Era, em 1978, a festa da Transfiguração do Senhor Jesus, que, tendo sido
batizado no Jordão e tentado no deserto, iniciara a execução do seu programa filial batismal que tem por horizonte a Cruz Gloriosa
em que somos por Ele batizados no fogo e no Espírito Santo que Ele próprio tem
de receber (vd Lc 12,49-50). Entre o
Jordão e a Cruz está, a meio caminho, o episódio da Transfiguração (vd Mc
9,2-10), luz incriada e inacessível (Mc 9,3; cf
Sl 104,2; 1Tm 6,16) que exorna
a humanidade de Jesus com a momentânea experiência da Ressurreição, pela qual o
Pai confirma o Filho na sua missão filial, iniciada, mas não consumada. Foi
esta festa do Senhor que emoldurou o óbito do Papa Montini, o segundo Papa
conciliar e o obreiro do pós-Vaticano II.
A
propósito da efeméride, neste dia 6 de agosto, como refere o “Vatican News”, o Cardeal Marcello
Semeraro, Prefeito da Congregação para as Causas dos Santos, recorda São Paulo
VI com a celebração da Eucaristia nas Grutas do Vaticano. E, na homilia, o
purpurado, mencionou o desejo do Pontífice expresso na frase escrita em seu “Pensamento da Morte”: “Gostaria, ao
terminar, de estar na luz” – para lembrar que hoje ele “está na luz”.
Referindo-se ao episódio evangélico
celebrado na Liturgia, o cardeal recordou a imagem da “nuvem luminosa” que “cobria
os discípulos com sua sombra” e que agora “o cobre também”. Frisou que essa
segurança é oferecida pela “voz da Igreja, que Paulo VI amava muito”,
como o próprio assegurou: “Poderia dizer
que sempre a amei... Mas gostaria que a Igreja soubesse disso”. E “a Igreja hoje o conhece melhor do que ontem”
– concluiu Semeraro, dizendo estar certo de que o relato evangélico da
Transfiguração “deve ter ficado marcado na mente e no coração” de Montini. Disse
o Pontífice que, aquando da sua nomeação para Arcebispo de Milão, queria ter como
lema as palavras da 2.ª Carta de Pedro: cum ipso in monte sancto” (2Pe 1,18), mas deixou de o fazer por lhe parecerem mais adequadas a um
contemplativo que a um bispo.
Não obstante, Paulo VI “foi um
contemplativo” e Semeraro afirmou-se pessoalmente convicto de que “a chave para
compreender a maioria dos seus escritos, especialmente os seus escritos privados,
é precisamente a mística”. E assegura que não é coincidência a escolha da festa
da Transfiguração, 6 de agosto de 1964, para a publicação de sua 1.ª encíclica,
a Ecclesiam Suam.
A Encíclica é conhecida como “a
encíclica do diálogo”. E, se “Moisés e Elias falam com Jesus, se o Pai do céu
dirige a sua voz aos homens”, isso quer dizer, segundo o purpurado, que “no
Paraíso não há apenas o coro de anjos que canta”, mas que “há também diálogo
entre os santos”, imersos como estão “no amoroso diálogo trinitário”, pelo que,
“se ainda hoje, como esperava Paulo VI, a Igreja na terra se quer tornar
palavra, mensagem e diálogo, deve ter sua inspiração nos ‘diálogos’ da Igreja
no céu, seu modelo, seu critério”.
Por fim, ao exortar as pessoas a “agradecer
ao Senhor pelo dom dado à Igreja na pessoa de São Paulo VI”, o cardeal convidou
todos a rezar pelo Papa Francisco, salientando que muitas das suas palavras
devem ser lidas “em continuidade com o magistério de Paulo VI e como seu
desenvolvimento”. E instou a que pedíssemos a intercessão deste “querido santo para
que o amor, a fidelidade e a dedicação pela Santa Igreja possam aumentar também
em nós”.
***
Segundo Paolo Ondarza, a festa da Transfiguração é contada e vivida
através da última obra-prima de Rafael, preservada na Pinacoteca do Vaticano. O
rosto de Cristo transfigurado pela luz, resplandecente como o sol é
provavelmente o último rosto delineado pelo pincel de Rafael Sânzio antes da
sua morte prematura aos 37 anos, a 6 de abril de 1520, atribuída a febres de
malária. O poderoso olhar cuja
carga vital atrai quem se detém ante a grande pintura da Transfiguração na Sala
VIII da Pinacoteca Vaticana acompanhou os últimos momentos da vida do pintor
renascentista. A pintura foi posta ao lado do seu leito de morte. E Giorgio
Vasari diz como o contraste entre a vitalidade da obra e o corpo sem vida fazem
“a alma explodir de dor”.
E é o autor de “Vidas”
quem define a “Transfiguração” como “a
mais celebrada, a mais bela e a mais divina” das tantas pinturas de Rafael.
Encomendada, em 1516, para a Catedral de São Justo em Narbonne, pelo então
bispo, o Bardeal Giulio de Medici, futuro Papa Clemente VII, juntamente com a
Ressurreição de Lázaro, pintada por Sebastiano del Piombo e preservada na National
Gallery, permaneceu na Itália onde foi colocada na Igreja romana de São
Pedro in Montorio. Após o Tratado de Tolentino, de 1797, foi levada pelas
tropas de Napoleão para a França, mas foi restituída em 1816, passando a fazer
parte das coleções pontifícias.
Numa composição teatral em que as personagens estão dispostas em duas
plataformas cénicas, Rafael liga dois eventos da vida de Cristo narrados
sucessivamente pelos evangelistas Marcos, Mateus e Lucas: no alto do Monte, representa
a Transfiguração e, em baixo, a cura da criança possuída. Os gestos enfáticos,
o dinamismo das figuras e a utilização de múltiplas fontes de luz emprestam às
cenas um intenso envolvimento. No alto, em céu onde alternam brancos intensos e
ténues, azul, cinza e amarelo, Cristo tem o rosto irradiante e as vestes
brancas brilhantes. Está rodeado por Elias e Moisés que falam com ele, enquanto
Pedro, que, momentos antes, queria fazer três tendas e permanecer na montanha
com os companheiros Tiago e João, e que agora estão prostrados, fica assombrado
com a visão da nuvem que os envolve e pela voz do céu que diz: “Este é o meu filho muito amado, ouvi-o!”.
À esquerda, assistem à cena duas figuras: talvez os Santos Justo e Pastor,
padroeiros de Narbonne, recordados pela Igreja a 6 de agosto, na festa da
Transfiguração, ou Agapito e Felice, diáconos de Sisto II, martirizados com ele.
A luz crepuscular a remeter para a pintura veneziana
separa a festa da Transfiguração da contrastante, escura, quase caravaggiana e
realista “cura dos possuídos” ao pé da montanha: os apóstolos e os familiares
do menino possuído pelo mal, tensos e contrariados, são divididos em grupos
opostos, gesticulando em poses agitadas e expressivas.
Durante séculos, pensou-se que as
duas cenas eram atribuíveis a mãos diferentes: Rafael na parte superior e
Giulio Romano na parte inferior. A maior parte dos estudos atribui a Rafael a
autoria de ambas, mas a questão permanece em aberto.
***
A propósito
da festa e do episódio evangélico da Transfiguração, o biblista Dom António
Couto, Bispo de Lamego, no seu comentário em “Mesa de Palavras”, tece muito sábias e pertinentes considerações,
de que se respigam algumas linhas-força.
Antes de
mais, vincula a leitura da Transfiguração à da Ressurreição, como fica patente
no dizer das Igrejas do Oriente que chamam a esta festa, celebrada a 6 de
Agosto, “a Páscoa do verão”, bem como na ordem taxativa de Jesus ao descer do
monte, que aponta para a Ressurreição:
“A ninguém digais esta visão até que
o Filho do Homem seja Ressuscitado dos mortos” (Mc 9,9).
Na verdade, é
só o Ressuscitado que faz vir o Espírito Santo sobre nós:
“Este Jesus, Deus o Ressuscitou, e
disto todos nós somos testemunhas; exaltado à direita de Deus, tendo recebido
do Pai a promessa do Espírito Santo, derramou-o, e é o que vedes e ouvis” (At
2,32-33).
E, quando Jesus
se
pôs de pé e clamou: “Se alguém tem sede,
venha a mim e beba quem acredita em mim”, pois, “como diz a Escritura, do seu ventre brotarão rios de água
viva” (Jo 7,38), o evangelista explica: “Isto disse do Espírito que haviam de receber os que tinham acreditado
n’Ele, pois não havia ainda Espírito [para nós], porque Jesus ainda não tinha
sido glorificado” (Jo 7,39). Importa,
pois, que seja o Espírito Santo a falar em nós, pois Jesus advertiu:
“Quando vos entregarem, não vos
preocupeis com ou como falais
(‘laléô’). Ser-vos-á
dado naquela hora o que falar
(‘laléô’). Na verdade, não sois vós que falais (‘laléô’), mas o Espírito do vosso
PAI que falará (‘laléô’) em vós.” (Mt 10,19-20; Mc 13,11; Lc 12,11-12).
Segundo a
tradição, o “monte alto” da Transfiguração (Mc 9,2; Mt 17,1; cf Lc 9,28) é o Tabor, monte de forma arredondada de 582 metros na
planície galilaica de Jesrael (ou Esdrelon). No sopé
ainda está a aldeia de Daburiyya, que evoca a personagem bíblica
mais importante da região, a profetisa Débora (Jz 4,4-5,31). As Igrejas Orientais conhecem o episódio por
Metamorfose (“Metamórphôsis”, termo que
Lucas não usa, empregando “doxa” – glória), conforme o segmento textual:
“E transformou-se (‘metemorphôthê’) diante deles, e as suas vestes esplendentes e de tal modo brancas, que
nenhum lavandeiro sobre a terra as podia tornar assim brancas” (Mc 9,3; cf Mt
17,2).
O branco é a
cor divina. E a luz é o seu vestido, conforme o dizer do Salmo 104,2: “Vestido de Luz como de um manto”. E,
nesse foco de luz, o Apóstolo exorta: “Caminhai
como filhos da luz”, lembrando que “o
fruto da luz é toda a bondade, justiça e verdade” (Ef 5,8.9).
Jesus, batizado
para a Cruz Gloriosa, é confirmado para a Cruz Gloriosa, pois ressalta o dizer
do Pai no Batismo e na Transfiguração: o Filho Meu, o Amado (Mc 1,11;
9,7; cf Mt 3,17; 17,5; Lc 3,22; 9,35), agora seguido
do imperativo “Escutai-o!” (Mc 9,7; Mt
17,5; Lc 9,35), dirigido aos
discípulos.
Jesus é o Profeta
novo, como Moisés (prometido em Dt 18,15-18). Testemunham a cena três discípulos – como dispunha a
Lei antiga: duas ou três testemunhas (Dt 17,6) –, também confirmados para a missão futura (após a
Ressurreição com o dom do Espírito) de dar
testemunho d’Ele. Moisés e Elias falam com Jesus Transfigurado, visto que para
Ele aponta o Antigo Testamento: Moisés, todos os Profetas e os Salmos, falam
acerca d’Ele (Lc 24,27.44; Jo 5,39.46; At 10,43).
Pedro, em
nome dos discípulos, tenta impedir Jesus de prosseguir a sua missão filial e
batismal até à Cruz: “Mestre, bom é estarmos aqui… Façamos três tendas” (Mc 9,5; cf
Mt 17,4; Lc 9,33). Queria
deter-se no provisório e recusar caminhar para o definitivo. Mas “não sabia o
que dizia” (Mc 9,6; Lc 9,33), porque
ainda não tinha sido batizado com o Espírito Santo e com o fogo, pois, quando o
for, saberá ele, discípulo fiel, batizado e confirmado, levar por diante a
missão filial e batismal em que foi investido e dará testemunho até ao sangue.
Assim se há de entender a Ressurreição como a Transfiguração permanente,
eterna, a que os batizados estão destinados.
No Livro de
Daniel 7,9-10.13-14 e contexto imediatamente anterior (Dn 7,3-8) e posterior (Dn 7,15-27), transborda a riqueza de Deus, sentado no seu trono
de Luz e de Fogo purificador, que inutiliza o poder das 4 enormes bestas saídas
do mar com terrível semblante de leão com asas de águia, de urso com costelas
na boca, de leopardo alado com 4 cabeças e de monstro metálico aterrorizador,
com enormes dentes de ferro que tudo tritura. Tem 10 chifres na cabeça e
nasceu-lhe, entretanto, outro mais pequeno e insolente, com uma boca que
proferia palavras arrogantes.
As bestas
representam 4 impérios: babilónio, medo, persa e grego (de
Alexandre Magno e sucessores). Os 10
chifres são os reis da dinastia Selêucida; e o 11.º é Antíoco IV Epifânio (175-163). O tribunal divino julga o arrogante Antíoco, que é
morto e destruído. E, em contraponto às bestas que saem do mar, símbolo da
desordem e do mal, vê-se o Filho do Homem que vem sobre as nuvens, do mundo
celeste. A Ele é entregue o reino eterno, não assente no poder da brutalidade,
mas no manso poder do Amor (Dn 7,13-14). Fica
evidente que todos os impérios prepotentes e ferozes caem face à doçura da
Palavra e da Atitude do Filho do Homem, que dissolve no Amor todas as raivas,
violências e demais manifestações das bestas bravas que nos habitam. O Filho do
Homem vence, sem combater. É assim que caem as 4 bestas ferozes que sobem do
mar (Dn 7,3), símbolo da confusão e do mal, que deixará de existir
(Ap 21,1).
O domínio do
Filho do Homem que nos ama (Ap 1,5) é Primeiro
e Último (Ap 1,8). Ora, entre o Primeiro e o Último instala-se o
penúltimo, o velho domínio podre da violência das bestas ferozes. O Bem é desde
sempre e é para sempre. O que começou foi o mal que se foi insinuando nas
pregas dos corações empedernidos. Mas o que começa também acaba. E os impérios
da violência e malvadez “caem vencidos por um Amor que é desde sempre e para
sempre”.
E tem de ser
sem combater, porque, se se combatesse, usar-se-iam os métodos violentos, o que
só aumentaria a violência. É assim que Jesus, o Filho do Homem, tanto antes
como depois da Transfiguração, atravessa o Evangelho e a história entregando-se
por Amor à nossa violência, “abraçando-a e, portanto, absorvendo-a,
absolvendo-a e dissolvendo-a”.
Pedro, na 2.ª
Carta 1,16-19, leitura alternativa para a festa, apresenta-se como Testemunha
ocular do poder do amor que Jesus recebeu do Pai e da sua gloriosa manifestação
no monte santo a confirmar a palavra dos profetas. E exorta à atenção a esta
palavra, que é como luz que brilha no escuro até que surja a “Estrela da Manhã”, que é Cristo (Ap 22,16).
O Salmo 97
canta o Senhor na ação de reinar, isto é, salvar, justificar, perdoar, recriar e
trazer a prosperidade e o bem-estar ao povo e fiéis. Deus manifesta-se como Rei
circundado pelos seus assistentes cósmicos (nuvens, trevas, fogo, relâmpagos) e históricos (justiça, direito, glória) (Sl 97,1-6). Ante esta
esplendorosa manifestação, caem por terra os ídolos e idólatras (Sl 97,7-9), e os fiéis exultam de alegria (Sl 97,10-12). Os fiéis e justos são definidos com sete expressões significativas:
os que amam o Senhor; os que odeiam o mal; os fiéis; os justos; os retos de
coração; os homens de alegria; os que celebram o memorial da santidade. Comenta
o Livro dos Mistérios, de Qumran, que, ante a manifestação e deste Reino novo
de Deus, “a impiedade recuará diante da justiça, como as trevas recuarão diante
da luz; a impiedade desaparecerá para sempre, e a justiça, como o sol,
apresentar-se-á como princípio de ordem no mundo” (1Q27, I,5-7,
apud António Couto, op. ct.).
A Festa deste
dia é antiga impressiva no Oriente. Celebra o rosto de Cristo Transfigurado e transfigurante.
Daí, a importância da contemplação. O Ocidente, tendo-a conhecido mais tarde,
celebrou-a esporadicamente e com oscilações locais e de calendário, mas celebra-a
anualmente já desde 1457.
2021.08.07 – Louro de Carvalho
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