segunda-feira, 19 de março de 2018

Prece, pobres e paz: “Os pobres são o vosso tesouro”


"Prece, pobres e paz" São as três palavras com que o Papa resumiu o carisma da Comunidade de Santo Egídio, quando a visitou em 15 de junho de 2014, no bairro “Trastevere”, onde ela nasceu, e que repetiu na visita que lhe fez aquando da visita no passado dia 11 de março, por ocasião das suas celebrações cinquentenárias.
Saudou a comunidade que vive em Roma, bem como as comunidades dispersas pelo mundo, com especial menção para o professor Andrea Riccardi (seu fundador), que teve a feliz intuição deste caminho, e o presidente, professor Marco Impagliazzo.
Salientou não se tratar de festa apenas de celebração do passado, mas também e sobretudo de uma “jubilosa manifestação de responsabilidade em relação ao futuro”, o que remete para a parábola dos talentos, que fala dum homem que, “antes de viajar, reuniu os servos, confiando-lhes os seus bens” (Mt 25,14). E isto aplica-se a cada um dos membros da comunidade, a quem é entregue ao menos um talento, qualquer que seja a idade. Nesse talento está inscrito o carisma da comunidade: prece, pobres paz. E, recordando palavras de há 4 anos, disse:
Caminhando assim, contribuís para fazer prosperar a compaixão no cerne da sociedade – que é a verdadeira revolução, a da compaixão e da ternura, aquela que nasce do coração – para fazer crescer a amizade e não os fantasmas da inimizade e da indiferença”.
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Em 2014, fitando o olhar no Cristo que vê, do alto do mosaico, “com olhos ternos e profundos”, e na “Virgem Maria que O cinge com o seu braço”, frisou que a antiga Basílica de Santa Maria in Trastevere se tornou “lugar de oração quotidiana para numerosos romanos e peregrinos”. E esclareceu que “rezar no centro da cidade” não significa “esquecer as periferias humanas e urbanas”, mas “ouvir e acolher aqui o Evangelho do amor para ir ao encontro dos irmãos e das irmãs nas periferias da cidade e do mundo inteiro”. De facto, cada comunidade, apesar da vida agitada da cidade, é chamada à prece/oração, que preserva o homem contra as tentações do protagonismo “que faz com que tudo gravite ao redor do indivíduo, a indiferença, a vitimização. Ora, a oração “consiste em ouvir a Palavra de Deus”, este pão “que nos dá força”, nos faz ir em frente e “dirigir o olhar para Ele”.
E, como “quem olha para o Senhor vê o próximo”, com o qual se identifica Jesus, a comunidade aprendeu a ver os outros, sobretudo os mais pobres de modo que nela “se confundem os que ajudam com os ajudados”, ressaltando como protagonista não uns ou outros, mas o encontro, o abraço. E, verificando a existência de muitos idosos na comunidade e a proximidade que deles se cultiva, o Papa considerou:
O modo de tratar os idosos, assim como as crianças, constitui um indicador para ver a qualidade de uma sociedade. Quando os idosos são descartados, quando os anciãos vivem isolados e às vezes morrem desprovidos de carinho, é mau sinal! Ao contrário, como é positiva a aliança que vejo aqui, entre jovens e idosos, na qual todos recebem e doam! Os anciãos e a sua oração constituem uma riqueza para a Comunidade de Santo Egídio.”.
Assegurando que povo que não “tutela” os idosos, os jovens é povo “sem futuro”, “desprovido de esperança” – pois os jovens, as crianças, os adolescentes (“com o seu viço biológico”) e os idosos (“conferindo-lhes a memória”) “fazem progredir a história” – disse que uma sociedade que “não tem memória está perdida” e entra na cultura do descartável, “para manter um equilíbrio” onde “no centro da economia mundial não se encontram o homem e a mulher”, mas “o ídolo dinheiro”.
E enumerou as valências funestas do descarte:
Descartam-se as crianças: não se querem filhos! Pensemos apenas na taxa de nascimentos de crianças na Europa: na Itália, na Espanha, na França... E descartam-se os idosos, com atitudes por detrás das quais existe uma eutanásia escondida, uma forma de eutanásia. Eles não são úteis, e o que não serve é descartado. Quem não produz é descartado. E hoje a crise é tão grande que se descartam até os jovens: é suficiente pensar nos 75 milhões de jovens com menos de 25 anos, que são ‘nem-nem’: nem trabalho, nem estudo. Nada têm.”.
Depois, arrancou com uma declaração emblemática: “É a partir dos pobres e dos idosos que se começa a mudar uma sociedade”. E justificou, por analogia, com o que se passa com Jesus:
Jesus diz de si mesmo: ‘A pedra rejeitada pelos construtores tornou-se a pedra angular’ (Mt 21,42). Inclusive os pobres são, de certa maneira, ‘pedras angulares’ destinadas à construção da sociedade.
Em posição contrastante com o Evangelho, “uma economia especulativa torna-os cada vez mais pobres, privando-os do essencial, como a casa e o trabalho”, o que “é inaceitável”. Ora, “quem vive a solidariedade não aceita esta situação e reage”. E, enquanto “muitas pessoas desejam eliminar do dicionário a palavra ‘solidariedade’, porque para uma determinada cultura ela parece um palavrão”, é preciso lembra e insistir que “a solidariedade é uma palavra cristã”. E é por isso, que a Comunidade de Santo Egídio, no dizer de Francisco é “uma família para os desabrigados”, amiga “das pessoas portadores de deficiência que, quando são amadas, exprimem uma grande humanidade” e de muitos “imigrantes que chegaram empreendendo viagens dolorosas e arriscadas”. E o acolhimento solícito na convicção de que “o estrangeiro é nosso irmão, que deve ser conhecido e ajudado” mostra rejuvenescimento.
Assim, de Santa Maria ‘in Trastevere’, o Papa saudou quantos fazem parte desta Comunidade noutros países do mundo, encorajando-os “a serem amigos de Deus, dos pobres e da paz”, pois “quem vive assim receberá a bênção na vida e será bênção para os outros”.
E salientou outra faceta da Comunidade – a busca da paz – declarando:
Nalguns países que sofrem por causa da guerra, vós procurais manter viva a esperança da paz. Trabalhar em prol da paz não produz resultados rápidos, mas é uma obra para artífices pacientes, que procuram quanto une, e põem de lado aquilo que divide, como já dizia são João XXIII.”.
E, entrando num alinha de síntese, adverte para a necessidade de “mais oração e diálogo”, pois, “sem diálogo, o mundo sufoca”. Porém, “o diálogo só é possível a partir da própria identidade”, não se podendo “fazer de conta”, não se podendo negociar a identidade. E é nestas bases que se pode e deve oferecer a “contribuição para promover a amizade entre as religiões”. E, indo “em frente ao longo desta vereda – prece, pobres paz – se contribui “para fazer prosperar a compaixão no cerne da sociedade, que é a verdadeira revolução, a da compaixão e da ternura, para fazer crescer a amizade e não os fantasmas da inimizade e da indiferença”.
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Passados quase 4 anos, Francisco retoma a carismática trilogia “Prece, pobres paz” com “o talento da Comunidade, amadurecido em 50 anos” e que é importante receber novamente “com alegria”. Mas avisa que, na parábola, “um servo esconde o talento num buraco”, justificando-se com o medo. E, “porque se deixou aconselhar pelo medo”, o servo “não soube investir o talento no futuro”. Daqui parte o Bispo de Roma para a denúncia de um mundo muitas vezes habitado pelo medo e pela raiva (irmã do medo) na esteira do que disse o professor Riccardi.
E o Papa, tendo em conta que se trata duma doença antiga, pois, “na Bíblia aparece com frequência o convite a não ter medo”, diz que “a nossa época conhece grandes temores diante das vastas dimensões da globalização”, recaindo os temores “muitas vezes em quem é estrangeiro, diferente de nós, pobre, como se fosse um inimigo”. Chegamos ao ponto de programar a nossa defesa individual e coletiva destas pessoas, “julgando preservar aquilo que possuímos ou o que somos”, podendo esta “atmosfera de medo” vir a “contagiar até os cristãos que, como aquele servo da parábola, escondem o dom recebido: não o investem no futuro, não o partilham com o próximo, mas conservam-no para si mesmo”.
Ora, sabendo que, “se permanecemos sós, somos facilmente arrebatados pelo medo”, Francisco diz desta Comunidade, fundada nos finais dos anos sessenta, portanto “filha do Concílio, da sua mensagem e do seu espírito”:
Mas o vosso caminho leva-vos a olhar juntos para o futuro: não sozinhos, não para vós mesmos. Juntos, com a Igreja. Beneficiastes do grande impulso à vida comunitária e ao ser povo de Deus, vindo do Concílio Vaticano II, que afirma: ‘Contudo, aprouve a Deus salvar e santificar os homens, não individualmente, excluindo qualquer ligação entre eles, mas constituindo-os como um único povo’.” (LG n. 9).
E o Papa sabe que, perante a incerteza sobre o futuro do mundo, perante cenários de guerras e de outras tragédias, naturais e civilizacionais, a Comunidade de Santo Egídio reza e trabalha pela paz e tem a Palavra do Senhor como “luz na escuridão” e a oferecer “esperança de paz”, a ajudar “a não ter medo nem sequer diante da força do mal”. Mais: acolhe a Palavra de Deus “com espírito de festa” e recebendo aquilo que o Pontífice “quis propor para cada comunidade, no encerramento do Jubileu da Misericórdia: que um domingo por ano seja dedicado à Palavra de Deus” (cf Misericordia et misera).
Considerando que, no passado, a Palavra de Deus protegeu esta Comunidade “das tentações da ideologia e hoje a liberta da intimidação do medo”, o Pontífice, exortou-a “a amar e a frequentar sempre mais a Bíblia”, pois “cada um encontrará nela a nascente da misericórdia pelos pobres, pelos feridos da vida e da guerra”.
Com a Palavra de Deus como lâmpada a iluminar o “olhar para o futuro”, é possível “ler os sinais dos tempos”, na linha do que afirmava Paulo VI:
A descoberta dos ‘sinais dos tempos’ [...] deriva de um confronto da fé com a vida, de tal modo que ‘para nós o mundo se torna um livro” (Audiência geral, 16 de abril de 1969: Insegnamenti VII, 1969, 919).
Diz o Papa que este é o livro que deve ser lido, “esta é a espiritualidade que vem do Concílio e que ensina uma grande e atenta compaixão pelo mundo”.
Verificando que, desde o nascimento desta Comunidade, o mundo se tornou “global” e, de certo modo, se unificaram a economia e as comunicações, mas que, “para muitas pessoas, especialmente pobres, se ergueram novos muros, o Pontífice sublinha a necessidade da construção da “globalização da solidariedade e do espírito”. Face às diversidades como “ocasião de hostilidade e de conflito”, é preciso ter em conta que “o futuro do mundo global consiste em viver juntos” e que “este ideal exige o compromisso de edificar pontes, manter aberto o diálogo, continuar a encontrar-se”.
Porém, diz o Papa que não se trata apenas de “um dado político ou organizacional”. Exige-se, antes, de cada um a mudança do “próprio coração, assumindo um olhar misericordioso em relação ao outro, para se tornar artífice de paz e profeta de misericórdia”. Com efeito, o samaritano da parábola evangélica “ocupou-se do homem meio morto na estrada, porque o “viu e sentiu compaixão” (Lc 10,33). Apesar de não ter uma responsabilidade específica pelo homem ferido e ser estrangeiro, não obstante, “comportou-se como irmão, porque teve um olhar de misericórdia”. Ora, por vocação, “o cristão é irmão de cada homem, de modo particular se for pobre e até se for inimigo”. Por isso, a pergunta “Que tenho a ver com isto?” é a forma de lavar as mãos como Pilatos. Em contraponto, segundo o dinamismo do Evangelho, “um olhar misericordioso compromete-nos na audácia criativa do amor, tão necessária”, pois “somos irmãos de todos e, por isso, profetas de um mundo novo; e a Igreja é sinal de unidade do género humano, entre povos, famílias e culturas”.
Finalmente, o Pontífice apelou a que a celebração cinquentenária não fosse um tempo de balanços ou de avaliação de dificuldades e resultados, mas, em sentido cristão, um tempo “em que a fé é chamada a tornar-se nova audácia pelo Evangelho, com “a paciência de uma missão quotidiana na cidade e no mundo”, a missão de “voltar a urdir pacientemente o tecido humano das periferias, que a violência e o empobrecimento dilaceraram; de anunciar o Evangelho através da amizade pessoal; de demonstrar como uma vida se torna verdadeiramente humana, quando é vivida ao lado dos mais pobres; de criar uma sociedade em que ninguém mais seja estrangeiro” – “de ultrapassar os confins e os muros, a fim de reunir”. E exortou:
Prossegui audaciosamente ao longo deste caminho. Continuai a estar ao lado das crianças das periferias, com as Escolas da Paz, que eu visitei; continuai a estar ao lado dos idosos: às vezes são descartados, mas para vós são amigos. Continuai a abrir corredores humanitários para os refugiados da guerra e da fome.”.
Porque “Os pobres são o vosso tesouro”!
2018.03.19 – Louro de Carvalho

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