É o que defende o personalismo enquanto filosofia que
acentua a condução o homem para a sua realização como pessoa. Assim, o sujeito percebe-se
como pessoa, tem consciência da sua ‘pessoalidade’ e desperta para a ação
vocacional, criando expectativas pessoalizadas.
***
O personalismo
Na visão personalista, o homem leva a sério a
satisfação das suas necessidades pessoais, pelo que as percebe e trabalha.
Tendo em conta o valor da pessoa, coloca a questão pessoal acima das demais,
porque todas as questões importantes da vida estão contidas nas questões
pessoais. Nada deve jamais diminuir o valor e a primazia duma existência
personalista. Também coloca a pessoa acima de quaisquer instituições ou da coletividade,
pois o ser humano é único e peculiar, o que impossibilita o seu querer e ânsias
de estarem totalmente em harmonia com as vontades, aspirações ou conquistas duma
classe, grupo ou instituição. Porém, se há grande distância entre o querer dum
sujeito e o que recebe do grupo e as instituições sociais a que pertence, não
pode deixar de perceber e tratar o próximo como uma pessoa que também tem aspirações
pessoais. Nestes termos, a perceção da pessoa como um ser distinto, mas
próximo, leva a buscar proximidades pessoais sem desvalorizar a alteridade.
A importância da pessoa humana leva a considerar um
fator subsequente: a integralidade do homem. Assim, para Mounier, “o homem é
corpo exatamente como é espírito, é integralmente corpo e é integralmente
espírito”. A esta luz, é de afirmar que existir subjetivamente e existir
corporalmente são uma e mesma experiência e que o que não age não é. Por
consequência, ressalta que aquilo em que acreditamos se deve coadunar com o que
somos. Se o que não age, não é, não o faz, é porque não crê efetivamente no que
afirma. A encarnação da ideia é um dos mais fortes pressupostos do personalismo.
Assim, o que o indivíduo afirma crer deve ser endossado pelos seus atos, pois
credo sem ação assemelha-se a espírito sem carne e, não havendo nisso substância,
não é real. Não há espírito vivo sem corpo, nem crença real sem ação encarnada.
De facto, o cerne do personalismo é a ação, a ação afirmativa ou empenhada. Por
isso, os atos e escolhas indicam sempre o caminho que o espírito está a
trilhar; e o indivíduo percebe que se age e está empenhado socialmente é porque
acredita nas suas afirmações e, consequentemente, “é” na sua ação a afirmação
em que defende crer.
(cf Lailson Castanha: http://personalismomounieriano.blogspot.pt/2009/02/o-que-e-personalismo.html)
O personalismo é um
movimento associado ao humanismo
idealizado por Emmanuel Mounier,
após a crise de 1929 da Europa e divulgado pela revista “Esprit”, com o objetivo de identificar a verdade em todas as
circunstâncias, crendo que o problema das estruturas sociais era económico e
moral e que a saída estava na teorização e na construção de uma “comunidade de
pessoas”. Mais tarde, foi adotado pela Democracia
Cristã e influenciou fortemente o Papas São João XXIII, São Paulo
VI, São João Paulo II e muitos
católicos. A sua ideia central é a da pessoa na sua inobjetibilidade (não consiste só no conjunto de matéria), inviolabilidade, liberdade, criatividade e responsabilidade de
pessoa (com alma encarnada num corpo, situada
na história e constitutivamente comunitária).
Mounier enuncia
como normas personalistas: uma posição de independência em relação aos partidos
e agrupamentos constituídos como necessária para uma nova avaliação das
diversas perspetivas (sem
anarquismo ou apoliticismo); a enganosidade da simples afirmação dos valores do espírito, se não
acompanhada de rigorosa delimitação da atividade e dos seus meios; a tendência
para a confusão como o primeiro inimigo dum pensamento de ampla perspetiva,
pelo que toda a questão deve ser bem estudada, já que há uma estreita relação entre
o espiritual e o material; a libertação, para a correta e eficiente
investigação, de qualquer apriorismo doutrinário, o que leva inclusivamente a
mudar de direção para garantir a fidelidade à realidade e ao espírito; e a não
assunção da revolucionariedade como remédio, pois o personalismo não implica per se a revisão dos valores, das
estruturas ou das classes dirigentes. (http://pt.wikipedia.org/wiki/Personalismo; Mounier, E. O Personalismo. 1.ª ed. Lisboa:
Livraria Morais Editora, 1960).
Em
política, o personalismo é a adesão dum movimento ou partido a uma pessoa, suas ideias e vontade, mais que a uma ideologia. Também se entende o personalismo como
a subordinação do interesse do partido às aspirações pessoais de algum dos seus líderes. Em sua máxima expressão o personalismo
pode levar ao culto da pessoa.
***
Ética, direito, lei,
equidade, justiça e visão comunicacional do direito
Ética e direito não podem andar
separados. Porém, nem sempre os princípios éticos são considerados como base de
ação e justificação do efetivar o direito. Por isso, a ética constitui um
desafio ao direito, apresentando-lhe as dificuldades explícitas para a
consecução dos seus fins e fazendo referência às implícitas ao sistema e à sua
formação. Assim, as mazelas criadas pelas ofensas às normas éticas causam
desconforto e insegurança à capacidade de criar, manter e cumprir normas que
tenham como resultado a justiça e o bem comum. E, ainda, é possível que, sob a
justificativa de defender tais normas, se realizem outras injustiças e
agressões, sobretudo tendo em conta o significado das palavras “justiça” e “justificativa”,
que, embora, possuam a mesma raiz (ius, iuris), quando justificar devia ser um ato
que vise a justiça.
Ora, sendo praticamente irrealizável
a criação duma lógica para a justiça que possa ser imposta como justificativa
ou fundamento do direito, regista-se que, muitas vezes, a escolha de muitos dos
valores é arbitrária. Tanto assim é que muitos deles variam de sociedade para
sociedade e de tempo para tempo. A obviar a isto, Perelman considera
fundamental o conceito de igualdade, pois, através dela, as normas legais
concretizam a justiça, independentemente do critério utilizado para o seu estabelecimento.
Ou seja, porque os valores utilizados como critério para estabelecimento da
norma não decorrerem sempre da racionalidade, mas em grande parte do arbítrio,
a aplicação das normas deve basear-se na igualdade e na uniformidade, do que
resulta uma justiça bastante formal. Porém, como nem sempre a lei pode ser
considerada suficiente como parâmetro de justiça, convoca-se a equidade para
contrabalançar o formalismo, equilibrando-o com a caraterística das decisões da
equidade que está envolta pelo não formalismo. E torna-se claro que, ao afastar-se
do aspeto puramente formal, o juiz distingue, embora de forma subtil, entre
aplicação da lei e aplicação da justiça. A isto acrescenta-se um outro
elemento, a bondade ou caridade, para os casos em que o abrandamento da lei não
é suficiente, devido à imperfeição do sistema de justiça. Nestes termos, o
conceito de racionalidade distancia-se do conceito meramente positivista,
admitindo que deliberar ou argumentar são também atos do raciocínio e não
apenas outros como calcular e deduzir.
No início do século XX, o Movimento
para o Direito Livre denuncia as impropriedades da aplicação mecânica da lei,
defendendo o livre acesso ao direito e a necessidade de os juízes levarem em
conta os factos sociais e os valores da moral, no seu mister de decidir. Com
efeito, dada a insuficiência da lei, torna-se necessária a equidade como
justiça do caso singular, não podendo a justiça ser aprisionada por uma lei. Segundo
Carnelutti, o direito nasce da semente moral lançada na terra da economia,
tomando-se o termo economia no sentido original do grego oikos (casa), como um interesse fundamental do
homem. Entretanto, como assegura, sem a bondade, a ciência do direito fará
crescer a árvore do direito, mas ela não dará os frutos de que os homens precisam.
E o seu “Como Nasce o Direito”
(3.ª
ed. – Campinas/SP: Russell Editores, 2006), lembra que os
romanos, ao definirem o jurisconsulto, chamavam-lhe “vir bonus”.
Se partirmos da abordagem
contratualista, concebida por Rousseau (apud M. Gerard), a constituição das normas de relações sociais advém da
necessidade de regras para estas relações assumindo o papel de regras fundadoras
do ordenamento jurídico e da ética com ele concomitante, com base na norma
escrita e no costume. Mas, a princípio, Rousseau considerava o homem natural, à
margem de considerações éticas e mais exposto à contingência natural que o
direciona para a sociedade. Já, para Hobbes (id et ib), é da força que provém o direito de cada um, sendo necessário dominar
essa relação de força para pôr fim ao estado de guerra existente. Por isso, nos
Estados, o legislador é só o soberano (o rei, na monarquia absoluta, ou a assembleia, na democracia
e na aristocracia). Só o
Estado prescreve e ordena a observância das regras a que chamamos leis, tanto as que ele
promulga como as que valida provindas do costume. E Hobbes entende que, para a
manutenção da paz na sociedade, é necessária a renúncia ao direito de todos a
todas as coisas, pois o seu exercício acarretaria o permanente estado de
guerra, estando implícito o princípio ético da relação social, de que não se
devem romper acordos. E o não cumprimento do acordo social é a fonte da
injustiça. Porém, Rousseau adverte que, mesmo possuindo o homem, em estado
natural, impulsos bons como a piedade pelo semelhante, isso não implica a
existência ou a consciência de qualquer relação ética. Por isso, em sua
condição original, o homem tem o instinto de autopreservação, cujas ações não
são realizadas contra os outros, mas a favor de si próprio.
Para Robles, abordando o problema pela
teoria comunicacional do direito, o conceito de constituição é o de elemento
mínimo formador do ordenamento jurídico, através do qual se tem conhecimento de
quem tem a autoridade para gerar as normas. Assim, utilizando um termo comum a
Hobbes e a Rousseau, afirma que, ao determinar quem é o soberano, procede-se ao
primeiro ato de comunicação necessário numa sociedade. Segundo Carnelutti (op. cit.), para quem o juízo é anterior à lei,
pelo que o chefe se afirma como juiz antes de o ser como criador de leis,
devendo, a posteriori, formular
a lei com proposições verbais oportunas. E, assim, ficam estabelecidas duas
categorias de decisões jurídicas: a extraordenamental ou extrassistémica,
relativa à decisão constituinte (chefe ou juízo anterior); e as intraordenamentais ou intrassistémicas, que são exatamente as
outras decisões, chamadas de normas constituídas ou leis. E, formado o
ordenamento jurídico, é tarefa da Sociologia do Direito pesquisar a inserção
social dos seus elementos e as condições sociais da sua existência,
investigando inclusivamente o grau de eficácia de determinadas normas, bem como
as conceções de justiça e dos valores jurídicos.
Desta visão comunicacional do
direito, infere-se a relação da questão ética com os critérios da fundação do
ordenamento jurídico, mais precisamente com a escolha ou a imposição do projeto
que o poder constituinte manifesta e da sua ampliação através das decisões
constituídas, após o momento fundador, o que revela a estreita relação
existente entre o direito e a ética.
Na conceção contratualista as ações
humanas não se direcionam a qualquer princípio ético, por não serem baseados na
ética os comportamentos humanos, mas à autopreservação, seja na barbárie da
luta incessante de todos contra todos, seja na explosão do instinto de
conservação.
Assim, não há lugar a justificação
para rompimento dos princípios, normas ou regras no momento precedente ao
contrato social, por não existirem como se entendem hoje. O homem agiria para
preservar a vida, sem precisar de se justificar, por inconcebível e ineficaz
tal atitude.
Não obstante a inviolabilidade das
normas éticas, pode-se discutir a possibilidade de existirem momentos
específicos em que a desconsideração de uma regra ética se faz justificável.
Os defensores da conceção
hierarquista das normas éticas consideram que há diversas normas éticas universais,
mas que nem todas têm a mesma importância intrínseca, existindo momentos em que
uma norma universal superior deve ser privilegiada, quando elas entrarem em
conflito. Assim, seria justificável mentir para salvar uma vida, pois a boa
ação é a que é melhor ou superior intrinsecamente. Posição diversa é a do
absolutismo não conflituante, segundo o qual, existindo conflito entre normas,
haverá uma terceira alternativa ou uma maneira de cumprir qualquer delas sem
desobedecer à outra. Ora, considerando à primeira vista a conceção hierarquista
e o absolutismo não conflituante, pode-se ou não justificar uma conduta
contrária à norma ética em prol de melhor ou de bem intrinsecamente superior (v. g: justiça). Mas não estão neste caso as atitudes
contrárias aos princípios éticos motivadas por sentimentos de vingança, de
egoísmo, de autopromoção ou de qualquer outro desse nível.
Enrico Ferri, sustentando no “O Delito Passional na Sociedade
Contemporânea” (Ed.
Servanda, 2009), a
necessidade de desprezar o grau da paixão, na análise dos delitos, para se apurar
a sua qualidade, refere que encontrou no cárcere assassinos que cometeram
carnificinas hediondas, impelidos pela cupidez, ódio e vingança, e que agiram
sob ‘impulso irresistível’. E propõe que o delito passional seja julgado, de
acordo com dois critérios: a qualidade dos motivos; e a
personalidade do autor – critérios inseparáveis e complementares.
A justificação, para Ferri, está no
facto de o motivo ser moralmente aceite ou justo e na condição de se analisar a
personalidade do autor, levando em conta o meio em que nasceu, cresceu e agiu –
análise pela qual se chegaria à classificação moral e legal do ato criminoso.
Como é de perceber, ética e direito
relacionam-se ab ovo, sendo que tal relação ocorre na constituição do ordenamento
jurídico, através do seu texto fundador, que, segundo Robles, tem como elemento
mínimo definir a quem pertence a autoridade de formar a legislação. Sendo
assim, a questão desta escolha já está como um desafio primeiro da ética ao
estabelecimento do direito, pois, a partir das conceções aqui utilizadas ou dos
princípios evidenciados por ela, tem-se a regra superior a seguir na elaboração
da legislação atinente ao ordenamento jurídico.
A receção, na legislação, de
justificativas que excluem a ilicitude na prática de determinados atos, advém
da possibilidade firmada no texto constituinte do ordenamento jurídico,
balizada pelos princípios éticos adotados, e tem uma implicação direta nos
conceitos de moralidade e comportamento ético. Torna-se, pois, necessário que a
legislação esteja de acordo com os princípios do texto constituinte. Entenda-se
aqui o termo “legislação” não só no sentido estrito (lei, decreto-lei, decreto, portaria, despacho…), mas também incluindo o facto de que,
ao decidir, o juiz faz legislação,
como a faz procurador ao apresentar a sua tese e o defensor no seu mister. Daqui
decorre a exigência ética de que os operadores da lei e da justiça atuem no
sentido de defender, manter, preservar, cumprir e aprimorar os princípios éticos
existentes, sendo que a violação por parte dos operadores das normas é
duplamente reprovável, em termos de relação ética, por terem assumido o
compromisso institucional de defender, manter e preservar tais normas e por estarem
obrigados a cumpri-las, como todos os outros, fora do ou no exercício do seu
mister.
Para descobrir as melhores regras de
sociedade que convenham às nações, precisar-se-ia, segundo Rousseau (“Do Contrato Social”. In Obras Completas. 1.ª ed. – RJ: Editora
Globo, 1962), duma
inteligência superior, que visse todas as paixões humanas e não participasse de
nenhuma delas, não tivesse nenhuma relação com a natureza humana e a conhecesse
a fundo, cuja felicidade fosse independente de nós e quisesse dedicar-se a nós,
que, almejando a glória distante pudesse trabalhar num século e fruir dela noutro.
Enfim, deveria ser altruísta, reconhecendo-se ao serviço de causa nobre, que não
poderia macular, desprezando-a em benefício próprio ou de outros, viver sem
ambição maior que realizar bem e condignamente a sua tarefa de fazer e tornar
viável a justiça. Ora, com tais exigências, esta não parece tarefa para
quaisquer pessoas:
“O
Legislador, sob todos os aspetos, é um homem extraordinário no Estado. (...)
Tal ofício, que constitui a república, não pertence à sua constituição, por ser
uma função particular e superior que nada tem de comum com o império do humano,
pois, se aquele que governa os homens não deve governar as leis, o que governa
as leis não deve também governar os homens; de outra forma, as suas leis,
instrumentos de paixões, frequentemente não fariam mais do que perpetuar as suas
injustiças e jamais ele poderia evitar que pontos de vista particulares alterassem
a integridade de sua obra.” (Rousseau, op. cit).
E aqui verifica-se que é tarefa
difícil separar, não só de direito, como de facto, as funções dos que, no dizer
de Rousseau, governam os homens, daqueles que governam ou fazem as leis.
***
É natural imaginarmos que ao direito
subjaz considerável gama de regras nascidas de conceções éticas, que, desde que
se tornou possível a vida em grupo, abrangem e direcionam o agir consciente das
responsabilidades e consequências dos atos que se praticam, quer no quotidiano do
lar e da convivência entre amigos, quer no desempenho profissional e no
exercício de cargos públicos e de profissões liberais, quer ainda na vida
religiosa – ou seja, em todas relações sociais e culturais. Por outro lado, é
de salientar que tal agir consciente tem diversos graus de consequência, de
menor ou maior alcance, se consideramos a posição e a relação exercidas pelo
agente e o conceito que a sociedade faz dele. Assim, atitudes contrárias à
ética, nesse sentido, advindas de autoridades responsáveis pela manutenção e
vigilância dos seus princípios são mais graves que as de quem não possui tais
compromissos institucionais. Dito de outro modo, a responsabilidade
institucional de sempre agir com esteio nos princípios éticos deve ser a
quinta-essência do comportamento dos operadores do direito. Mas, para tanto,
não basta a aplicação racional das normas legais, pois isso não garante,
nalgumas circunstâncias, alcançar a justiça, fim último da ética do direito.
Com efeito uma decisão apenas baseada num princípio racional pode ser
perigosamente contrária à ética e, ipso
facto, não realiza a justiça.
Porém, não é exclusividade do direito
que os seus operadores ajam pelo padrão ético; apenas são mais iníquas as suas violações,
por serem os guardiões ou mantenedores; e, ao contrariarem uma regra ética, fazem-no
em detrimento do princípio anterior, que nasce da condição de quem assumiu a
incumbência de zelar institucionalmente por todas as outras regras.
Segundo Emmanuel Mounier, que aborda
o problema em relação à política, tudo converge para a solidariedade entre
teoria e prática, a racionalidade e o agir, importando traçar a “geografia da
ação”, a fim de se saber o que deve ser unido e como o deve ser (Mounier, op. cit.). Por outras palavras, há que
delinear como realizar a justaposição entre racionalidade e equidade, entre os
aspetos da lógica racional, que não podem nem devem ser abstraídos, e a
pessoalidade das decisões judiciais. Aduz Mounier que nenhum homem é suficientemente
completo para realizar todo o homem, incapacidade que obriga a especializar as
ações (daí existirem o
técnico, o moralista, o jurista, o médico, o político, o economista, o
arquiteto, o engenheiro, etc.). Assim, não é possível “ser tudo ao mesmo tempo: mas a ação, no sentido
corrente da palavra, aquela que incide sobre a vida pública, não pode,
portanto, sem implicar um desequilíbrio, assumir bases mais estreitas do que o
campo que vai do polo
político ao polo profético” (Mounier, op. cit). Com efeito, o “homem de ação
realizado” não despreza essa polaridade, vivendo-a intimamente, através da ação
no tempo como polo político e com a consciência do polo profético, com
autonomia, interesse no bem do seu povo, obstinação na busca da justiça,
abnegação em favor de valores elevados. E este homem não é aqui outra coisa
senão o mesmo que vir bonus,
entendido como aquele que considera a justiça como alvo dependente da
bondade/caridade.
Enfim, as dificuldades colocadas pela
ética à necessidade de realização do direito na justiça resumem-se ao desafio de
se ter nos homens tanto a ação equilibrada como a visão profética da sua
tarefa. Todavia, Mounier pensa que, a maior parte das vezes, o temperamento
político que vive na condução e no compromisso e o temperamento profético que
vive na meditação e na audácia, não coexistem no mesmo homem. Por isso, o
desenvolvimento dos aspetos pessoais, culturais e sociais (não só do racional) conexos com o direito, releva para a
concretização da justiça em cooperação, pois neles se firmam os princípios e as
normas éticas de valor elevado.
(cf Mounier, op. cit; e M. Gerard,
“Ética e direito: do racionalismo ao personalismo”, in Jus Navigandi, Teresina, ano 14, n. 2160, 31 maio 2009. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/12845>. Acesso em: 14 de abril de 2020)
***
A concluir
Pergunto-me se, em 1993, o PS de
António Guterres, ao escolher como slogan
de campanha para as eleições autárquicas, tinha em consideração a teoria do
personalismo ou se todos os que falam da vertente fortemente personalista da Constituição
e de algumas leis de bases têm em conta esta doutrina. Se têm, porque é que os decisores
deixam para trás tantas pessoas, seja no acesso à habitação (os preços das casas ou a rendas estão
a nível absurdo para as carteiras dos portugueses), seja no acesso à saúde (a Covid-19 mostrou as fragilidades do
SNS, deixando as outras doenças para futuro), seja no aceso à segurança social (muitos cidadãos têm pensões de miséria
e o número do sem-abrigo é grande).
Um país com tantas desigualdades, uma
floresta de leis e leizinhas e uma justiça que pouco funciona – quer na investigação,
quer na produção de prova em juízo, quer nas condições do cumprimento de penas,
quer ainda no combate à corrupção – pode arrogar-se à vaidade de ter um sistema
personalista com uma sociedade civil sadia?
2020.04.14 – Louro de Carvalho
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