Em entrevista
publicada no “Diário de Notícias” no
passado dia 1 de setembro, o Ministro
da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior afirmou que “para formar um médico de
família experiente não é preciso, se calhar, ter o mesmo nível, a mesma duração
de formação, que um especialista em oncologia ou um especialista em doenças
mentais”. Esqueceu o governante que Medicina Geral e Familiar é uma especialidade e
não uma profissão generalista como tradicionalmente era encarada a clínica
geral. Depois, não teve na devida consideração o facto de os especialistas de Medicina
Geral e Familiar serem aqueles que têm os primeiros embates com uma pessoa fragilizada,
cabendo-lhes a capacidade do necessário e mais conveniente encaminhamento para
outras especialidades, sucedendo, não raro, que são eles quem deteta e trata a
maior parte dos achaques que as pessoas lhes apresentam, como são eles quem,
após um tratamento a que se submeteram noutras especialidades, cuidam da manutenção
e acompanhamento do doente, paciente ou utente, como se queira dizer. Por isso, a 3 de
setembro, a APMGF (Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar) veio a terreiro lamentar as declarações do Ministro
do Ensino Superior sobre a formação nesta especialidade, considerando-as desrespeitosas
e reveladoras de “desconhecimento sobre o panorama da formação clínica em
Portugal”. Num comunicado disponível no ‘site’ da associação, a direção pede que o
Governo esclareça as suas intenções. Esta reação surge depois de Manuel Heitor ter colocado a hipótese de a
formação de um médico de família não precisar de ter a mesma duração que outras
especialidades, ao mesmo tempo que disse esperar que, até 2023, o país possa
ter três novas escolas de Medicina: em Aveiro, Vila Real e Évora. Para a APMGF, as declarações do Ministro sobre a eventualidade da menor duração
da formação nesta especialidade “são profundamente desrespeitosas para com os
médicos de família portugueses e surgem em completa contradição com a tendência
verificada nas últimas décadas em Portugal”. Diz a associação que, nos últimos
anos, a especialidade tem vindo a ser consolidada e está hoje associada “a um
rigoroso e elogiado internacionalmente” programa de internato de quatro anos”, o
que é garantia de “profissionais altamente competentes”, com “reflexo na
elevada procura de médicos portugueses no mercado internacional. E vinca: “A medicina
geral e familiar deve ser respeitada enquanto especialidade médica autónoma,
com aptidões e conhecimentos próprios, com uma abordagem generalista que não a
torna menos complexa e exigente do que qualquer outra especialidade médica,
antes pelo contrário”. Os representantes dos médicos de família vão mais longe e sublinham quem se
o Governo pretender seguir essa linha de ação, a APMGF “não pactuará com
qualquer tentativa de abreviar e aligeirar a formação dos médicos de família
portugueses”. Por isso, no predito comunicado, pedem que o executivo esclareça as suas
intenções, defendendo que a adoção daquilo a que chama “uma lógica de formação fast-food” porá em causa a sua qualidade
técnico-científica e não será benéfica para atingir o objetivo de atribuir um
médico de família a cada português. O governante aduziu, na entrevista ao “Diário de Notícias”, o exemplo do Reino Unido para sustentar que a
formação de um médico de família não precisa de ter a mesma duração do que
outras especialidades. Face a esta argumentação do Ministro português,
a BMA (British Medical
Association, em português, Associação Médica Britânica) negou que a formação dos médicos de
família no Reino Unido seja menos exigente que a de outras especialidades,
contrariando as asserções o governante. Num
comunicado, publicado na sua página na internet, em resposta a Manuel Heitor, a
BMA considerou que a medicina familiar é altamente especializada no Reino Unido
e rejeita que os médicos de família sejam menos qualificados que os clínicos de
outras especialidades. “É completamente incorreto descrever a
formação em medicina familiar no Reino Unido como menos exigente do que no caso
de outras especialidades médicas”, afirmou, citada na nota, Samira
Anane, responsável para a educação, formação e trabalho do grupo de Medicina
Familiar da BMA, observando que esta ideia “prejudica seriamente” os médicos de
família “altamente qualificados que trabalham em consultórios em todo o país”.Aquela
responsável frisa que, no Reino Unido, os médicos de medicina familiar são
reconhecidos como especialistas em medicina generalista e especialistas em
clínica geral.E,para poderem exercer, têm de terminar o mesmo curso universitário que os
outros ramos da medicina, completar mais dois anos de formação prática básica e
mais, pelo menos, três anos de formação prática especializada, de acordo com um programa aprovado
pelo General Medical Council (GMC), a que se
segue depois a aprovação nas avaliações do colégio da especialidade e o
certificado do GMC.Samira Anane destacou que estes procedimentos também “estão em vigor para garantir que os médicos
que se mudam do estrangeiro para o Reino Unido ou que demonstrem conhecimento,
aptidões e experiência equivalentes, cumpram estes altos padrões”. Também o Fórum Médico, que junta
várias entidades desta classe profissional, considerou “totalmente inaceitável
e desrespeitosa a forma como o Ministro desvalorizou a formação e a qualidade
dos médicos especialistas em medicina geral e familiar”, que são “um dos pilares
do Serviço Nacional de Saúde”, exigindo do Ministro do um “pedido de desculpas
público”. A este respeito, o Bastonário da Ordem dos Médicos diz que o Ministro fala
em ajustar a Medicina Geral e Familiar ao curso de Medicina, quando ocurso
de Medicina é completamente independente da formação pós-graduada. E declara
que “o curso de Medicina tem de se manter assim, como é em todo o mundo”. E
acrescenta: “Se nós matamos
a visão holística da Medicina, estamos a matar a Medicina em si e, portanto,
temos que defender a Medicina. Não
podemos deixar que o Ministro ache que agora a Medicina pode ser completamente
espartilhada, uns têm o curso
de Medicina completo, outros têm meio curso, etc.”. Entretanto,neste dia 9,em declarações à Lusa e à Rádio Renascença, após a visita ao Centro de
Simulação Médica do Hospital da Luz de Lisboa, o Ministro disse não retirar “nada
do que disse”, alegando que “o contexto do que disse”, numa susodita entrevista
ao “Diário de Notícias”, “foi
totalmente alterado” pelos seus críticos. “É preciso formar mais e é preciso valorizar
todas as especialidades, foi o que eu disse”, vincou, assinalando que, “se há poucos médicos de família é preciso
ter mais e valorizar os médicos de família”. E Manuel Heitor entende que são as entidades que integram o
Fórum, como sindicatos, Ordem dos Médicos e associações do setor, que lhe devem
um pedido de desculpas. *** Não é a primeira vez que Manuel Heitor entra em desaguisado discursivo. Há
tempos, enquanto sustentava que o ano letivo deveria entrar com ensino presencial
e que se deveriam dotar os cursos de mais aulas de caráter prático, referiu que,
nas aulas teóricas em que o professor expõe os conteúdos, não há mais que
transmissão de conhecimentos, havendo, quando muito o conhecimento do estado da
arte, mas não produção de novo conhecimento. Não sei se o Ministro se referia a casos particulares que tinha em vista ou
à experiência pessoal ou vizinha (e creio que há muito disso, aulas
de sebenta…), mas a generalização
foi má conselheira. E, se formos a ver, as aulas práticas, no limite, também se
circunscreverão ao mimetismo do que outros já fizeram. Por isso, a inovação e a
produção de novo conhecimento não são capturadas por determinado tipo de aulas
ou atividades. Nem a universidade tem por função produzir, sempre em toda a
parte, novo conhecimento, a não ser nos centros de investigação. Seja como for, nem podem ser subestimadas as aulas teóricas e expositivas (há aulas
teóricas que não são expositivas), nem se podem
desenvolver os cursos só com o auxílio do lápis e do papel. Importa, sim, pôr
os estudantes a investigar em trabalho acompanhado e em trabalho autónomo. Quanto ao mais, dar o tempo necessário e suficiente para a formação segundo
a índole dos cursos. Que dizer duma licenciatura de três anos ou da batota do
mestrado integrado para obviar à insuficiência da Declaração de Bolonha? Por fim, que os governantes, antes de se espalharem em atoardas, ouçam os
especialistas. E não lucram nada em pô-los contra si.
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