A 18 de junho, foi publicado um relatório da Comissão Contra o Racismo e a Intolerância (ECRI) – órgão do Conselho da Europa que monitoriza a discriminação, a xenofobia e a intolerância nos estados-membros – configurando a sua 6.ª análise da realidade nacional e mostrando um país onde aumentou, de “forma acentuada”, o discurso de ódio dirigido, sobretudo, a migrantes, a pessoas ciganas, a LGBTI e a pessoas negras, não só online, mas também na “retórica divisiva e inflamada utilizada por políticos de extrema-direita” e na violência de grupos neonazis.
Aliás, a Assembleia da República (AR) tem sido espelho disso (e, se os seus corredores tivessem ligação direta com o exterior, muito se veria e ouviria), sem que o seu presidente mostre atitude clara, na matéria; e a comunicação social tem noticiado casos de ações de ódio, sobretudo, em Lisboa e no Porto.
Nesse sentido, a ECRI, sustentado que os ciganos e os imigrantes estão no fundo da exclusão, diz que as forças de segurança, onde persistem relatos de “abusos racistas”, têm de melhorar a atuação, face a estes crimes.
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O crime de discurso de ódio
consiste na conduta punível de alguém que, por divulgação pública, provoque ou
incite a prática de atos de violência, de difamação, de injúria ou de ameaça a
pessoas ou a grupos de pessoas, nomeadamente, em razão de etnia, de nacionalidade,
de religião, de género, de orientação sexual ou de deficiência. O crime de
incitamento ao ódio e à violência está previsto no n.º 2 do artigo 240.º do
Código Penal (CP) e é punido com pena de prisão de seis meses a cinco anos. A
criminalização não afeta condutas que decorram em privado e que envolvam a
prática dos factos descritos nas alíneas do n.º 2 do artigo 240.º.A tipificação do ilícito penal exige que a conduta punível se realize no espaço público e envolva qualquer meio destinado a divulgação, o que supõe o uso do discurso verbal, o panfleto, a grafitagem, a afixação de cartazes, a utilização da imprensa e de sítios Web, bem como a colocação de mensagens na Internet fora do âmbito de grupos fechados.
Constitui pressuposto da prática do crime que o uso público dos referidos meios de divulgação pelo agente se destine a fazer a apologia, a negação ou a banalização grosseira de crimes de genocídio, de guerra ou contra a paz e contra a Humanidade”.
É exigível que o uso dos meios de divulgação destinados a fazer a apologia ou a negação de crimes contra a paz e contra a Humanidade tenham efeito ou resultado discriminatório concreto, traduzido na provocação de atos de violência, na prática dos crimes de injúria ou de difamação, na ameaça e no incitamento à violência ou ao ódio contra pessoa ou contra grupo de pessoas por causa da raça, da cor, da origem étnica ou nacional, da ascendência, da religião, do sexo, da orientação sexual, da identidade de género ou de deficiência física ou psíquica.
Quando estes crimes forem cometidos através de sistema informático, o tribunal pode ordenar a eliminação de dados informáticos ou conteúdos.
Segundo o Conselho da Europa, o discurso de ódio abarca “todas as formas de expressão que propagam, incitam, promovem ou justificam o ódio racial, a xenofobia, a homofobia, o antissemitismo e outras formas de ódio baseadas na intolerância”; constitui uma violação dos direitos humanos; e a sua dimensão (online e offline) e os danos potenciais que pode provocar em processos democráticos dão ao Conselho da Europa razões para agir
Lancada, em 2012, pelo Conselho da Europa, a campanha “Movimento Contra o Discurso de Ódio” foi inserida no Plano de Ação de Combate ao Extremismo Violento e à Radicalização Conducente ao Terrorismo (relatório disponível em https://rm.coe.int/sg-inf-2018-7-fight-against-violent-extremism-and-radicalisation- leadi/16807c0d4b). Centrada, inicialmente, no discurso de ódio online, a campanha estendeu-se à prevenção e ao combate ao discurso de ódio offline. Os recursos educativos da Campanha continuam disponíveis no site do Conselho da Europa (https://www.coe.int/en/web/no-hate-campaign), bem como no site nacional da Campanha (http://www.odionao.com.pt/).
Embora todo o crime que tenha motivação discriminatória possa, em teoria, ser considerado crime de ódio, os atos que se consubstanciem em discurso de ódio somente são criminalizados em situações específicas e pelo especial potencial de dano que encerram. Na nossa legislação (CP), a criminalização do discurso de ódio surge em tipo penal autónomo e exige que o discurso seja divulgado por meio público e apto à disseminação. Também está criminalizada toda a atividade que auxilie eventuais máquinas de propaganda criadas para a disseminação deste discurso.
Os crimes de ódio acarretam um duplo impacto: o do próprio crime praticado (como lesões físicas, por exemplo) e o decorrente da mensagem que o crime pretende transmitir de que aquela pessoa e o grupo a que ela pertence não são tolerados pela sociedade.
As vítimas de crimes de ódio sentem que não são toleradas pela pessoa ou pelo grupo específico que praticou o crime e pela sociedade como um todo. Por isso, temem novas situações de vitimação, isolando-se e desenvolvendo dificuldades em interagir com outras pessoas, e podem sentir dificuldades na aceitação das próprias caraterísticas (a orientação sexual, nacionalidade, religião, cor da pele, etnia, etc.) que estiveram na base do crime de que foram alvo.
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Da palavra ao ato, o ódio tornou-se também violência,
com vários casos registados, “por
vezes envolvendo grupos neonazis”, lê-se no relatório, que aponta o dedo
à atuação policial, criticando a persistência de “lacunas nos mecanismos de
identificação, registo e investigação dos elementos de ódio”, quando são
apresentadas as queixas. “Os
agentes policiais nem sempre registam os elementos de ódio, ao receberem
denúncias sobre incidentes deste tipo”, garante a ECRI.Por conseguinte, apela às autoridades portuguesas para que adotem “ferramentas adequadas – incluindo protocolos e procedimentos operacionais normalizados – que auxiliem as forças de segurança a lidar, de forma eficaz”, com incidentes e crimes de ódio. Esta medida deverá ser acompanhada por programas de formação para agentes policiais e para outros profissionais do sistema de justiça penal.
A parte legislativa e judicial também não tem acompanhado o incremento da violência de ódio. “Persistem lacunas significativas no enquadramento legal, que não aborda, de forma abrangente, os crimes de ódio”, lê-se no relatório, sendo que apenas uma pequena parte dos casos reportados às forças de segurança segue para a fase judicial e, ainda menos, chegam a decisões em tribunal. “Isto contribui para um sentimento de impunidade, que pode minar a confiança pública no sistema de justiça penal”, conclui o relatório.
As forças de segurança voltam a ser referidas pela negativa, quando se vinca a discriminação em função da raça. De acordo com a ECRI, em Portugal “persistem relatos de abusos racistas por parte da polícia, incluindo práticas de ‘perfilagem’ [profiling] racial”, pelo que são recomendadas ações para melhorar a relação e a confiança entre as autoridades e os grupos referidos pela ECRI, incluindo migrantes, pessoas, negras, LGBTI e ciganas.
Também as escolas são alvo de críticas da ECRI, que reporta “discrepâncias e lacunas nos conteúdos abordados no âmbito dos seus esforços de educação inclusiva”. Os casos de bullying são motivo de preocupação e parecem afetar, particularmente, estudantes migrantes, negros, Roma e LGBTI. “Poucas medidas foram tomadas para adaptar os currículos escolares, os manuais e as práticas pedagógicas, de modo a abordar, de forma adequada, o colonialismo e a escravatura, e a sua ligação às formas profundas e múltiplas de racismo contra pessoas negras em Portugal”, sublinha o documento.
Os ciganos continuam a ser um dos grupos mais marginalizados, “enfrentando, frequentemente, anticiganismo”. Apesar de algumas iniciativas positivas dos últimos anos, a ECRI considera que “o empenho das autoridades em enfrentar os desafios que afetam esta comunidade tem sido insuficiente, em especial, no domínio da habitação”. E, embora haja boas iniciativas para melhorar a situação educativa destas pessoas, trata-se de “projetos pontuais, com financiamento limitado e sem cobertura nacional”. Assim, entre as medidas prioritárias apontadas pela ECRI, está “uma ação célere e firme para garantir condições de habitação dignas e seguras” às comunidades ciganas que vivem em alojamentos precários, incluindo bairros de barracas, “em estreita consulta com as comunidades ciganas envolvidas”.
No entanto, há dados positivos, evidenciados em projetos, como o Programa ROMA Educa, que contribuiu para a melhoria da assiduidade escolar dos alunos ciganos, e o aumento de mediadores ciganos, que “desempenham um papel importante na melhoria do acesso à saúde e à educação”. Contudo, destaca-se a ausência de um plano de ação específico para a integração de migrantes, que enfrentam fenómenos de xenofobia no acesso à habitação, entre outros. Por outro lado, segundo o relatório, a ECRI manifesta preocupação com relatos de cidadãos estrangeiros em situação de sem-abrigo ou a viver em condições de sobrelotação e de indignidade. Além disso, “os atrasos no processamento dos pedidos de regularização têm colocado os migrantes em situações de maior vulnerabilidade, conduzindo a abusos em vários domínios da vida”.
Não obstante, a ECRI destaca, em sete anos, “vários progressos e o desenvolvimento de boas práticas em vários campos”, como a criação, em 2024, da nova Comissão para a Igualdade e Contra a Discriminação Racial (CICDR), órgão independente que funciona sob tutela da AR, ou a criação da disciplina curricular de Cidadania.
O país alcançou “progressos significativos”, na área da igualdade LGBTI, incluindo a adoção de um plano de ação específico, o reconhecimento do direito à autodeterminação da identidade de género, em 2018, a proibição da discriminação, com base na identidade de género ou na orientação sexual, na elegibilidade para a dádiva de sangue, em 2021, e a criminalização das “terapias de conversão”, em 2024.
A ECRI congratula-se com a adoção, em 2021, do primeiro Plano Nacional de Combate ao Racismo e à Discriminação em Portugal, que contempla medidas para enfrentar o discurso e os crimes de ódio, bem como a alteração do CP, no atinente ao crime de incitamento à discriminação, ao ódio e à violência.
E outro passo positivo foi a aprovação do Plano de Prevenção da Discriminação nas Forças e Serviços de Segurança.
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Em contraponto, soube-se, a 17 de julho,
pelo Expresso – em artigo de Hugo
Franco – que o Ministério Público (MP) abriu 1020 inquéritos sobre crimes de
ódio, desde o início da pandemia, em 2020, mas a maior parte destes casos
acabaram arquivados, muitas vezes, por falta de provas. De acordo com dados da
Procuradoria-Geral da República (PGR), “apenas 19 dessas investigações deram
origem a acusação”, isto é, menos de 2% do total, tendo mais de metade desses
despachos do MP sido deduzida entre 2023 e 2024.Parte destes crimes foi cometida por grupos de negacionistas das vacinas da covid-19 e, “após o fim da pandemia, por movimentos de extrema-direita que têm publicado milhares de vídeos e de posts, nas redes sociais, a incitar ao ódio contra migrantes, mimetizando os congéneres europeus”.
Uma das grandes investigações do MP e da Polícia Judiciária (PJ) aos grupos promotores do ódio culminou, em junho, no desmantelamento do Movimento, Armilar Lusitano (MAL), com a detenção dos cabecilhas – sendo um deles um chefe da Polícia de Segurança Pública (PSP), em serviço da Polícia Municipal – e com a apreensão de centenas de armas e de munições.
O grupo contava com o apoio de, pelo menos, dez de elementos das polícias e das forças armadas.
O Expresso, que obteve o nome completo de três militares que integravam o MAL, enviou-os ao gabinete de relações públicas do Estado-Maior-General das Forças Armadas (EMGFA) e ao da Guarda Nacional Republicana (GNR), para saber “se estas instituições tinham aberto inquérito interno aos seus militares”. O EMGFA, aduzindo que “a integração de militares em movimentos extremistas não se coaduna com os valores militares, sendo incompatível com o estatuído na lei”, afirmou que “os processos que se encontram em segredo de justiça são tratados pelas entidades competentes”. E a GNR informou que o ex-militar se encontrava dispensado do serviço, a pedido do próprio, desde 13 de dezembro de 2024, sendo que, anteriormente, se encontrava de licença ilimitada, desde 14 de dezembro de 2018. A GNR revelou, ainda, que não se encontra pendente qualquer processo disciplinar em que o militar esteja envolvido, “nem se conhece qualquer tipo de ligações ou participação do ex-militar” com o MAL.
Um dos três militares foi condecorado, em 2010 – com uma centena de membros das forças armadas e policiais portuguesas – pelo então presidente timorense, José Ramos Horta, que lhes atribuiu a medalha “Solidariedade de Timor-Leste”, que reconhece e agradece a polícias e a militares estrangeiros que serviram em missão em operações de defesa e segurança, naquele país.
No início deste ano, um outro destes militares sob suspeita foi condecorado pelo EMGFA com a Medalha Cruz de São Jorge, uma das principais condecorações feitas a membros das forças armadas, pelos serviços prestados.
Na investigação judicial ao MAL, as autoridades perceberam que “os principais líderes de grupos da extrema-direita mais violenta explicam aos seus membros como contornar a lei das armas para adquirirem espingardas e caçadeiras”. “A forma mais fácil de o fazer é através da obtenção da licença de caçador e, posteriormente, a aquisição de um calibre 12”, escreveu um desses cabecilhas. Porém, a compra de armas, após a obtenção da carta de caçador, tem sido alvo de inspeção apertada do departamento de armas e explosivos da PSP, que estará alertado para este tipo de manobras, por parte de elementos radicais, que adquirem “estas armas longas para, depois, cerrarem os canos, de modo a estas se tornarem mais potentes”.
Segundo o jornalista, terá sido importante a alegada conivência de um armeiro da Margem Sul para os extremistas do MAL e para outros grupos de cariz neonazi” conseguirem armas e munições no mercado legalm com maior facilidade”. E, para adquirirem grandes quantidades de armas de fogo, recorriam a sites estrangeiros, tendo deixado rasto, em Espanha, estas transações, pois a Guardia Civil tem relatório de membros do MAL, sobre a compra e o fabrico de armas de fogo com impressão 3D.
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Tem melhorado a legislação sobre o
tema. Contudo, advinham-se retrocessos com as propostas governamentais de alteração
às leis de estrangeiros e da nacionalidade; as estruturas criadas para esta temática
estão caladas; o discurso exclusivista está a ganhar foros de normalidade; os
atos de agressão racista e xenófoba aumentam; e a Justiça pouco tem intervindo.Onde está a clarividência da oposição e a lucidez das academias?
2025.07.19
– Louro de Carvalho
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