domingo, 6 de julho de 2025

Mesquita em Samora Correia gera polémica nos partidos políticos

 
No dia 10 de junho, em Samora Correia, a freguesia mais populosa do município de Benavente, (são cerca de 18 mil habitantes, mais do dobro da população concelhia), no distrito de Santarém, ocorreu uma manifestação de cerca de 200 pessoas, com o grito “Mesquita não, não queremos o Islão”, com início junto da igreja matriz e termo no lugar onde pode vir a existir a mesquita que a Associação Ahmadia do Islão (AAI) pretende construir na freguesia.
O protesto “pelas tradições e costumes”, que terminou com a entoação do hino nacional foi organizado por um político independente, depois de se ter desvinculado do partido Chega, mas teve a participação do Partido Social Democrata (PSD), do Partido Socialista (PS), que terá sido especialmente ativo na mobilização da manifestação, e do Chega. Com efeito, assim pensam ter benefício nas eleições autárquicas de 12 de outubro. Os populares diziam que a freguesia “não pode ser invadida por uma cultura que põe em causa os seus valores”. “Eles entram de mansinho, instalam-se e depois já ninguém os consegue tirar daqui”, disse um residente.
Entretanto, duas cabeças de porco, atravessadas pelo espeto, foram atiradas para o terreno que a 
AAI adquiriu e jazem na erva amarela, a poucos metros da Estrada Nacional 119, o que passa despercebido, visualmente, a quem por ali passa de carro, mas quem por ali passe a pé ou de bicicleta, sente o cheiro a putrefação, que se instalou para lá do portão, depois de três dias em que os termómetros marcaram mais de 40°C.
Naquela autarquia historicamente comunista, onde o presidente está no último mandato, mas a corrida para as autárquicas segue em forçam os 4406 metros quadrados junto à placa que marca a entrada em Samora Correia viraram a móbil da discussão política local, mas com reflexo na política nacional. Está em causa a compra do terreno privado, no final de janeiro, pela AAI, comunidade religiosa islâmica (para quem o porco é “haram”, ou seja, proibido) que tem presença, no país, desde 1987 e pretende ali construir um complexo religioso, incluindo a sua primeira mesquita em Portugal.
O presidente da Câmara Municipal de Benavente, Carlos Coutinho, da Coligação Democrática Unitária (CDU) recebeu a associação no final do verão de 2024 e declarou não haver razão para a construção da mesquita, por não existir uma comunidade muçulmana no município que “justificasse a construção de um equipamento desta dimensão”. Após informar os vereadores, que concordaram, unanimemente, com tal declaração, o edil comunicou à AAI a “posição reforçada pelas forças políticas com assento na câmara” e pensou que o assunto tinha morrido.
Porém, no final de abril, o PS levantou o tema na Assembleia Municipal. E, em maio, o Chega partilhou vídeos nas redes so­ciais, prometendo que “jamais” seria construída uma mesquita em Samora Correia, pois, na ótica do candidato do Chega a Benavente, Frederico Colaço Antunes, “o Chega tem uma posição muito clara sobre a islamização da Europa e de Portugal”, pelo que não deixa portas abertas ou semiabertas, sendo contra a ideia de fazer uma mesquita no concelho. E, no último vídeo, o partido vangloria-se da “missão cumprida”. Contudo, em apenas um mês, o tema chegou à comunicação social nacional e levou as concelhias do PS e do PSD a pronunciarem-se contra o projeto. “O tema da mesquita é consensual e todos os partidos se vincularam, menos a CDU, porque sabiam que, se não o fizessem, ficariam para trás nesta corrida (eleitoral)”, anota o candidato do Chega.
Todavia, foi o PS que mais empolou o caso. A 30 de maio, Pedro Gameiro (deputado municipal e candidato autárquico) surge, num vídeo partilhado nas redes sociais da concelhia socialista, a afirmar: “Para o PS, a mesquita não se fará aqui nem em lado nenhum do nosso concelho.” Porém, ao ser interpelado, remeteu para o comunicado de 16 de junho, em que a concelhia garante, que nada move o PS local contra “qualquer confissão religiosa que respeite a nossa ordem constitucional”, mas que está contra o projeto, por ter o plano de transformar o terreno privado num parque urbano, já que os “espaços mais nobres” da cidade devem ser “reservados, prioritariamente, para investimentos de maior interesse local”
Tal postura caiu mal na estrutura nacional do PS, com figuras de proa a expressar “vergonha” e a incentivar o secretário-geral a “repudiar, de forma inequívoca”, esta posição. E José Luís Carneiro admitiu que “foi dito o que não devia ter sido dito” e que ser candidato pelo PS implica o compromisso “com valores constitucionais” e com a liberdade religiosa. E, no final de junho, o PS perdeu um dos deputados municipais, que critica o rumo de “demagogia” e de “enganar pessoas” da concelhia, neste caso.
O PS, o Chega e o movimento ultranacionalista Reconquista estiveram na manifestação a 10 de junho em que pessoas bradavam “Mesquita aqui não, não queremos o Islão” e empunhavam bandeiras nacionais atrás de uma tarja, onde se lia: “Mesquita não! Pelas tradições e costumes”, que afixaram na vedação do terreno.
Um dos naturais de Samora Coreia, onde reside, denuncia a forma doentia como “hostilizam as pessoas”, nas redes sociais e no espaço público, e lamenta o discurso de ódio de pessoas que conheceu a vida toda e a desinformação que se tem espalhado. Releva que “não se fala de mais nada” e que há um clima de intimidação contra quem discorda. Só viu algo similar em relação aos antitouradas”, mas o convívio com comunidades imigrantes sempre foi pacífico. Ora, Samora Correia tem 17 espaços religiosos e a Igreja Universal do Reino de Deus tem vários prédios e nunca se levantou qualquer celeuma.
Nelson Lopes, presidente da Associação Social Amigos de Samora Correia (ASASC), projeto social que apoia “situações de emergência” no concelho, refere que o seu grupo se pronunciou, publicamente, sobre o tema, apelando à “serenidade”, mas esclarece que não tem “nada contra nem nada a favor” da mesquita, concordando até que a pequena dimensão da comunidade pode “não justificar” o projeto.
“O que nos choca é o preconceito, e nós próprios temos sido alvo, um pouco, desse preconceito. Como temos a porta aberta a todos, também nos acusam de só ajudar os de fora”, nota Manuel Silva, tesoureiro da ASASC, que explicita: “Cavalgou-se a ideia da mesquita, apenas para incrementar o ódio contra comunidades imigrantes. […] Isto é a antítese do que nós queremos para a nossa terra.” E, evocando o “coração quente ribatejano” (é residente na freguesia, mas não seu natural) com que foi acolhido na comunidade, confessa: “Quero acreditar que isto é um núcleo que cavalga estas novas realidades, para garantir proveitos próprios, sejam políticos ou económicos, porque a nossa gente não é assim.”
Frederico Colaço Antunes, assegurando que não foi ninguém do Chega que atirou as cabeças de porco para o terreno, salienta que “o Ribatejo é protecionista, tradicional e tem tradições muito vincadas do campo e da tauromaquia”, não sendo o porco no espeto uma provocação, como outro partido fez no Martim Moniz, mas só “uma tradição”. E, descartando ter motivações “xenófobas ou racistas”, diz opor-se à mesquita, por se tratar de uma “cultura invasiva”, e afirma que a AAI “põe em causa os valores do Ribatejo, porque é hostil”, não respeita os direitos humanos e das mulheres e não está disposta a integrar-se.
Tais acusações são rejeitadas, veementemente, por Fazal Ahmad, presidente da Ahmadia em Portugal, garantindo que a AAI não rouba as tradições e costumes da comunidade local, ao invés do que dizem as redes sociais, e lamentando que tenham postado “vídeos e imagens que não têm nada a ver com a nossa comunidade”, que “é muito pacífica” e que não está envolvida em qualquer ato de extremismo e terrorismo”, apesar de perseguida no Paquistão natal de Fazal Ahmad, que também é português, pois solicitou a naturalização, após 11 anos de permanência.
Desde 2019, a comunidade (com cerca de mil membros em Portugal) procurava local para edificar a sua mesquita. Aluga, desde 2010, um armazém em Odivelas, mas o espaço tornou-se exíguo. Com a comunidade concentrada, sobretudo, em Lisboa, em Loures e em Odivelas, Samora Correia tornou-se opção, pela proximidade à capital, pele acessibilidade e por o custo do terreno (300 mil euros) estar “dentro do orçamento alocado à compra do terreno”.
Benavente deve a atratividade à localização às portas de Lisboa e aos preços comparativamente mais acessíveis, bem como ao facto de manter área florestal e agrícola. Após enorme crescimento, nos anos 80, voltou a sentir maior procura, com o novo aeroporto projetado para o Campo de Tiro de Alcochete, maioritariamente, situado na freguesia de Samora Correia, que é o maior polo urbano do município.
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A AAI – fundada na passagem do século XIX para o século XX e estabelecida e legalizada, em Portugal, desde 1987, que representa um grupo muçulmano nascido na Índia, com interpretação pacifista e tolerante do Islão, missionário e perseguido em vários países islâmicos, onde os seus membros são tidos por hereges, não-muçulmanos – pretende construir uma mesquita, à entrada de Samora Correia, em frente do quartel dos bombeiros. O Chega, o PS e o PSD protestaram e o presidente da Câmara, da CDU, garantiu que não há qualquer projeto e que transmitiu à Associação que todos os eleitos estão contra. Porém, Fazal Ahmad faz questão de afirmar que a comunidade trabalhou com transparência, desde a procura do terreno até à escritura, que seguiu todas as regras e que respeita a Constituição do país. Recorda que a Câmara assegurou, nas reuniões prévias, não haver impedimento legal para a construção e sublinha que o tamanho da comunidade só poderia ser argumento, se houvesse dinheiro público, mas não é o caso.
E, apesar da reação adversa, o líder da AAI reitera o empenho da comunidade em concretizar o projeto, antecipando: “Tempo virá em que os residentes de Samora Correia vão gostar da nossa comunidade.”
A AAI quer fazer ali a sua sede nacional, porque as instalações de Odivelas são exíguas. E adianta que o espaço não se destina a escola islâmica, mas a mesquita, a escritórios, a biblioteca, a instalações desportivas e a salas de reuniões. O argumento da autarquia é não haver uma comunidade muçulmana que justifique a mesquita. Os dos demais partidos são piores e inconsistentes, pois não se conta o número de fiéis para permitir, por exemplo, os templos evangélicos que se multiplicam no país. O terreno é privado e a construção não implica dinheiro público, mas, de supetão, o terreno passou a servir para uma finalidade pública indefinida.
O candidato do PS à Câmara afirmou, num vídeo partilhado nas redes sociais, que “a mesquita não se fará, aqui, nem em lado nenhum do nosso concelho”. Não está, pois, em causa o terreno e a sua função, mas ser uma mesquita que, alegadamente, atenta contra as tradições locais, isto é, tradições cristãs, a que poucos têm ligado, ofendidas pela existência pública de sinais de outra religião. O edil tranquiliza: “Só há construção, se houver licenciamento.” E ninguém quer saber nada sobre os Ahmadia. São muçulmanos e isso basta para os rejeitarem.
A única pessoa terá dito algo normal é Fazal Ahmad: “A cultura de uma cidade não desaparece com a construção de uma mesquita. A mesquita não vai apagar igrejas, nem vai proibir festas populares, nem vai eliminar as tradições locais”, garantiu.
O medo deriva das horas de televisões e das redes sociais a diabolizar muçulmanos, o que leva a população de Samora Correia, que receberia a sede de um dos movimentos mais tolerantes do Islão, a temer vir a ter, ali, um novo “Martim Moniz”.
Face à hiperatividade do PS local contra a mesquita, usando a tradição como argumento, Augusto Santos Silva recorda que, à luz da consensual Lei da Liberdade Religiosa (LLR), “todas as religiões têm igual direito de expressão e prática de culto” e que o Estado, laico, se relaciona com todas. E, nisso, é acompanhado por figuras gradas do partido, escudadas na prática tornada corrente, em Portugal, em linha com a Constituição da República Portuguesa (CRP) e com a lei.
Além disso, como escreve Daniel de Oliveira, a 30 de junho, no artigo de opinião no Expresso, intitulado “A mesquita de Samora Correia e a imaginada tolerância portuguesa”, “a existência de locais de culto é elemento central de integração de imigrantes”. “Quanto mais visíveis e institucionalizados foremmelhor para diminuir o risco de radicalização”, reforça, lembrando que o artigo 41.º da CRP “garante a liberdade de culto” e sustentando que “isso e a laicidade de um Estado, que não defende as ‘tradições cristãs’ […], são os dois pilares da relação das instituições públicas, onde se incluem as autarquias, na relação com os diversos credos e organizações religiosas”.
E, continuando no encalço de Daniel Oliveira, tudo partiu do discurso contra a imigração, como problema e não como realidade genericamente positiva com que estão conexos “problemas com os quais é preciso lidar”. E, tendo iniciado com “a defesa de uma imigração regulada, humanista, que seja possível integrar”, o discurso a passou ao ataque, “bombardeando todos os instrumentos de integração”. Aí se inscreve a dificultação do reagrupamento familiar, do acesso ao Serviço Nacional de Saúde (SNS) e da regularização e o ataque à liberdade de culto. Pretende-se, absurdamente, a integração dos imigrantes, mas “sem família, religião, direitos e a sua cultura”. Enfim, para muitos, “estar integrado é trabalhar e não existir”.
Não é só extrema-direita. Segundo o colunista, a agenda “está a ser assimilada no espaço público, mediático e partidário”. E o PS, que, às vezes, no dizer de Daniel Oliveira, “não tem outro cimento que não seja o poder”, esquece o legado de “defesa da tolerância e do diálogo inter-religioso personificada por figuras, como Mário Soares, Jorge Sampaio e António Guterres”, deixando que os seus autarcas não tenham em conta “a natureza laica do partido”.
Sustenta o articulista que, se bastasse o argumento de que “é preciso dar voz às populações” e “se a política se limitasse a isso, os partidos seriam desnecessários”. Estes, sustenta Daniel Oliveira, “moldam o debate” e tendem a tornar-se hegemónicos, mas “os verdadeiros políticos lideram, ativando o melhor ou o pior das pessoas”.
Sustenta o colunista que, ao invés do que sucede na França, na Bélgica, na Alemanha ou no Reino Unido, “não conhecemos o terrorismo ou conflitos sérios” e “a nossa comunidade muçulmana continua a ser esmagadoramente moderada”, mas “chegámos muito depressa […] e com a adesão quase imediata do centro-esquerda, ao pior que vemos no discurso intolerante e xenófobo destes países”, mostramos que “o nosso verdadeiro problema sempre foi a imagem benévola que mantivemos de nós próprios” e evitamos “todos os debates que outros fizeram”.
Não obstante, Daniel Oliveira, referindo que o cardeal Américo Aguiar defendeu a construção de duas mesquitas no Porto, sustenta que “a integração tem a condição de deixarmos que os outros se integrem” e que “o respeito que exigimos pede respeito pelos outros” – asserções que são de subscrever integralmente.

2025.07.06 – Louro de Carvalho


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