A Santa Sé publicou, a 24 de Outro, a nova carta-encíclica
do Papa Francisco, sobre o Coração de Jesus. Sob o título “Dilexit nos”, que
significa “Ele amou-nos”, o documento aborda o amor humano e divino de Jesus.
O texto, organizado em 220 númenos, consta de uma
pequena introdução (n.º 1), cinco capítulos (do n.º 2 ao n.º 217) e uma pequena
conclusão (n.os 218 a 220).
A introdução, que ocupa o n.º 1, reza: “ ‘Amou-nos’, diz São Paulo
referindo-se a Cristo (Rm 8,37), para
nos ajudar a descobrir que nada ‘será capaz de separar-nos’ desse amor (Rm 8,39). Paulo afirmava-o com firme
certeza, porque o próprio Cristo tinha garantido aos seus discípulos: ‘Eu vos
amei’ (Jo 15,9.12). Disse também:
‘Chamei-vos amigos’ (Jo 15,15). O seu
coração aberto precede-nos e espera-nos incondicionalmente, sem exigir qualquer
pré-requisito para nos amar e oferecer a sua amizade: Ele amou-nos primeiro (cf
1Jo 4,10). Graças a Jesus,
‘conhecemos o amor que Deus nos tem, pois cremos nele’.” É a sinalização do tom
de todo o documento.
Os capítulos são: I – A importância do coração (n.os
2 a 31); II – Gestos, palavras e amor (n.os 32 a 47); III – Este é o coração
que tanto amou (n.os
48 a 91); IV – Amor que dá de beber (n.os
92 a 163); V – Amor por amor (n.os
164 a 217).
A conclusão (n.os 217 a 220) faz a ligação
do teor desta encíclica com o da Laudato
si’ e com o da Fratelli tutti, pois, bebendo do amor de Cristo, “tornamo-nos capazes de
tecer laços fraternos, de reconhecer a dignidade de cada ser humano e de cuidar
juntos da nossa casa comum”.
O amor de
Cristo liberta-nos da febre de que tudo se compra e se paga, não havendo lugar
para o amor gratuito. E a Igreja precisa deste amor, “para não substituir o
amor de Cristo por estruturas ultrapassadas, obsessões de outros tempos,
adoração da própria mentalidade, fanatismos de todo o género que acabam por
ocupar o lugar do amor gratuito de Deus que liberta, vivifica, alegra o coração
e alimenta as comunidades”. Por fim, o Papa deseja que, para todos, do Coração do
Senhor Jesus Cristo “brotem rios de água viva para curar as feridas que nos
infligem, para reforçar a nossa capacidade de amar e servir, para nos
impulsionar a aprender a caminhar juntos em direção a um Mundo justo, solidário
e fraterno” – até que celebremos, com alegria, unidos, o banquete do Reino,
onde Cristo ressuscitado harmonizará “todas as nossas diferenças com a luz que
brota incessantemente do seu Coração aberto”. E exclama: “Bendito seja!”
***
O coração é o cerne da pessoa
humana e o Mundo perdeu o seu coração.
Parece óbvio, mas o Papa sustenta que precisamos de ouvir: neste período da
civilizacional, estamos sob séria ameaça de perder o coração
ou já o perdemos e precisamos de o recuperar. O coração revela quem
somos (n.º 6), pois é “a morada do amor em todas as suas dimensões espirituais,
psíquicas e até físicas” (n.º 21), “um núcleo que se esconde por trás de todas
as aparências exteriores, mesmo por trás dos pensamentos superficiais que nos podem
desviar” (n.º 4). No grego clássico profano, o termo kardía designa a parte mais íntima do ser humano, do animal e da
planta. Em Homero, indica o centro corpóreo e a alma, o centro espiritual do
ser humano. Na Ilíada, o pensamento e o sentimento, muito próximos um do outro,
pertencem ao coração. O coração aparece como o centro do
desejo e o lugar onde são forjadas as decisões importantes duma pessoa. Em Platão, o coração assume, de certa forma, uma função
“sintetizante” do que é racional e das tendências de cada pessoa, pois tanto o
comando das faculdades superiores como as paixões se transmitem através das
veias que convergem no coração. Assim, desde a Antiguidade, advertimos a importância de
considerar o ser humano não como soma de diferentes capacidades, mas como um
complexo anímico-corpóreo com um centro unificador que dá a tudo o que a pessoa
experimenta um substrato de sentido e orientação.
As nossas perguntas existenciais mais
profundas podem ter resposta numa única e fundamental pergunta: “Eu tenho um
coração?” (n.º 23). As questões que nos ocupam profundamente e nos permitem dar
sentido à vida são ponderadas e mantidas no coração, tal como Maria que,
segundo São Lucas, prezava e ponderava todas as coisas em
seu coração (n.º 19).
O coração, além da sede da “profunda
emoção” (n. 16), onde descobrimos quem somos, é também o lugar onde nasce o
amor: o amor incondicional de Deus por nós, de que flui a nossa capacidade
de amar os outros. No nosso coração, descobrimos o fogo ardente dessa
capacidade, permitindo-nos “tornar-nos, de forma completa e luminosa, as
pessoas que devemos ser, pois todo o ser humano é criado, acima de tudo, para o
amor: fomos feitos para amar e ser amados” (n.º 21). E é nesta descoberta
do amor de Deus por
nós, na profundidade e unidade do nosso ser, que aprendemos a amar os outros,
que é a essência do seguimento de Cristo. O conhecimento
de que Jesus morreu por nós “torna-se afeição, amor” (n.º 27). E Francisco está
convicto de que este é o coração que precisamos de recuperar, se quisermos
curar o nosso próprio coração. “O amor de Cristo pode
dar um coração ao nosso Mundo e reavivar o amor onde quer que pensemos que a
capacidade de amar foi definitivamente perdida” (n.º 218).
A importância do afeto, não apenas do intelecto. Na abertura da encíclica, Francisco põe
em contraste a complexa riqueza do coração com “o domínio mais facilmente
controlável da inteligência e da vontade”. Embora muitos possam retirar-se para
espaços aparentemente mais seguros, isso resulta em “atrofiamento da ideia de
um centro pessoal, no qual o amor, no fim, é a única realidade que pode
unificar todas as outras” (n.º 10).
Francisco critica a mentalidade
excessivamente racionalista ou tecnocrática, atitude que tem sido marca do seu
pontificado. E adverte que os nossos pensamentos e vontades, distintos dos
nossos corações, são “facilmente previsíveis e, portanto, capazes de serem
manipulados”, inclusive por algoritmos digitais que nos
alimentam com informações personalizadas (n.º 14).
Para corrigir a dependência excessiva
da clareza conceitual que pode parecer transmitir a verdade sem resultar em
conversão profunda, ou transformar-se num “moralismo autossuficiente” (n.º
27), o Papa vinca a atenção de Santo Inácio de
Loyola à “afeição”, dizendo que a reforma da vida não se estriba em “conceitos
intelectuais que precisam de ser colocados em prática na vida diária, como se a
afetividade e a prática fossem meramente efeitos de – e dependentes de – dados
do conhecimento” (n.º 24). O capítulo 2 é lido quase como um minirretiro, no
estilo inaciano, visando a conversão e a ordenação da afetividade, fazendo eco
do afloramento de Francisco, em Fratelli Tutti,
à reflexão sobre a parábola do Bom Samaritano como princípio organizador duma encíclica.
Citando 38 passagens bíblicas nos 16 parágrafos do capítulo, o Papa convida-nos
a experimentar o desejo e o cuidado do coração de Jesus,
perguntando, em referência ao encontro de Jesus com o jovem rico em Mc 10,21: “Consegues imaginar o momento,
o encontro entre os seus olhos e os de Jesus?” (n.º 39).
Mais do que reformar as estruturas a Igreja precisa de aprofundar o amor. Desde o início do seu pontificado, o
Santo Padre tem alertado contra a tendência de a Igreja
voltar o seu olhar para si mesma ou de cair no “mundanismo espiritual” e na autorreferência.
Em “Dilexit nos”,
continua o tema, dizendo que “o coração de Cristo também
nos liberta de outro tipo de dualismo encontrado em comunidades e em pastores
excessivamente envolvidos em atividades externas, em reformas estruturais que
pouco evangélicas, em planos de reorganização obsessivos, em projetos mundanos,
em modos seculares de pensar e em programas obrigatórios” (n.º 88). Vindo isto
numa encíclica publicada durante a segunda sessão do
Sínodo da sinodalidade, em que tópicos associados à mudança estrutural e
organizacional foram transferidos para grupos de estudo, tal crítica
impressiona. A esperança de Francisco é que, ao
refletir sobre o coração de Cristo, “síntese encarnada do Evangelho”, a Igreja seja
movida menos pela análise crítica de questões teológicas e sociais, mas muito
mais por um poderoso amor afetivo por Cristo (n.º 90).
Francisco parece implorar aos que se
deixam levar pelos próprios planos e visões para a Igreja, seja por meio de
rigorosa adesão às estruturas atuais, seja por uma reforma radical delas, que
se reorientem para a necessidade dum amor reavivado. Em vez de estruturas e
preocupações ultrapassadas, de apego excessivo às próprias ideias e opiniões e de
fanatismo em qualquer número de formas, a Igreja precisa “do amor gratuito de
Deus que liberta, anima, traz alegria ao coração e constrói comunidades” (n.º
219).
A importância da piedade popular. Francisco exprime a sua consciência
de que o Sagrado Coração e imagens devocionais
conexas podem ser descartadas como kitsch, mas adverte contra o descarte da
devoção como um todo. Certas representações podem, “parecer-nos de mau gosto e
não particularmente propícias à afeição ou à oração, mas isso é de pouca
importância, pois são apenas convites à oração” (n.º 57). Ele leva um passo
adiante, criticando, como frequentemente faz, quem descarta tais expressões de
piedade popular, como sendo demasiado emocionais ou carentes de
profundidade. E escreve: “Pio XII descreveu como ‘falso
misticismo’ a atitude elitista dos grupos que viam Deus como tão sublime, separado
e distante que julgavam expressões afetivas de piedade popular como perigosas e necessitadas de
supervisão eclesiástica” (n.º 86).
Falando da piedosa tradição dos
católicos que procuram consolar Jesus no seu sofrimento, pede “que ninguém
menospreze a fervorosa devoção do santo povo fiel de
Deus”, acrescentando: “Encorajo todos a considerarem se pode haver maior
razoabilidade, verdade e sabedoria em certas demonstrações de amor no consolo ao
Senhor do que nos atos de amor frios, distantes, calculados e nominais praticados
pelos que dizem ter fé mais reflexiva, sofisticada e madura” (n.º 160).
O Sagrado Coração pede reparação em ações e palavras de amor, não ao
choro de autopiedade.
Uma parte da devoção ao Sagrado Coração envolve
“reparações” ao coração de Jesus pelos próprios pecados e pelos pecados do Mundo,
que trouxeram e continuam a trazer-lhe tristeza. Porém, o foco excessivo na
reparação pode levantar preocupações sobre duvidar da suficiência da redenção
de Cristo, mas Francisco acredita que o impulso
devocional para consolar o coração de Jesus é puro. “Pode parecer a alguns que
este aspeto da devoção ao Sagrado Coração carece de base teológica firme, mas o
coração tem as suas razões. Aqui o sensus fidelium percebe
algo misterioso, além da lógica humana, e percebe que a paixão de
Cristo não é mero evento do passado, mas “um evento do qual podemos
compartilhar pela fé” (n.º 154).
Enfim, Francisco encoraja um
enquadramento adequado das reparações. Convoca Santa Teresa de Lisieux para
fornecer um contexto histórico e espiritual. “Teresa estava ciente de que, em
certos setores, se havia desenvolvido uma forma extrema de reparação baseada na
disposição de se oferecer em sacrifício pelos outros e de se tornar, em certo
sentido, um ‘para-raios’ para os castigos da justiça divina” (n.º 195).
Tanto Teresa como o Papa têm
visão sombria dessa forma de devoção. Uma ênfase tão
grande na justiça de Deus pode levar à noção de que “o
sacrifício de Cristo foi, de alguma forma, incompleto ou apenas parcialmente
eficaz, ou que a sua misericórdia não foi suficientemente poderosa” (n.º 195).
Somente Jesus salva e redime.
Contudo, Francisco propõe uma estrutura de reparações que vê
como “participação livremente aceite no seu amor redentor”. Isso faz-se amando o
nosso próximo.
“Agradaria ao coração que tanto nos
amou que nos deleitássemos numa experiência religiosa privada ignorando as suas
implicações para a sociedade em que vivemos?” (n.º 205). O Papa conclui que
não, pois somos chamados a reconciliar-nos com amigos, com familiares e com estranhos
a quem prejudicamos e que nos prejudicaram. Somos chamados a construir
sociedades de justiça, de paz e de fraternidade. Mas essa ação é animada por um
amor intenso e também está conectada, de acordo com Francisco, tanto com a
evangelização, seu foco na Evangelii
Gaudium como com as suas encíclicas sociais Laudato si' e Fratelli
Tutti (n.º 217). “Ao contemplarmos o Sagrado Coração, a missão torna-se uma questão de
amor”, pois “o maior perigo na missão é que, no meio de todas as coisas que
dizemos e fazemos, deixamos de promover um encontro alegre com o amor de Cristo
que nos abraça e nos salva” (n.º 208).
A compunção pelos pecados que
trespassaram o Coração de Cristo deve levar-nos à tristeza que nos mova, não à
autopiedade ou ao perfecionismo, mas a amor maior a Deus e ao próximo.
***
Em suma, uma encíclica que reflete o
ser e o estilo do Papa argentino!
2024.11.19 – Louro de Carvalho