sexta-feira, 11 de julho de 2025

Violação passará a ser crime público, postulando especial cuidado

 
Foi aprovada, em debate na generalidade, a 11 de julho, na Assembleia da República (AR), a classificação da violação como crime público, o que implica alterações ao Código Penal (CP) e ao Código de Processo Penal (CPP), assim como ao estatuto da vítima, aprovado pela Lei n.º 130/2015, de 4 de setembro, alterada pela Lei n.º 45/2023, de 17 de agosto.
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Até agora, Portugal era um dos poucos países da Europa onde a violação não era crime público, além de Itália e San Marino, contrariando recomendações da Convenção de Istambul, de 11 de maio de 2011, que visa combater a violência doméstica e a violação e que foi aprovada pela Resolução da Assembleia da República n.º 4/2013, de 21 de janeiro.
A própria União Europeia (UE) adotou uma lei sobre violência contra as mulheres, sem incluir a violação. Até nem há uma definição comum do crime de violação na primeira lei da UE para combater a violência contra as mulheres e contra a violência doméstica, sobre a qual chegaram a acordo, a 7 de fevereiro de 2024, os representantes dos 27 estados-membros e os do Parlamento Europeu (PE).
O projeto original, apresentado pela Comissão Europeia, em março de 2022, definia o crime de violação como sexo sem consentimento e sem necessidade de as vítimas apresentarem provas de força, de ameaças ou de coerção. Baseava-se no conceito de “só sim significa sim”, que se enraizou em muitos estados-membros da UE, devido ao número alarmante de crimes sexuais contra mulheres e raparigas. Todavia, após meses de negociações minuciosas, 14 estados-membros continuaram a bloquear a definição baseada no consentimento. Entre eles, estão países de Leste, tais como a Bulgária, a Hungria e a Chéquia, bem como a França, a Alemanha e os Países Baixos. Ora, segundo estimativas da Agência dos Direitos Fundamentais da UE, cerca de 5% das mulheres, na UE, foram violadas, depois de completarem 15 anos.
A eurodeputada irlandesa de centro-direita Frances Fitzgerald, uma das principais negociadoras do PE, afirmou que o bloco tem “assuntos inacabados” para proteger as mulheres da violência, o que é uma grande desilusão, considerando a dimensão das estatísticas de violência, na UE.
Frances Fitzgerald reconheceu que houve algum “movimento positivo” da parte de alguns  países, já que 11 países decidiram aceitar a definição baseada no consentimento, durante as negociações. Porém, numa concessão de última hora, foi incluída uma cláusula de revisão para reconsiderar o âmbito do projeto de lei, após cinco anos de aplicação. E, mais tarde, foi acrescentado um artigo que obriga os estados-membros a “aumentar a consciencialização”, em relação ao consentimento sexual, e a promover uma “cultura baseada no consentimento”. No entanto, isto fica muito aquém da ambição original da Comissão Europeia de criminalizar o sexo não consentido em todo o bloco.
O projeto final criminaliza outras formas de violência contra as mulheres, entre as quais o casamento forçado e a mutilação genital feminina, e preenche lacunas jurídicas existentes em alguns países da UE, no atinente à ciberviolência, incluindo o assédio e a perseguição em linha.
Assim, o “flashing cibernético”, em que imagens de nudez são enviadas pela Internet, sem o consentimento do destinatário, bem como a partilha não consensual de imagens íntimas, também conhecida como “pornografia de vingança”, passarão a ser crimes, em toda a UE. E as regras aplicar-se-ão também à partilha de imagens pornográficas geradas por inteligência artificial (IA), medida que surge depois de, em janeiro de 2024, a cantora pop Taylor Swift ter sido vítima  de ataques com imagens geradas por IA, que estão a aumentar entre os menores.
A França e a Alemanha foram criticadas, por terem bloqueado a criminalização da violação em toda a UE, quando o apoio de qualquer um destes países teria sido suficiente para que fosse aprovada a definição baseada no consentimento, a qual foi excluída, apesar de a grande maioria dos estados-membros ser parte da Convenção de Istambul, que determina que a ausência de consentimento é a definição de violação.
A relutância do presidente francês, Emmanuel Macron, em apoiar a iniciativa gerou controvérsia, em França. Prometeu defender os direitos das mulheres, no seu segundo mandato, mas foi criticado por ter defendido o direito do ator francês Gérard Depardieu a ser presumido inocente, depois de ter sido acusado de agressão sexual.
Um porta-voz do governo francês salientou que a posição da França se baseia em fundamentos puramente jurídicos, já que o direito penal é da competência dos estados-membros, pelo que a violação deve ser processada a nível nacional. Com efeito, a França tem algumas das penas mais rigorosas para a agressão sexual de todos os estados-membros, bem como critérios “generosos e flexíveis” para que a agressão sexual seja considerada violação.
Os negociadores do PE reconheceram que a competência legal foi um fator crucial na resistência e que o sentimento eurocético e a reação contra o desejo de instituições europeias imporem esta legislação foram determinantes para a dinâmica das conversações.
Não obstante, a eurodeputada Incir apelou ao presidente Macron para que, “pelo menos, dê um passo em frente para uma definição de violação baseada no consentimento, a nível nacional” e pediu à primeira-ministra italiana, Giorgia Meloni, que altere as leis de violação nacionais  com base no conceito “só sim significa sim”, pois o seu governo é a favor da definição a nível da UE.
Irene Rosales, responsável pelas políticas e campanhas do Lóbi Europeu das Mulheres, lamenta a “decisão ultrajante imposta pela França e pela Alemanha de suprimir o artigo 5.º da definição harmonizada de violação baseada no consentimento, de acordo com as normas da Convenção de Istambul”. “É completamente hipócrita e uma oportunidade perdida para proteger as mulheres e as raparigas de uma das formas mais hediondas de violência”, afirmou.
Entretanto, esta diretiva, aprovada em abril de 2024, deve ser cumprida até 2027.
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Quanto à sessão parlamentar do dia 11, em Portugal, é de referir que o primeiro projeto sujeito à votação foi apresentado pela deputada Mariana Mortágua, coordenadora do Bloco de Esquerda (BE), segundo o qual qualquer pessoa pode denunciar um crime de violação e não apenas a vítima. Os votos a favor vieram do Partido Social Democrata (PSD), do partido do Chega, da Iniciativa Liberal (IL), do Livre, do partido do Centro Democrático Social - Partido Popular (CDS-PP), do BE, do partido Pessoas-Animais-Natureza (PAN) e do Juntos pelo Povo (JPP), assim como de 12 parlamentares do Partido Socialista (PS), incluindo o ex-secretário-geral, Pedro Nuno Santos, Elza Pais e Sofia Pereira, enquanto os grupos parlamentares do PS e do Partido Comunista Português (PCP) se abstiveram.
Outro projeto de lei, do PAN, com o mesmo objetivo, foi aprovado com a abstenção do PS, da IL e do PCP e com os votos a favor das restantes bancadas e de deputados do PS.
Já o diploma do Chega, que também pretende alterar a lei penal, para que o crime de violação passe a ter natureza pública, foi aprovado com a abstenção do PS, da IL, do Livre, do PCP e do JPP e com os votos a favor das restantes bancadas.
Com o mesmo objetivo, o Livre apresentou um diploma que foi aprovado com a abstenção do PS e do PCP e com os votos a favor das outras bancadas e dos mesmos deputados socialistas, enquanto foi rejeitado o diploma do PAN para alargar o prazo de prescrição dos crimes.
Em vídeo divulgado após a votação, o líder parlamentar do PS justificou a abstenção, neste conjunto de iniciativas, por considerar que, ao tornar a violação um crime público, o “Ministério Público [MP] deixa de auscultar a vítima para prosseguir”. “O caráter automático de transformar este crime num crime público deixa a participação da vítima de fora e nós não podemos deixar a vítima, que sofreu um crime horrível, de fora do processo penal”, salientou Eurico Brilhante Dias, mas sustentando que “é possível ir mais longe” na relação entre o MP e a vítima, mas também “é preciso trabalhar na especialidade”.
Os projetos de lei aprovados baixaram à comissão para o debate na especialidade e para eventuais ajustes ou, mesmo, para a transformação num texto comum.
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O debate começou, no dia 10, já se sabendo que a proposta seria aprovada pelo PSD, posição que foi confirmada pela deputada social-democrata Eva Brás Pinho: “Acompanhamos esta evolução legislativa.” A dignidade da vítima deve ser protegida a todo o custo, mas essa dignidade exige que o silêncio não signifique impunidade”, defendeu a deputada, num discurso que mereceu ovação da parte da sua bancada e aplausos dos deputados do Livre de alguns do PS.
A mudança de posição do PSD – que se absteve ou votou contra as votações anteriores, sobre esta matéria – é conexa com a diretiva europeia que prevê um apertar das regras contra a violência contra as mulheres até 2027.
A matéria é sensível. A Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV) tem-se batido pela classificação da violação como crime público. O Relatório Anual de Segurança Interna (RASI), demonstra que este tipo de crimes tem aumentado. Porém, o PS, o PSD e o PCP consideram fundamental garantir à vítima direito ao anonimato e ao esquecimento. Dizia um deputado do PSD: É preciso evitar que qualquer mudança da lei tenha um efeito de dupla penalização para a vítima.” Já a falecida deputada Odete Santos, do PCP, referia que era preciso equilibrar as penas com a proteção das vítimas.
Ao votar a favor as propostas do Chega, do BE, Livre e do PAN, Portugal passará a ser mais um dos países europeus onde a violação passa a crime público. Porém, apesar do desfecho ser conhecido, no início do debate, o PS e o PCP mantinham reservas, quanto à alteração da lei.
Segundo Isabel Mendes Lopes, a maior diferença desta mudança, na lei, é que o “ónus da apresentação da queixa” deixa de recair apenas sobre as vítimas. Com esta mudança, qualquer pessoa que tenha conhecimento de um crime de violação passa a ter o dever de o reportar e a investigação pode ser iniciada, mesmo sem a denúncia da vítima. E, para manter a “autonomia das vítimas”, os diplomas dos diferentes partidos incluem mecanismos, como a suspensão provisória do processo (a proposta do Livre prevê até a possibilidade de a vítima pedir o arquivamento) e a possibilidade de fazer declarações para memória futura e de escolher a pessoa que a deve ouvir.
Contudo, estas ressalvas não foram suficientes para retirar as dúvidas ao PS e ao PCP. Isabel Moreira, deputada do PS, defendeu que não se pode “obrigar a vítima a enfrentar um processo criminal que não quer” e que não deve ser o Estado a dizer à vítima “o que fazer”, após a sua liberdade já ter sido posta em causa. E o PCP expressou reservas, quanto à proteção da vítima. “As vítimas têm o direito a não serem expostas”, vincou Paula Santos, líder parlamentar comunista.
Todavia, o PCP mostrou-se disponível para discutir e aprovar “melhorias legais”, como o aumento do prazo para apresentar queixa. E o PS abriu a porta a aprovar as propostas para as discutir na especialidade: “Há espaço aqui e ali para mudar na especialidade”, admitiu Isabel Moreira.
Apesar das diferenças, é claro o consenso sobre a gravidade do crime e da necessidade de reforçar o apoio às vítimas. “Não há superioridade moral entre quem defende que deve ser um crime público e quem defende que deve ser semipúblico. É uma matéria que deve ser tratada com equilíbrio e ponderação”, atirou Rui Rocha.
Porém, este equilíbrio ponderado foi infringido por André Ventura, na única declaração inflamada do debate, lançando críticas aos partidos à esquerda, por terem considerado um “exagero”, quando o partido apresentou preocupações com o aumento da criminalidade. Depois, assegurou que 20% dos detidos por crimes sexuais são estrangeiros, mas não apresentou dados de prova.
“Não é com discursos incendiários que vamos resolver problema, mas com medidas concretas”, atirou Isabel Mendes Lopes, que fora alvo da bancada do Chega, por se ter emocionado no debate sobre nacionalidade e imigração. Após várias bocas das deputadas Rita Matias e Cristina Rodrigues, o presidente da AR advertiu: “É preciso respeitar as emoções.”
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Tornar a violação crime público tinha sido discutido, várias vezes, nos últimos anos (este foi o quinto ano), mas nenhuma proposta fora aprovada, porque o PS e o PSD aduziam que deveria ser a vítima a decidir se apresentaria queixa ou não, optando que a violação se mantivesse como crime semipúblico. Assim, a partir da entrada em vigor da lei, qualquer testemunha tem o poder e dever de reportar um caso de violação e a investigação pode começar sem denúncia.
A nova lei, como já foi dito, implica alterações ao Códigos Penal (CP) e ao Código de Processo Penal (CPP), assim como do estatuto da vítima. Com efeito, há uma nova classificação do crime e, por conseguinte, impõe-se uma alteração aos procedimentos, em consonância com a nova tipificação o crime e com a especificação, em concreto, deste crime.   
Quanto ao estatuto da vítima, aprovado pela Lei n.º 130/2015, de 4 de setembro, na atual redação, é de referir que transpõe a Diretiva 2012/29/UE do PE e do Conselho, de 25 de outubro de 2012, que estabelece normas relativas aos direitos, ao apoio e à proteção das vítimas da criminalidade e que substitui a Decisão-Quadro 2001/220/JAI do Conselho, de 15 de março de 2001, no respeito pelos princípios da igualdade, do respeito e do reconhecimento, da autonomia da vontade, da confidencialidade, do consentimento, da informação, do  acesso equitativo aos cuidados de saúde e das obrigações profissionais e regras de conduta.
O estatuto confere direitos às vítimas de criminalidade, como o direito à informação, direito à comunicação (compreendendo e sendo compreendidas), direito a assistência específica, direito a reembolso pelas despesas resultantes da sua participação no processo penal, direito à proteção, direito a uma decisão relativa a indemnização e a restituição de bens, direito a condições de prevenção da vitimização secundária (serem ouvidas em ambiente informal e reservado, sem atrasos, nomeadamente, em exames médicos).
O estatuto prevê um estatuto especial para vítimas especialmente vulneráveis (como crianças), com direitos especiais, incluindo o serem ouvidas sempre pela mesma pessoa e prestarem declarações para memória futura.
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É interessante anotar como os nossos deputados tentaram um ponderado equilíbrio, em matéria tão sensível. Falta, agora, a aprovação final. E cabe aos cidadãos, às famílias, às escolas, às Igrejas, aos clubes, às associações, a todas as entidades formativas e às autoridades desencadear o processo pedagógico da prevenção e da vigilância.      

2025.07.11 – Louro de Carvalho


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