFA Foundation for Children, de
2020. A UEFA reconheceu-os como entidade promotora da atividade física e bem-estar
das crianças. O prémio de 50 mil euros fez ganhar uma bolsa de oxigénio, pois terminou
no final de novembro o financiamento no âmbito do programa Portugal Inovação Social.
A pandemia veio
reforçar o sentido de missão do “Brincar de Rua”, como
sucedeu com outros projetos que privilegiam o modo como os pais têm de pensar o
crescimento dos filhos, não deixando à escola a responsabilidade da educação
dos miúdos e pensar que isto amanhã se resolve. Com efeito, não é de crer que
as crianças que hoje comem mal manhã passarão a comer melhor, como, se uma
criança não ganha hábitos de andar de bicicleta, correr lá fora, observar a
natureza, e de a respeitar, dificilmente se tornará ativa e preocupada com o
mundo que tem à sua volta. Por isso, infância não pode rimar com inatividade,
indoor, afastamento social. E, se é importante dizer às crianças que agora não
é o tempo de estarmos juntos, isso não pode querer dizer que deixemos de nos
preocupar com os nossos vizinhos, com quem está à nossa volta, com quem se
dirige a nós na rua. Ora, isto exige e espera uma verdadeira mudança, um
verdadeiro movimento de transformação social.
Aquando do regresso à escola, alguns grupos quiseram voltar à
rua, mas, como as regras mudavam a cada semana e eram diferentes de concelho
para concelho, passou a haver instabilidade e insegurança nas pessoas. Por isso,
a organização focou-se no que poderia fazer para melhorar a vida dos miúdos
neste tempo de pandemia.
Entretanto, critica o facto de em Portugal se gostar muito da cultura de infantilizar as pessoas e as culpabilizar.
Assim, ‘portaram-se mal no Natal e agora
vão ficar todos de castigo”. E até se inventam novidades absurdas como “sair
de casa com responsabilidade”.
Na verdade, é de acalentar a esperança de a pandemia ficar mais controlada para
que as crianças possam voltar a brincar na rua e se encontrarem com os seus
vizinhos, com os seus amigos. Temos que perceber que, por muita tecnologia e
muitos avanços em muitas áreas, continuamos a ser animais que vivem num
ecossistema, de que não se podem distanciar por muito que a tecnologia tenha
transformado a nossa vida e nos tenha permitido criar ambientes artificiais que
– de uma forma às vezes bem conseguida – reproduzem aquilo que é a vida
natural.
Contam que, há dias, se fez a primeira apresentação
internacional do “Brincar de Rua”
muito sui generis a um grupo de
miúdos do Canadá que também estão em confinamento. Como vão arrancar as AEC (atividades de enriquecimento
curricular) à distância,
acharam engraçado fazer esse intercâmbio com miúdos de outros países. O professor
falava-lhes da varanda e eles viam pelo Google Earth o Castelo de Leiria.
Porém, confessa que nada substitui o que é a experiência real.
Pela insuficiente experiência real da sociedade e da
natureza, aprenderemos as lições que a pandemia nos pôde proporcionar,
articulando a preservação com a humanização?
2021.02.26
– Louro de Carvalho
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