Disse-o o Cardeal António Marto, Bispo de Leiria-Fátima,
em entrevista de 15 de abril ao
Religión Digital, sublinhando
que “não é cristão” ver a
pandemia como um castigo de Deus – que é amor e misericórdia, antes revela
“ignorância, fanatismo sectário ou loucura”.
Contrapõe esta visão à de algumas personalidades com
responsabilidades eclesiais que veem no atual surto pandémico um castigo divino
contra a Igreja, que se afasta dos valores tradicionais. Entre esses, destacam-se,
como referia à data o Observador, Athanasius
Schneider, Bispo auxiliar de Astana, um dos rostos do conservadorismo
católico, ao afirmar recentemente que a pandemia é “uma intervenção divina para castigar e
purificar o mundo pecador e também a Igreja”; o cardeal norte-americano Raymond
Burke, tido como o líder da oposição a Francisco, que, sendo mais contido nas
palavras, deixa no ar a mesma ideia ao dizer que “uma
pessoa de fé não pode considerar a calamidade atual em que nos encontramos sem
considerar também o quão distante a nossa cultura popular está de Deus”; e,
para o cardeal alemão Paul
Josef Cordes, “a palavra de Deus diz claramente que uma
vida contrária a Deus pode conduzir à doença”.
Schneider considera o aviso divino como especialmente
dirigido ao Papa Francisco e aos bispos progressistas, que têm permitido a adoração
de ídolos e que “aprovam implicitamente relações sexuais fora dum casamento
válido, ao permitir que os chamados ‘divorciados e recasados’ que são
sexualmente ativos recebam a sagrada comunhão”; e Burke sustenta que o grande
problema da cultura atual é o “ataque à integridade da sexualidade humana, à
nossa identidade enquanto mulher ou homem”.
Também personalidades
proeminentes de outras religiões afinam por este diapasão. Assim, por exemplo,
nos Estados Unidos, a polémica surgiu com as palavras do pastor Ralph
Drollinger, conselheiro de Donald Trump e líder do grupo de estudo bíblico da
Casa Branca – que se reúne às quartas-feiras para ler a Bíblia e que inclui
vários membros do governo norte-americano, nomeadamente o vice-presidente Mike
Pence e o secretário de Estado Mike Pompeo – que escreveu, em março, que os EUA
estão a experienciar a “ira de Deus“.
Recentemente,
o Papa Francisco, questionado sobre o mesmo assunto numa entrevista pelo
seu biógrafo, Austen Ivereigh, optou por fazer uma reflexão sobre a forma como
natureza está a responder às agressões humanas contra o planeta:
“Há um ditado espanhol: ‘Deus perdoa sempre,
nós de vez em quando, a natureza nunca’. As catástrofes parciais não foram
atendidas. Hoje em dia, quem fala dos incêndios da Austrália? Ou de que
há um ano e meio um barco cruzou o Polo Norte porque se podia navegar, porque
se tinham dissolvido os glaciares? Quem fala de inundações? Não sei se é vingança, mas é a resposta
da natureza.”.
***
Mas
atentemos na entrevista do Bispo de Leiria-Fátima.
Sobre
como vive a situação de pandemia, diz morar “confinado na casa episcopal, onde
moram o vigário-geral e dois religiosos”, não se sentindo sozinho, mas não sai
de casa. Cancelou as visitas pastorais e reuniões nas paróquias; dedica-se mais
à oração, sobretudo “à intercessão pelo sofrimento, à leitura, à preparação de
assuntos pastorais para o futuro, ao envio diário de assuntos diocesanos, ao
contacto telefónico com os colaboradores mais próximos e com os padres mais
velhos”; enviou “mensagens, por escrito e em vídeo, ao povo de Deus, para viver
este tempo de provação com fé e para celebrar a Páscoa em família como igreja
doméstica”; segue a vida do mundo e da Igreja pela internet e pela televisão;
e, aos domingos, a missa, que celebra na capela da casa episcopal, é
transmitida no canal da diocese no YouTube. Porém, diz sentir “muita falta do
relacionamento direto com as pessoas”.
No atinente
a medo face a este “inimigo invisível e mortal”, entende o medo como “coisa
muito humana diante do perigo iminente e ameaçador”, mas vinca a confiança que
a fé nos dá para “não sermos vencidos ou paralisados pelo medo” e para
enfrentarmos “o perigo com esperança, com apoio mútuo, como Jesus na sua paixão”.
À interpelação
se o conforto da esperança pode chegar até Fátima, como é o do teor da oração
do passado 25 de março, que uniu Espanha e Portugal, responde com as palavras
do Papa: “Queremos responder à pandemia
do vírus com a universalidade da oração, compaixão e ternura”. Por isso, objetivo
da oração de consagração ao Coração de Jesus e Maria “é confiar à misericórdia
divina, neste momento dramático, as nossas tristezas e gritos de dor do mundo,
como Jesus na Paixão: “Meu pai, se possível
afaste de mim este cálice...”. E explica:
“A oração traz-nos o consolo da confiança em Deus que não nos deixa
sozinhos, expressa a comunhão de solidariedade nesse sofrimento e a consciência
de assumir a nossa própria responsabilidade. Pela intercessão maternal de
Maria, pedimos a Deus que, com a inspiração e o poder do Espírito Santo, possa
fazer em nós e através de nós o que somente Ele sabe e pode fazer pelo bem da
humanidade neste momento difícil.”.
Em relação
ao facto de alguns clérigos acreditarem que o coronavírus é “castigo de Deus”,
além do que já foi referido, é de sublinhar que o cardeal observa que “felizmente,
não ouvimos esta expressão aqui entre nós, em Portugal, pelo menos publicamente”.
E devo recordar que o Cardeal Patriarca assegurou, em entrevista recente à Ecclesia, que “somos que nos castigamos”
e partilhamos a condição da natureza, mesmo que disso nos esqueçamos.
Não obstante,
esta pandemia mostra como um vírus invisível e imprevisível sacudiu o mundo, que
se cria cada vez mais autossuficiente e cheio de certezas e seguranças,
assentes “no poder da ciência, tecnologia e economia”. Deixa a nu a fragilidade
e a vulnerabilidade da condição humana, consciencializando-nos de que “somos
uma humanidade vulnerável” e de que “somos chamados a dar mais apoio, porque
nesta crise ninguém é salvo sozinho”. E prova “a nossa consciência ao nível
pessoal do significado e estilo de vida e ao nível social de uma sociedade mais
justa, solidária e atenta à sociedade ecológica integral”.
Quanto à
descoberta que a crise nos faz de termos de repensar a administração dos
sacramentos, o purpurado fatimita observa que, estando nós a viver a fé de povo
na “travessia do deserto, em circunstâncias excecionais e sem precedentes”,
surgiu a necessidade de encontrarmos “novas maneiras e meios” de a viver e
alimentar, até regressarmos à normalidade. Sendo que o Espírito Santo atuará pelos
diversos meios, não vê motivo para objetar, em casos de emergência, por
exemplo, à confissão por videoconferência. No entanto, não se lhe afigura necessário
ir por esse caminho neste momento. Recorda que o Papa explicou recentemente que
o Catecismo da Igreja Católica, retomando
a doutrina, prevê situações em que é possível ‘confessar’ diretamente a Deus
com arrependimento, o pedido de perdão e o objetivo de celebrar a confissão
sacramental, logo que possível. E frisa que “não devemos dispensar facilmente o
relacionamento personalizado nos sacramentos”.
A propósito
da assunção da morte na cultura hodierna que a escondia, regista a dor que as famílias
ao verem morrer seus parentes sem a possibilidade de despedida e funeral condignos;
concede que a morte deixou de ser o tabu que se tentava esconder, pois a
exposição pública por que passa leva a “integrá-la na condição humana de
finitude, dando-lhe sentido e humanizando as condições em que ocorre”, e rejeita
a ideia de que os padres se terão afastado demasiado das pessoas, deixando-as
sozinhas, sobretudo em hospitais e funerárias.
Defende que,
por haverem respeitado “o confinamento como cidadãos responsáveis, muitos dos
sacerdotes e outros agentes da pastoral, para não infetarem outras pessoas ou
serem infetados”, concretizaram doutro modo o desejo evangelizador reforçado, mostrando
“preocupação e proximidade pastoral através das redes sociais e da comunicação
digital”, com “uma grande criatividade” e oferta rica na “variedade de
mensagens, orações e meditações familiares”, que induziram “a leitura orante da
Palavra de Deus, a descoberta da família como Igreja doméstica”.
Acredita
na dificuldade e dolorosidade que as consequências da pandemia acarretarão
mercê da dura realidade socioeconómica que se avizinha. Por isso, chama a
atenção para a necessidade de se “repensar o sistema financeiro e económico
para obter mais justiça e eliminar a flagrante desigualdade entre a minoria
rica do mundo e a maioria dos pobres e descartados, mais cuidado com o lar
comum através de uma ecologia integral, mais fraternidade e solidariedade entre
os indivíduos e os povos, uma cidadania mais responsável”. Preconiza a criação
e o crescimento de “uma cultura de encontro e diálogo, para enfrentar a cultura
da indiferença e do descarte”. Porém, receia “que a memória humana seja curta e
que o mundo seja poderoso e a cultura do consumismo exagerado queira voltar ao
tempo anterior à pandemia”.
Em relação
à Igreja Católica, julga que se lhe abre uma nova oportunidade para a Igreja
realizar a reforma para a sua conversão pastoral”, como quer o atual Papa: “a Igreja como um hospital de campanha,
misericordiosa, samaritana; a Igreja em saída e missionária; a Igreja do
diálogo, do encontro entre todos, da fraternidade universal e da paz” – uma
Igreja que nunca deixará de dar à vida aquele sentido sempre necessário, mas
agora mais “neste período de desorientação, falta de referências consistentes e
credíveis em vários níveis”.
+++
Enfim, Dom
António Augusto dos Santos Marto, o homem natural de Tronco, Chaves, e o doutor
com a tese sobre “Esperança
cristã e futuro do homem. Doutrina escatológica do Concílio Vaticano II”, não se pondo
em bicos de pés, diz com natural simplicidade o que se refere, neste momento, à
psicologia humana, à Igreja e à sociedade, sublinhando a missão dos pastores, que
não saem do meio do povo, com suas dificuldades, anseios, dores e aspirações. Terão
medo, mas também alimentam a fé que o vence e que semeia a esperança como
antídoto para as dúvidas e incertezas, porque estribada no mistério do
Ressuscitado.
2020.04.21 – Louro de Carvalho
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