Tanto o
Primeiro-Ministro como o Presidente da República têm mostrado o seu claro desagrado
perante os comportamentos dos mais jovens, apontando-os como uma das fortes justificações
para o aumento do número de novos casos de covid-19, especialmente na região de
Lisboa e Vale do Tejo, e têm enfatizado o papel da testagem nos números totais,
pois, quanto mais se puder testar, mais casos encontrarão. E este é o argumento
que o Governo, a diversas vozes, tem usado para criticar as reservas levantadas
por outros países europeus.
Pelos vistos,
os especialistas não sustentam tal postura. Como adianta o jornal Observador, as teses apresentadas por
Costa e Marcelo foram contrariadas na reunião do dia 24 na sede do Infarmed, em
Lisboa. Baltazar Nunes, epidemiologista do Instituto Nacional de Saúde Pública (INSA), e Rita Sá Machado, da Direção-Geral de Saúde (DGS), “desconstruíram o argumento dos testes” e alertaram
para o facto de o problema ser real. Com efeito, embora o país esteja a testar
mais, ocupando o nono lugar do top de testes feitos por milhão de habitantes,
essa não será a grande razão para o crescente aparecimento de novos casos
confirmados de infeção. Haverá outros fatores a ter em conta, designadamente “o
número de testes positivos por teste realizado”, caso em que a nossa “taxa de
positivos é muito elevada” – por cada 28 testes realizados Portugal regista um
caso positivo –, ficando atrás de Portugal apenas a Bulgária e a Suécia, no
contexto da UE a 27. E não pode diminuir-se a capacidade de testagem.
Quanto aos
jovens, não existem sinais relativamente a contágio mais elevado junto deste
grupo etário, sendo a única exceção conhecida a festa de Lagos, onde a maioria
dos infectados é jovem – totalizando já mais de 100 infetados.
Também as
festas e ajuntamentos não serão o maior problema. Dificilmente as festas
ilegais – que levaram o Governo a prometer mão pesada para os prevaricadores –
podem ser usadas como catalisadores determinantes. Na verdade, o primeiro fator
de contágio em Lisboa tem sido a coabitação; o segundo, o contexto laboral; e o
terceiro, o contexto social, nomeadamente aquele em que vivem os doentes. Nas
freguesias da Grande Lisboa assinaladas pelas autoridades, o mais lógico, como assumiram
os especialistas, é que o aumento de casos esteja relacionado com as condições
de habitação e de trabalho.
Posto isto e desconstruídos os argumentos, os especialistas alertam para
uma possível segunda vaga, que pode ter Lisboa como epicentro. Existe já
pressão sobre os hospitais, mas, por exemplo, o Centro Hospitalar Universitário
de Lisboa Central, só tem uma taxa de ocupação de 25% para doentes de covid-19,
pelo que há margem de resposta.
O problema é real, pois o número médio de internados aumentou, o número de
pessoas em cuidados intensivos e continua a haver pessoas que morrem.
Em termos globais, o R situa-se em 1,08, com algumas variações, o que,
isoladamente, não seria fator alarmante. Porém, os técnicos de saúde ouvidos
pelo Governo e pelos líderes partidários não souberam avançar com explicações
concretas sobre o aumento de contágios registado.
Parece que a predita reunião, supostamente de técnicos que os políticos
quereriam ouvir para sustentar a tomada de medidas política e diplomáticas, mostrou
o começo dum novo momento político: a pandemia e os dados a ela inerentes passaram
a ser motivo de luta partidária. Com efeito, PSD, CDS, Bloco e PAN fizeram
críticas no final, com um discurso sobre o conteúdo da reunião de tom diferente
do discurso presidencial. E Marcelo Rebelo de Sousa manteve a linha que traçou,
sem descolar do Governo, pois a tese que prevalece em Belém é a de que no topo
do poder não pode haver divergências públicas sobre a pandemia.
Segundo os observadores, ainda que de forma elegante, “os especialistas
acabaram por desmentir o Primeiro-Ministro”, que “tentou colocar a hipótese, de
forma quase afirmativa” no aumento da nossa capacidade de testagem. Porém,
houve um dado assumido pelos epidemiologistas: a diminuição do número de testes
nos últimos 15 dias, atribuída ao período dos feriados e a reforçar a notícia
avançada, no dia 23, pelo Jornal de
Negócios: de acordo com os dados oficiais divulgados pelas autoridades de
saúde, o número médio de testes de diagnóstico de covid-19 realizados
diariamente caiu 24% desde o início da reabertura da economia, a 4 de maio. Por
outro lado, Portugal está, de momento, a fazer em média um teste por cada mil
habitantes, mas a 18 de maio estava a fazer 1,5 testes por cada mil habitantes.
E António Costa mostrou desagrado com a falta de dados disponíveis e criticou
a informação sobre testagem, nomeadamente o facto de o INSA só compilar dados
do SNS e não dos laboratórios privados – a que muitas empresas, sobretudo de
construção civil, têm recorrido (e que o fazem num sentido de cooperação com a saúde pública).
Marcelo Rebelo de Sousa tentou, à saída da reunião, desdramatizar a
situação. Não só garantiu que a situação estava controlada, como justificou o
número de infetados com o aumento de testes e assegurou que “temos adotado a
metodologia da verdade”, sem ocultar números. Na reunião, o Presidente tinha
perguntado se os novos casos podem ser de população trabalhadora que nunca
chegou a confinar e se a situação só se conheceu por causa dos testes
entretanto realizados. Costa acompanhou a ideia do Presidente, mas aduziu que só
com mais estudos será possível apurar melhor o que se passou.
Acabada a reunião, Ricardo Baptista Leite (PSD), Moisés Ferreira (BE) e Francisco
Rodrigues dos Santos (CDS) alinharam
pela explicação dos especialistas: o aumento de testes não justifica por si o
fenómeno que se regista em Lisboa e Vale do Tejo, sendo de reconhecer o
problema e adotar medidas para travar um aumento exponencial de casos. Por seu
turno, PAN, Verdes, Iniciativa Liberal e Chega limitaram-se a tecer críticas ao
Governo.
O Chefe de Estado expôs a intenção de articular o discurso público e todos
concordaram com a hipótese de se afinar a articulação do discurso político com
marketing social para passar mensagens à população ou subpopulações tendo em conta
fatores específicos.
Manuel Carmo Gomes, professor de Epidemiologia da Universidade de Lisboa e
conselheiro de Costa, prefere medidas gerais como mais ineficazes às mais
direcionadas. E o Primeiro-Ministro pediu explicações concretas sobre o surto,
não se tendo avançado com medidas concretas.
***
Cientistas, na incerteza, dividem-se nas asserções; políticos (que devem e
querem ouvir os especialistas) têm
dificuldade em acertar nas medidas e, permeáveis a pressões dos agentes
económicos, mas defensores da saúde, oscilam entre avanços e recuos e insistem
nas suas teses. As conferências de imprensa diárias desacreditaram-se, os dados
diários de infetados por município foram estigmatizantes e os números atinentes
a aumentos de casos do dia anterior (e não dum conjunto de dias
anteriores) geraram
alarmismos. Os avanços na testagem viram-se contra o país; os critérios devem
incidir sobre mortos, internados em UCI, internados, infetados e
recuperados.
E a diplomacia não fez o seu papel de explicação. Ainda vai a tempo, mas
não com futebóis!
2020.06.25 –
Louro de Carvalho
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