sábado, 5 de julho de 2025

Parisienses podem mergulhar no rio Sena, após 102 anos de proibição

 
Pela primeira vez, desde 1923, o Rio Sena, na capital de França, foi aberto a banhos para benefício da população, constituindo o culminar de uma limpeza do icónico rio de Paris, que se iniciou a pretexto dos Jogos Olímpicos de 2024 e cujo valor atingiu mais de 1400 milhões de euros. Atualmente, as autoridades dizem que o Sena cumpre as normas europeias de qualidade da água, na maioria dos dias.
As águas do Sena foram abertas ao público em três partes do curso: Bras Marie, em frente à Ile Saint-Louis, perto da catedral de Notre-Dame; Bercy, perto da Biblioteca Nacional; e Grenelle, em frente à Ile des Swans, a dois passos da Torre Eiffel.
Estas zonas de banhos permanecerão abertas até 31 de agosto. Porém, caso as bandeiras estejam vermelhas, a natação será interditada. 
Embora a natação seja gratuita e aberta ao público, de acordo com a Câmara Municipal de Paris, não será acessível sem condições. Os nadadores devem ter, pelo menos, 14 anos de idade e 1,40 metros de altura. É obrigatória, a utilização de boia de segurança e haverá, pelo menos, três nadadores-salvadores presentes em permanência em cada zona.
Além disso, não será possível nadar em toda a largura do rio, pois o Sena é muito suscetível aos efeitos da navegação e das tempestades. Por isso, foram criados “espaços de segurança”, e o restante das águas continua interdito para banhos.
Além dos três trechos, em Paris, a administração local abrirá mais 14 áreas de banho nos rios Sena e Marne, fora dos limites da capital. Duas delas já foram inauguradas no Marne, em junho.
Marc Guillaume, prefeito da região de Ile-de-France, em Paris, garantiu que a qualidade sanitária da água é excecional. “Há duas bactérias que monitorizamos, a E.coli e os enterococos, algumas das quais estão 10 vezes abaixo dos limiares e outras mais de 25 vezes abaixo dos limiares”, explicou.
Porém, dado que, em Paris, as águas pluviais e residuais são misturadas numa única rede, em caso de chuvas fortes, o excesso ainda é descarregado no Sena. Durante os Jogos Olímpicos de 2024, os recordes de pluviosidade tornaram, muitas vezes, a água imprópria para os atletas.
Por isso, neste verão, tal como na praia, serão utilizadas bandeiras (verde, amarela e vermelha) para indicar o estado do Sena. E a qualidade da água será analisada por sondas instantâneas e por amostras de cultura.
A presidente da Câmara Municipal de Paris, Anne Hidalgo, que esteve presente na reabertura, juntamente com a ministra do Desporto, Marie Barsacq, declarou que  abrir o Sena aos banhistas “é também uma forma de adaptar a cidade às mudanças de temperatura”. E, falando do projeto limpeza, Anne Hidalgo vincou o objetivo de abrir cerca de 30 locais a banhistas. Para tanto, foram investidos mais de 1400 milhões de euros, para melhorar a qualidade da água a montante, com obras de captação de águas residuais, para evitar que estas desaguem no rio.
Há uma semana, a autarca assinou o decreto que autoriza o acesso às águas num “momento histórico”, após mais de 100 anos.
E, no dia 5, antes do nascer do sol, um funcionário municipal limpou as últimas manchas de algas com uma rede de pesca. Pouco depois, formou-se uma fila de parisienses ansiosos, de toalha na mão, à espera da sua oportunidade de saltar para a água.
A reação generalizada do público foi de satisfação e de alegria, com gritos de “uau” e “está quente!”, a ecoar pelo Sena. Os primeiros nadadores entraram na água verde-esmeralda e os gritos de alegria ecoaram pelas margens do rio.
“Pensava que ia estar um frio de rachar, mas, na verdade, é muito bom”, entusiasmou-se Karine, assistente de cuidados de saúde, de 51 anos, que foi uma das primeiras banhistas a entrar na água com uma boia amarela.
Sob a supervisão cuidadosa de uma dúzia de nadadores-salvadores com coletes de alta visibilidade – cada nadador colocava uma boia salva-vidas amarela brilhante à volta da cintura – correu bem o primeiro dia do banho. A corrente era fraca, apenas o suficiente para puxar, suavemente, os membros – um lembrete de que este ainda é um rio vivo e urbano.
“É tão bom nadar no coração da cidade, especialmente, com as altas temperaturas que temos tido, ultimamente”, disse Amine Hocini, trabalhador da construção civil de 25 anos de Paris, vincando: “Estou surpreendido, porque pensei que ia estar mais fresco; e, de facto, está muito mais quente do que pensava.”
A presidente da Câmara Municipal, Anne Hidalgo, que já deu um mergulho, em 2024, estava lá, na manhã do dia 5, segurando uma garrafa transparente cheia de água do rio como demonstração de confiança,  e afirmou que “é um sonho de infância fazer com que as pessoas nadem no Sena”.
E, agora, a qualidade da água é “excecional”.
Do convés das embarcações, turistas, tal como, das margens, corredores matinais pararam para observar. Alguns aplaudiam, quando os nadadores subiam as escadas de aço, sorridentes e a pingar. Porém, outros, como François Fournier, permaneceram céticos. “Francamente, não me arrisco”, disse Fournier, que vive nas margens do rio e observa a cena de uma ponte, apontando: “Já vi coisas inimagináveis a flutuar no Sena, por isso vou esperar que esteja tudo bem limpo.”
Ainda havia detritos a flutuar aqui e ali – uma folha perdida, um invólucro de plástico –, mas o cheiro era quase impercetível: não havia um forte odor a esgoto, apenas um cheiro a terra, a rio.
O parisiense não pode querer que não haja folhas de plantas ou algas no rio.
“É tão chique nadar no Sena, ao lado da Île Saint-Louis”, diz Lucile Woodward, 43 anos, uma residente, explanando: “Há algumas apreensões, claro, sempre que se vai nadar para algum lado, mas acho que esta é uma das zonas mais testadas, em todo o Mundo, atualmente. Acho que a Câmara Municipal não se pode permitir ter problemas.”
E acrescentou com uma gargalhada: “A minha pele está bem!”
A natação no Sena era ilegal, desde 1923, com algumas exceções, devido à poluição e aos riscos da navegação fluvial. E, doravante, para dar um mergulho fora das zonas balneares continua a ser proibido, por motivos de segurança.
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É de lembrar que, apesar do investimento inerente ao projeto de limpeza das águas do Sena, os recordes de pluviosidade registados, durante os Jogos Olímpicos de 2024, tornaram, muitas vezes, a água imprópria para os atletas nadarem.
Ainda a 29 de julho de 2024, se colocava a hipótese de a poluição do rio poder transformar o triatlo em duatlo, nos Jogos Olímpicos. Autoridades diziam continuar a adiar as corridas da prova de triatlo, até que a qualidade da água melhorasse. Todavia, caso isso não acontecesse, a prova de triatlo poderia tornar-se num duatlo, com apenas duas modalidades.
Pelo segundo dia consecutivo, os treinos para a prova de triatlo tiveram de ser adiados, porque o Sena, onde os atletas iriam competir, estava demasiado poluído.
O triatlo masculino estava agendado para o dia 30, enquanto a prova feminina seria no dia 31. Porém, as autoridades locais adiaram, mais uma vez, as corridas. E, na pior das hipóteses, os triatletas só participariam nas secções de ciclismo e de corrida, não havendo natação.
Quanto às maratonas de natação previstas para o Sena, nos dias 8 e 9 de agosto, a organização tinha um plano B. Se o rio Sena estivesse demasiado poluído, a prova teria lugar no Estádio Náutico de Vaires-sur-Marne, a Leste de Paris, que já recebia as competições olímpicas de remo e a canoagem. No entanto, desde o início de junho de 2024, estavam a ser feitos testes diários à qualidade da água do rio Sena.
Entretanto, a 7 de agosto, os nadadores olímpicos de águas abertas já estavam a treinar no rio Sena, durante a manhã, depois dos organizadores de Paris terem determinado que era seguro mergulhar. A sessão de treino de duas horas realizou-se numa manhã fresca e nublada, constituindo a única oportunidade para os nadadores se familiarizarem com o pitoresco percurso que atravessa o centro da capital francesa. Isto aconteceu após um teste semelhante, que deveria ter tido lugar na véspera, ter sido cancelado, devido a preocupações com a qualidade da água.
Dezenas de nadadores – desde Sharon van Rouwendaal, campeã olímpica de 2016, até ao irlandês Daniel Wiffen, que competiu, pela primeira vez, em águas abertas – mergulharam no Sena um dia antes da maratona feminina de 10 quilómetros. A prova masculina ficou marcada para 9 de agosto. E, antes de mergulharem, vários nadadores verificaram as condições, a partir da famosa Ponte Alexandre III, com vista para a boia de partida e para a rampa de chegada.
Os nadadores de águas abertas fazem a maior parte do seu treino nas condições controladas de uma piscina. E os responsáveis mostravam-se confiantes de que ambas as provas se realizariam sem problemas, especialmente, com uma previsão favorável que previa céu soalheiro, durante a tarde, e com poucas hipóteses de chuva.
A World Aquatics cancelou um teste, no dia 6 de agosto, devido a preocupações com a flutuação dos níveis de bactérias no curso de água, mas esta não é a única preocupação, pelo menos, para os competidores. A maioria dos nadadores aproveitou a sessão de treino, especialmente, para verificar a forte corrente que também suscitou preocupações. A corrente foi medida a 2-3 mph (milhas por hora) ou cerca de 3,2-4,8 kmh (quilómetros por hora), um desafio significativo, quando se sobe o rio no percurso de seis voltas.
No entanto, o Rio Sena foi palco de duas grandes modalidades dos Jogos Olímpicos: triatlo e maratona aquática.
A prova de triatlo de estafetas mistas realizou-se, no dia 5, e a World Triathlon divulgou dados, no dia 6, que mostram que os níveis de bactérias fecais E. coli e enterococos estavam dentro dos limites aceitáveis, para a extensão do percurso de estafetas de triatlo.
No entanto, quatro triatletas – dos mais de 100 que competiram nas provas individuais masculinas e femininas, na semana anterior – ficaram doentes nos dias, embora não tenha sido claro se a água foi a culpada. Com efeito, a maioria das estirpes das bactérias de E. coli e enterococcus são inofensivas e algumas vivem nos intestinos de pessoas e animais saudáveis, mas outras são perigosas e um pouco de água contaminada pode causar infeções no trato urinário ou nos intestinos.
Depois, foi a vez de os atletas de águas abertas competirem, mas a modalidade tinha um plano de reserva, caso o Sena parecesse inseguro. As provas de maratona aquática (águas abertas) seriam transferidas para o Estádio Náutico de Vaires-sur-Marne, onde se realizam as provas de remo e canoagem.
Os nadadores da maratona nadaram em troços mais longos do rio e começam e terminam na Ponte Alexandre III. Deram seis voltas no percurso de 1,67 quilómetros, num total de 10 quilómetros.
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Em 2024, os atletas acabaram por competir em provas aquáticas no rio, apesar de ter havido denúncias de que as águas estavam impróprias para banho dias antes.
Porém, só agora, o Sena foi aberto também a banhistas. Nos três locais destinados a banhos públicos, foram construídos deques, e nadadores-salvadores monitorizam os banhistas, durante o horário permitido para entrar no rio. E a Câmara Municipal instalou bandeiras verdes, amarelas e vermelhas, ao longo das margens do Sena, para que os banhistas saibam os locais onde o banho é permitido ou proibido.
Para limpar o rio, a administração local fez um megapacote de obras que incluíram a conexão de milhares de residências ao sistema de esgoto, a modernização das estações de tratamento de água e a construção de grandes reservatórios de água da chuva, para evitar o transbordamento do esgoto durante fortes tempestades.
Embora os atrasos causados pelas chuvas tenham afetado alguns treinos olímpicos e provocado o adiamento do evento de triatlo masculino, no verão passado, as competições ocorreram, essencialmente, como o planeado.
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É irónico que vários grandes rios banhem, durante o seu percurso, grandes cidades e os habitantes estejam proibidos de se banharem neles. É o fenómeno da poluição de toda a espécie, mas sendo que, em muitos casos, o rio ou a ribeira era o vazadouro de todos os efluentes. Tardiamente se construíram estações de tratamento de águas residuais (ETAR). E os rios que, por sua natureza, lavam, também arrastam consigo detritos e muito lixo, e as autoridades acordaram tarde para promoverem obras de limpeza e de despoluição. No caso, do Sena, mais de um século foi excessivo, mas – ainda bem – o rio reconciliou-se com a cidade e com os cidadãos.

2025.07.05 – Louro de Carvalho


Principais alterações às leis de imigração são inconstitucionais

 
A Assembleia da República (AR) discutiu, a 4 de julho, na generalidade as propostas de lei do governo com vista ao estabelecimento de restrições à imigração. Porém, como as alterações à Lei da Nacionalidade e à Lei dos Estrangeiros acabaram por não ser votadas, no final de um tenso debate, o governo pediu que fossem remetidas à especialidade para que aí possam ser discutidas e aprovadas.
Efetivamente, foi só no minuto final do debate das alterações à Lei da Nacionalidade e à Lei dos Estrangeiros que o governo, que defendera, durante mais de uma hora, um aperto à imigração, aceitava que esta e outras restrições à entrada de estrangeiros não tivessem uma primeira votação, para se procurar aprová-las, no pormenor, em sede do debate na especialidade, na Comissão de Direitos, Liberdade e Garantias.
Depois, o novo texto volta para votação final em plenário, para a aprovação final. 
Por fim, todos reclamaram uma parte do sucesso da deliberação parlamentar, mas foi preciso esperar pelo fim e pelo esgotamento do tempo para discutir argumentos e para ver o debate inflamar, quando André Ventura disse nomes estrangeiros de alunos de escolas em Portugal.
Segundo André Ventura, o governo já tem a garantia do apoio da bancada parlamentar do Chega, nestas matérias, em todas as fases de votação.
Outro acordo do líder do partido com o governo é a vontade de concluir esta etapa legislativa “até ao fim de julho”. 
Depois, os diplomas, se obtiverem a aprovação final, vão para a apreciação presidencial, cujo prazo para promulgação ou veto é de 20 dias. No caso da Lei da Nacionalidade, existe a possibilidade de o Presidente da República solicitar, como o próprio já admitiu, ao Tribunal Constitucional (TC) a fiscalização preventiva da sua constitucionalidade.
Seja como for, não é possível saber quando as medidas propostas entram em vigor. Até lá, permanecem as leis como estão. A possibilidade de mudança já ocasionou uma corrida aos balcões do Instituto de Registo e Notariado (IRN) para pedidos de nacionalidade portuguesa. Outra corrida é aos tribunais, com ações judiciais para garantir o reagrupamento familiar e o título de residência da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP).
O que vai ser discutido na especialidade são a Lei da Nacionalidade (Lei n.º 37/81 de 3 de outubro, na atual redação), a Lei dos Estrangeiros (Lei n.º 23/2007, de 4 julho, na atual redação) e a Criação da Unidade Nacional de Estrangeiros e Fronteiras.
No atinente à Lei da Nacionalidade, as principais alterações propostas são o aumento do tempo de moradia com título de residência no país para solicitação da nacionalidade portuguesa e o aumento do tempo de moradia dos pais para bebés nascidos em território nacional terem direito ao pedido. Outra proposta é de perda da nacionalidade para quem cometer crimes com pena de prisão efetiva acima de três anos.
Quanto à Lei dos Estrangeiros, o governo quer mais restrições ao reagrupamento familiar (que o imigrante só possa pedir o reagrupamento da família, após dois anos, de moradia legal no país, com exceção de casos de menores) e a restrição do visto de procura de trabalho para profissionais altamente qualificados. Outra medida é de constar na lei que não seja possível entrar em Portugal, sem visto prévio e solicitar um título de residência da Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP).
No respeitante à Criação da Unidade Nacional de Estrangeiros e Fronteiras (UNEF), na Polícia de Segurança Pública (PSP), o governo pretende acelerar o retorno de imigrantes sem direito a permanecer no país e controlar as fronteiras e a presença dos estrangeiros no território nacional.
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A discussão parlamentar, na generalidade, extrapolara as alterações à Lei da Nacionalidade, as que a esquerda diz que aproximam o governo do partido Chega e o entendimento que o Chega faz depender do governo para aceitar as propostas de lei.
O Bloco de Esquerda (BE) e o Partido Comunista Português (PCP) votaram contra a baixa à especialidade das propostas do governo e do Chega, que partem para a discussão e para eventuais mudanças que permitam que as decisões do Conselho de Ministros sejam aprovadas.
Em geral, ss partidos da esquerda parlamentar acusaram o governo de apresentar uma proposta de revisão da Lei da Nacionalidade com pontos inconstitucionais, de pretender criar um problema artificial e não se basear em dados objetivos.
Tal posição foi contrariada por intervenções da direita política que responsabilizou os executivos socialistas por introdução de “facilitismo” – ou, no caso específico do Chega, de “venda a granel” e de “bandalheira” –, na concessão de nacionalidade por naturalização.
No debate sobre a proposta do governo de revisão da lei da nacionalidade, na generalidade, a intervenção mais contundente partiu do deputado Pedro Delgado Alves, vice-presidente da bancada do Partido Socialista (PS), que atirou:A perda da nacionalidade proposta pelo governo é desproporcional. Cria duas categorias de cidadãos: uns que são da espécie de período experimental e os outros que têm todos os direitos.”
Ainda de acordo com o deputado, o diploma do governo viola a Constituição, no que respeita “à retroatividade”, visto que há “pessoas que, já hoje, reúnem os requisitos para requerer a nacionalidade e deixariam de o poder fazer, o que viola o princípio da proteção de confiança”.
Pedro Delgado Alves apontou ainda uma “desproporcionalidade de prazos” inerente ao diploma do executivo e referiu que se poderá estar perante “uma violação de obrigações convencionais do Estado Português, porque a convenção europeia da nacionalidade determina que não se devem discriminar em função da origem das pessoas os prazos para a aquisição da nacionalidade”. E, deixou um aviso ao governo: “Não apresente uma proposta que viola a Constituição, esforce-se por fazer melhor e, seguramente, não vá atrás daqueles que querem acabar com a República” (aqui, numa alusão ao Chega).
Por sua vez, a coordenadora do BE falou em “crueldade” do executivo, em relação a crianças que nascem em Portugal, que nunca conheceram qualquer outro país, mas que poderão ficar sem acesso à nacionalidade portuguesa.Chamam a isto integração? Atacar os filhos de que quem veio para Portugal trabalhar é desumano”, declarou Mariana Mortágua.
A líder parlamentar do PCP, Paula Santos, considerou que se está perante uma tentativa de “retrocesso civilizacional”, sobretudo através da criação de um paradigma de “portugueses de primeira e outros de segunda”.
Paulo Muacho, do Livre, assinalou que, neste debate o ministro da Presidência, António Leitão Amaro, usou um “slogan” do Chega – “Por Portugal, pelos Portugueses” – e comentou que “o ‘não é não’ do primeiro-ministro, Luís Montenegro, face ao Chega, afinal, é uma bola de sabão”.
Em sentido contrário, pela parte do Partido Social Democrata (PSD), o ex-secretário de Estado Paulo Lopes Marcelo advertiu que a Lei da Nacionalidade é “um instrumento importante” para a soberania do país e acusou o PS “e a extrema-esquerda” de terem introduzido “regras simplistas e facilitadoras com consequências que estão à vista de todos”.
Segundo Paulo Lopes Marcelo, a aquisição da nacionalidade deve pressupor uma adesão efetiva aos valores da comunidade e Portugal tem, neste momento, cerca de 1,5 milhões de imigrantes, o que impõe “prudência” nos critérios de atribuição da nacionalidade.
Antes, Paulo Núncio, líder parlamentar do partido do Centro Democrático Social (CDS), vincou que o seu partido defende a revisão da lei da nacionalidade, “há 20 anos”, tendo razão antes do tempo”.
Pela parte do Chega, Cristina Rodrigues acusou os governos do PS de terem “vendido a granel a nacionalidade” e acentuou o princípio do seu partido de que a aquisição da nacionalidade “é um privilégio e uma responsabilidade”, pressupondo, entre outras caraterísticas, conhecimento da Língua Portuguesa.
O ex-líder da Iniciativa Liberal Rui Rocha manifestou-se, globalmente, de acordo com os diplomas do governo, pois, na sua ótica,nos últimos anos, em matéria de imigração, assistiu-se a um descontrolo, sobretudo, em resultado da adoção do regime de manifestação de interesse”.
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Um parecer jurídico assinado pelo constitucionalista Jorge Miranda conclui que vários aspetos das propostas de lei do governo, que restringem o acesso à nacionalidade e alteram o regime de entrada e permanência de estrangeiros em Portugal, “suscitam dúvidas de constitucionalidade” e outros são mesmo “inadmissíveis”, à luz da Constituição.
Um dos problemas tem a ver, desde logo, com o facto de as alterações anunciadas à Lei da Nacionalidade terem efeitos retroativos a 19 de junho, data em que o programa de governo foi viabilizado na AR. Na verdade, o executivo deliberou que os pedidos submetidos a partir daquela data são avaliados com base nas novas regras, apesar de não terem sido ainda aprovadas na AR.
O governo justificou a decisão, alegando ter havido “um movimento de submissão maciça de pedidos de aquisição da nacionalidade por naturalização” a partir do momento em que foram anunciadas as alterações, como “tentativa, de última hora, de beneficiar dos requisitos altamente permissivos do regime jurídico cessante”.
Porém, o parecer de Jorge Miranda sustenta que as medidas ainda não estão em vigor, pelo que a pretensão do executivo “viola, frontalmente, a proibição de aplicação retroativa” de leis que restringem direitos, liberdades e garantias, além de representar uma “menorização incompreensível do Parlamento”, que ainda poderá introduzir alterações significativas no diploma. Por outro lado, “apesar de o governo considerar que a atual Lei da Nacionalidade contém medidas erradas, isso não as revoga”, frisa o documento, igualmente assinado pelo advogado Rui Tavares Lanceiro, especialista em Direito Administrativo e Constitucional.
O parecer, solicitado pelo escritório de advogados Liberty Legal, especializado em imigração e em cidadania, e que será entregue aos grupos parlamentares e ao Presidente da República, analisou também a norma que contabiliza os prazos de residência em Portugal para efeitos de pedido de aquisição de nacionalidade. O governo não só duplicou, de cinco para 10 anos, o tempo mínimo de residência para um estrangeiro requerer a nacionalidade, como determinou que o prazo não começa a contar com a entrega do pedido de legalização, como até agora, mas apenas quando é dada a autorização de residência, o que pode levar anos.
Assim, para os dois especialistas, esta norma “é constitucionalmente inadmissível”, por violar os princípios da segurança jurídica, da igualdade e da dignidade da pessoa humana, e “cria uma situação de incerteza sobre o momento de início do prazo, que deixa de estar nas mãos do cidadão e passa, inteiramente, para as mãos da Administração.” Desta feita, duas pessoas que apresentem, ao mesmo tempo, o pedido de residência podem vir a receber o deferimento em datas distintas, contando, por isso, com um início de prazo totalmente diferente para o acesso à nacionalidade. “Nenhuma razão discernível se pode encontrar para semelhante distinção”, salientam os dois especialistas, o primeiro dos quais é apelidado de “Pai da Constituição”, não sei porquê, visto que a paternidade da Constituição cabe à Assembleia Constituinte que a elaborou, a partir de projetos de grupos partidários, e não de cidadãos individualmente considerados.
No concernente à Lei de Estrangeiros, o parecer contesta o travão do governo à interposição de ações judiciais urgentes contra a Agência para a Integração, Migrações e Asilo (AIMA), relativas ao reagrupamento familiar. Trata-se de uma restrição ao direito de acesso à Justiça que é “excessiva e violadora do princípio da proporcionalidade”, sustenta o parecer, vincando: “A excessiva pendência de contencioso administrativo com origem em atos ou [em] omissões da AIMA é o resultado do incorreto funcionamento desta entidade, não do legítimo exercício pelos cidadãos dos seus direitos fundamentais.”
Além das questões levantadas pelo escritório de advogados, Jorge Miranda e Rui Tavares Lanceiro analisaram a possibilidade de retirada da nacionalidade a quem cometa crimes graves. A medida “suscita a potencial violação” dos princípios da igualdade, da proporcionalidade e da universalidade, por introduzir uma diferenciação entre portugueses de origem, que não podem perdê-la nunca, e portugueses por naturalização.
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Por fim algumas notas:
* É de questionar o governo por não ter ouvido o Conselho Nacional para as Migrações e Asilo, órgão com funções consultivas do governo, que tem como função pronunciar-se sobre os projetos de diplomas relevantes, em matéria de migrações e de asilo.
* É de interpelar o CDS e o Chega, partidos que se dizem cristãos e amigos da família, por que motivo intentam dificultar o reagrupamento familiar, em flagrante oposição aos valores da democracia cristã, da social-democracia e do personalismo humano e cristão, que acentua a dignidade da pessoa humana, independentemente, do sangue, da cor, da etnia, da idade, do sexo ou da religião.
* Pergunto por que motivo se facilita a aquisição da nacionalidade a pessoas que se afirmam de raiz portuguesa, estejam onde estiverem, e se dificulta aos que residem no país. Se aceitamos como privilégio o sangue puro, tornamo-nos parentes de Hitler, negamos a miscigenação e deitamos ao lixo os tão aplaudidos discursos do último 10 de junho; negando a nacionalidade aos que nascem e/ou residem em Portugal, desrespeitando o “ius soli”, homenageamos Donald Trump (aliás, as ordens de saída já estão em marcha); e não sabendo resolver os problemas que temos com a migração, parece não sabermos exercer a soberania ou sermos incapazes de criar e de manter as estruturas e os serviços para isso, não fazendo jus aos nossos maiores.
* Apesar de elaboração das leis (constitucionais ou ordinárias) caberem ao Parlamento (no caso das leis constitucionais, assumindo poderes constitucionais), seria útil que os parlamentares se submetessem, regularmente, à formação ministrada por renomadas figuras da Academia e do mundo da empresa e do trabalho, de várias sensibilidades, mas nunca abdicando do ónus e da responsabilidade da contribuição política para elaboração-discussão-aprovação das leis. Com efeito, importam as decisões suficientemente informadas e sustentadas.   

2025.07.05 – Louro de Carvalho


sexta-feira, 4 de julho de 2025

Foi aprovada a lei One Big Beautiful Bill Act nos EUA

 
O Congresso dos Estados Unidos da América (EUA) aprovou, a 3 de julho, pondo fim a dias de debate e de votações noturnas no Capitólio, o projeto de lei do presidente Donald Trump de reduções fiscais e de cortes na despesa, “One Big Beautiful Bill Act”, de 4,5 biliões de dólares (3,8 biliões de euros), que fora remetida para a aprovação final, de modo a ser promulgada a 4 de julho, dia da Comemoração da Independência norte-americana.
A votação nominal apertada (218 votos, a favor, e 214 votos, contra) teve elevado custo político, com dois republicanos a juntarem-se a todos os democratas que se opunham.
Os líderes do Partido Republicano trabalharam durante a noite e Donald Trump apoiou um grupo de céticos para desistirem da sua oposição e lhe enviarem o projeto de lei para assinar.
O líder democrata, Hakeem Jeffries, de Nova Iorque, atrasou a votação, usando da palavra durante mais de oito horas, com um discurso recorde contra o projeto de lei. “Temos um grande trabalho para terminar. Com um grande e belo projeto de lei, vamos tornar este país mais forte, mais seguro e mais próspero do que nunca”, disse o presidente da Câmara, Mike Johnson.
O resultado representa grande vitória para o presidente e para o seu partido. Foi esforço de longo prazo para compilar a longa lista de prioridades do Partido Republicano num único pacote de 800 páginas. Porém, com os democratas unidos na oposição, o projeto de lei tornar-se-á uma medida definidora do regresso de Trump à Casa Branca, ajudado pelo controlo republicano do Congresso.
No seu cerne, a prioridade do pacote são 4,5 biliões de dólares em benefícios fiscais promulgados em 2017, no primeiro mandato de Donald Trump que expirariam, se o Congresso não os mantivesse, juntamente com outros novos. Isto permite aos trabalhadores deduzirem as gorjetas e o pagamento de horas extraordinárias, bem como a dedução de seis mil dólares (5105 euros) à maioria dos idosos que ganham menos de 75 mil dólares (63822 euros), por ano.
Há também um investimento de cerca de 350 mil milhões de dólares (297 mil milhões de euros), na segurança nacional, na agenda de deportação decretada por Donald Trump e no desenvolvimento do sistema defensivo “Golden Dome” sobre os EUA.
Para ajudar a compensar a perda de receitas, o pacote inclui 1,2 biliões de dólares (um bilião de euros) em cortes nos cuidados de saúde Medicaid e nas senhas de alimentação, em grande parte, pela imposição de novos requisitos de trabalho, incluindo para alguns pais e idosos, e grande retrocesso nos créditos fiscais para a energia verde. E o Gabinete de Orçamento do Congresso (CBO) estima que o pacote de medidas acrescentará 3,3 biliões de dólares (2,8 biliões de euros) ao défice, ao longo da década, e que mais 11,8 milhões de pessoas ficarão sem cobertura de saúde.
“Esta foi uma oportunidade geracional para apresentar o conjunto de reformas conservadoras mais abrangente e consequente da História moderna, e é o que estamos a fazer”, afirmou Jodey Arrington, presidente da Comissão do Orçamento da Câmara dos Representantes.
Os democratas uniram-se contra o projeto de lei, que dizem ser doação fiscal aos ricos, paga à custa da classe trabalhadora e dos mais vulneráveis da sociedade, e apelidaram-no de “crueldade de gotejamento”. E Hakeem Jeffries começou o seu discurso às 4h53 e terminou às 13h37, um recorde de oito horas e 44 minutos, enquanto argumentava contra a “grande e feia lei” de Trump. “Somos melhores do que isto”, declarou, porfiando que usou a prerrogativa de líder para um debate ilimitado e leu carta após carta de Americanos que escreviam sobre a sua confiança nos programas de saúde. 
A aprovação do pacote no Congresso foi difícil, desde o início. Os republicanos têm-se debatido com o projeto de lei, em quase todos os passos, discutindo na Câmara e no Senado, e conseguindo-o, muitas vezes, apenas pela margem estreita de apenas um voto. Contudo, o Senado aprovou o pacote, dias antes, com o vice-presidente James David Vance a desempatar.

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Os republicanos do Senado, que votaram, numa sessão tensa, no final do dia 28 de junho, ultrapassaram, por pouco, a etapa processual fundamental, quando se desdobravam em esforços para avançarem com o pacote de reduções fiscais, de cortes nas despesas e de aumento dos fundos de deportação. O resultado 51-49 surgiu, após tumultuosa noite, com o vice-presidente no Capitólio, para quebrar um potencial empate. As cenas mais tensas ocorreram, quando a votação foi interrompida, arrastando-se por mais de três horas, enquanto os senadores que se opunham se reuniam para negociar e tinham reuniões privadas fora do hemiciclo. No final, dois republicanos opuseram-se à moção, juntando-se aos democratas.
Os republicanos usam as suas maiorias no Congresso para afastarem a oposição democrata, mas têm deparado com vários contratempos políticos e nem todos os republicanos concordam com a redução das despesas no Medicaid, nos vales de alimentação e noutros programas sociais, para ajudar a cobrir cerca 3,8 mil milhões de dólares em benefícios fiscais.
“Chegou a hora de concluir esta legislação”, bradou o líder da maioria no Senado, John Thune.
Antes da chamada nominal, a Casa Branca divulgou uma declaração de política administrativa dizendo que “apoia fortemente a aprovação” do projeto de lei. O próprio Donald Trump esteve no seu campo de golfe na Virgínia, no dia 28, com os senadores do Partido Republicano a fazerem publicações nas redes sociais, sobre a visita. Porém, ao cair da noite, Trump atacou os resistentes, ameaçando fazer campanha contra o senador republicano Thom Tillis, da Carolina do Norte, que anunciou não apoiar o projeto de lei, devido aos graves cortes no Medicaid que deixariam muitos sem cuidados de saúde, no seu estado. Tillis e o senador Rand Paul, do Kentucky, votaram contra. Trump fez vários telefonemas na Sala Oval, segundo pessoa familiarizada com as discussões, que falou sob anonimato.
A pressão estava a aumentar de todos os lados. E Elon Musk criticou o pacote, novamente, considerando-o “totalmente insano e destrutivo”.
O “New Big Beautiful Bill Act” foi publicado pouco antes da meia-noite do dia 27, esperando-se que os senadores debatessem e apresentassem emendas, durante a noite, nos dias subsequentes. Se o Senado o aprovasse, o projeto voltaria à Câmara para a última ronda de votações, antes de chegar à Casa Branca. Com as estreitas maiorias republicanas na Câmara e no Senado, os líderes precisaram da adesão de quase todos os congressistas. Segundo análise do CBO, que não é partidário, o projeto de lei aumentará, em 11,8 milhões, o número de pessoas sem seguro de saúde até 2034.
O líder democrata no Senado, Chuck Schumer, de Nova Iorque, afirmou que os republicanos revelaram o projeto de lei, “na calada da noite”, e que se apressavam a terminá-lo, antes de se tornar o público o seu conteúdo. Por isso, forçou a imediata leitura integral do texto no Senado, o que demorou horas.
A sessão do fim de semana foi um momento decisivo para o partido de Trump, que investiu muito do seu capital político no seu plano de política interna, pelo que pressionou o Congresso para que o concluísse e admoestou os “grandstanders” entre os resistentes do Partido Republicano para que se alinhassem.
A legislação é uma série ambiciosa mas complicada de prioridades do Partido Republicano. No essencial, tornaria permanentes muitos dos benefícios fiscais do primeiro mandato de Trump que, de outro modo, expirariam no final do ano, se o Congresso não atuasse, resultando num potencial aumento de impostos para os Americanos. O projeto de lei acrescenta novos benefícios, incluindo a não tributação das gorjetas, e afeta 350 mil milhões de dólares à segurança nacional, incluindo à agenda de deportações em massa. Todavia, os cortes no Medicaid, nas senhas de alimentação e nos investimentos em energia verde, que um dos principais democratas, o senador Ron Wyden, do Oregon, disse que seria “sentença de morte” para as indústrias eólica e solar dos EUA, causaram dissidência nas fileiras do Partido Republicano.
Entretanto, Mike Johnson, presidente da Câmara dos Representantes, mandou os colegas para casa, no fim de semana, com planos para estarem prontos para regressarem a Washington.
No entanto, a 1 de julho, os republicanos do Senado aprovaram o projeto de lei do presidente dos EUA, relativo a reduções fiscais e a cortes na despesa, por margem estreita, superando a oposição dos democratas e das suas próprias fileiras, após turbulenta sessão noturna.
O resultado repentino pôs fim a um fim de semana de trabalho invulgarmente tenso no Capitólio, com a prioridade legislativa do presidente a oscilar entre a aprovação e o colapso. Porém, não se esperava que os republicanos, que que detêm a maioria no congresso, vissem a dificuldade de aprovação do projeto de lei a diminuir. No final, a contagem dos senadores foi de 50-50, com o vice-presidente James David Vance a dar o voto de desempate. E três senadores republicanos – Thom Tillis, da Carolina do Norte, Susan Collins, do Maine, e Rand Paul, do Kentucky – juntaram-se a todos os democratas e votaram contra.
O pacote regressou à Câmara de Representantes, onde o seu presidente avisou os senadores para não alterarem o que a já tinha sido aprovado. Com efeito, o Senado fez alterações, em particular, no âmbito do Medicaid, o que pode causar mais problemas.
O líder da maioria no Senado, John Thune, do Dakota do Sul, trabalhou 24 horas por dia, procurando, desesperadamente, acordos de última hora entre os membros do seu partido, preocupados com o facto de as reduções do Medicaid deixarem mais milhões de pessoas sem cuidados de saúde, e o seu flanco mais conservador, que pretende reduções ainda mais acentuadas, para conter os défices que aumentaram com as reduções fiscais.
“No final, conseguimos fazer o trabalho”, afirmou Thune.

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Depois de aprovado o projeto, o arcebispo do ordinariado militar dos EUA, Timothy Broglio, presidente da Conferência dos Bispos Católicos dos EUA (USCCB), emitiu declaração a lamentar “o grande dano que o projeto de lei causará a muitos dos mais vulneráveis ​​da sociedade”. E criticou os “cortes inaceitáveis ​​em assistência médica e alimentar, cortes de impostos que aumentam a desigualdade, disposições sobre imigração, que prejudicam famílias e crianças, e cortes em programas que protegem a criação de Deus”.
A declaração também critica o facto de terem sido reduzidos ou removidos, na versão final, vários “aspetos positivos” do projeto de lei como a redução dos recursos federais para a Planned Parenthood, por apenas uma ano, em vez de dez, o enfraquecimento das disposições sobre a escolha educacional pelos pais e a eliminação das restrições ao uso de verbas federais para os procedimentos médicos de redesignação sexual.
“Redesignação sexual” designa um conjunto de procedimentos médicos usados para quem se identifique com o sexo oposto. Pode incluir a administração de hormonas que alteram caraterísticas sexuais secundárias, como quantidade de pelos no corpo e tom de voz, e cirurgias cosméticas, para imitar os órgãos sexuais do sexo com que a pessoa passa a identificar-se.    
Ante esta situação, Timothy Broglio diz que “a doutrina da Igreja Católica de defender a dignidade humana e o bem comum nos obriga a redobrar os nossos esforços e oferecer ajuda concreta aos que estarão em maior necessidade e continuar a defender esforços legislativos que proporcionarão melhores possibilidades, no futuro, para os necessitados”.
Antes da aprovação da medida na Câmara e no Senado, a USCCB havia delineado preocupações com vários aspetos do projeto de lei, como as disposições fiscais, o aumento da fiscalização da imigração e redução dos programas de segurança e de programas ambientais e de energia verde.
Contudo, Marjorie Dannenfelser, presidente do grupo pró-vida Susan B. Anthony Pro-Life America, disse à CNA que a lei “representa uma vitória histórica numa prioridade crítica: acabar com o financiamento forçado do setor do aborto pelos contribuintes”. Com efeito, o projeto de lei suspende, por um ano, o financiamento público, por meio do Medicaid, de provedores de serviços de aborto, como a Planned Parenthood. E, embora o projeto original propusesse a suspensão de dez anos no financiamento, Dannenfelser considera a pausa de um ano de “a maior vitória pró-vida, desde a decisão Dobbs”.
“Isso salvará vidas e retirará cerca de 500 milhões de dólares dos cofres do Big Abortion”, disse ela, referindo-se à indústria do aborto com expressão calcada em Big-Pharma, setor da indústria farmacêutica dos EUA e vincando: “Combinado com a decisão do Supremo Tribunal, na semana anterior, que autorizou os Estados a fazerem o mesmo, isso representa um tremendo progresso em direção a uma meta de décadas que se mostrou fugidio, por muito tempo.”
Paralelamente ao projeto de lei em referência, é de relevar que a casa Branca está a divulgar o seu plano de deportar um milhão de imigrantes não autorizados, por ano, graças aos mais de 150 biliões de dólares em financiamento para segurança de fronteira e para deportação, com a expansão da capacidade de detenção do Serviço de Imigração e Alfândega dos EUA (ICE) em 100 mil leitos, a contratação de cerca de 10 mil novos agentes do ICE e a conclusão da construção de um muro na fronteira.
Por isso, o arcebispo de Washington D.C, cardeal Robert McElroy, em declarações à rede de televisão norte-americana CNN, pouco antes da aprovação do projeto de lei, chamou as políticas de deportação de “moralmente repugnantes” e “desumanas”.
Embora reconheça o direito de o governo deportar condenados por crimes graves, sustenta que o problema maior é a falha do sistema político dos EUA em reformar as leis de imigração e que a remoção, pelo governo, de proteções contra prisões em áreas sensíveis, como igrejas, gerou medo, com alguns imigrantes evitando cultos religiosos.
“Todos concordamos que não queremos imigrantes indocumentados, terroristas ou criminosos violentos conhecidos, nas nossas comunidades, mas não há necessidade de o governo implementar medidas de repressão que provoquem medo e ansiedade entre imigrantes comuns e trabalhadores e as suas famílias”, disse o arcebispo de Los Angeles, José Gómez, depois de protestos contra o ICE, em Los Angeles.
Segundo recente pesquisa da Universidade Quinnipiac, em Connecticut, 64% dos eleitores dizem preferir dar à maioria dos imigrantes ilegais, nos EUA, uma via para o status legal, contra 31% que dizem preferir deportar a maioria deles.

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Enfim, os EUA têm, agora uma lei orçamental sustentada numa tangencial maioria política, mas com a oposição de uma grande maioria sociologia. Pobre de quem fica para trás!

2025.07.04 – Louro de Carvalho

Faleceu o militar de Abril cuja luta contra a corrupção foi freada

 
Faleceu, a 4 de julho, aos 89 anos, na sua casa, em Lisboa, o general Amadeu Garcia dos Santos, responsável pelas transmissões no golpe de 25 de Abril e que denunciou a corrupção na Junta Autónomas das Estradas (JAE), antecessora da Infraestruturas de Portugal (IP).
Há quem lhe recuse o epiteto de “capitão de Abril”, por já ser, ao tempo, tenente-coronel, com 38 anos. Ora, “capitães de Abril” são os militares que tiveram participação ativa na organização e funções de comando no golpe militar que iniciou a Revolução dos Cravos, bem como os que não participaram ativamente, só porque o poder instituído os transferira para zonas do território nacional onde a participação era impossível, mas que estavam de alma e coração com o programa político-militar do Movimento das Forças Armadas (MFA). Assim, não se nega tal epíteto, por exemplo, a Otelo Saraiva de Carvalho, a Ramalho Eanes ou a Vasco Lourenço.
Garcia dos Santos foi um dos mais determinantes militares de Abril, responsável por montar a operação de transmissões a partir do Quartel da Pontinha, o que permitiu o sucesso do golpe militar. Mais tarde, foi chefe da Casa Militar de Ramalho Eanes, no seu primeiro mandato, chefe de Estado-Maior do Exército (CEME) e, no final da década de 1990, presidente da JAE, porque o primeiro-ministro, António Guterres, queria alguém íntegro para pôr ordem na casa.
Não se sabe se o 25 de Abril seria bem-sucedido sem a intervenção do tenente-coronel Garcia dos Santos, mas o certo é que a sua intervenção foi absolutamente decisiva para o seu sucesso, pois foi o autor do “anexo de transmissões” ao plano geral das operações delineado e comandado pelo major Otelo Saraiva de Carvalho, que declarou, mais tarde, que tal plano de comunicações se constituiu em a “voz e os ouvidos” do 25 de Abril.
Toda a estrutura de transmissões que permitiu aos revoltosos intercetarem as comunicações das forças inimigas – Guarda Nacional Republicana (GNR), Legião Portuguesa (LP), Direção- Geral de Segurança / Polícia Internacional de Defesa do Estado (DGS/PIDE) e Polícia de Segurança pública (PSP) – foi montada em menos de 24 horas, tendo sido instaladas escutas telefónicas permanentes ao ministro e ao subsecretário de Estado do Exército, ao CEME e ao ministro da Defesa. E, nas noites de 22 e 23 de abril, foi executada uma operação clandestina para instalar um cabo telefónico aéreo de quatro quilómetros a ligar a central telefónica do Exército ao Regimento de Engenharia n.º 1, na Pontinha, onde, a partir da noite de 24 de abril, se instalou o Posto de Comando (PC) do MFA.
A operação foi concretizada pelo capitão Fialho da Rosa, contando com os capitães Veríssimo da Cruz e Madeira. Uns vinte soldados – que só sabiam que estavam a executar uma “missão muito importante” – estenderam o cabo, dirigidos pelo furriel Carlos Cedoura. E esta constituiu a primeira operação no terreno do golpe que pôs fim a 48 anos de ditadura. 
Montada toda a estrutura de transmissões e de escutas, reuniu-se, às 22h00 de 24 de abril no Regimento de Engenharia n.º 1, na Pontinha, em Lisboa, o PC do MFA, tendo Garcia dos Santos integrado o reduzido grupo de militares que, a partir dali, comandou as operações que levaram à queda do regime. Desse grupo já só continua vivo o então major do Exército Sanches Osório. Todos os restantes – Otelo, Garcia dos Santos, Vítor Crespo, Fisher Lopes Pires, Luís Macedo e Hugo dos Santos – já faleceram.
Pelas 3h30 de 25 de abril, com as tropas sublevadas em movimento, Otelo percebia que estava a funcionar, a 100%, a estrutura de comunicações delineada por Garcia dos Santos, pois ouviu uma conversa telefónica em que o ministro da Defesa, Silva Cunha, sugeria ao ministro do Exército, general Andrade e Silva, que não fosse, naquela manhã, visitar quartéis no Alentejo, porque as tropas estavam muito agitadas”. Silva Cunha parecia ter percebido que algo se passava.
Pouco depois das 4h00, Joaquim Furtado leu, na Rádio Clube Português (RCP), o primeiro comunicado do MFA. Cerca de uma hora depois, Otelo escutou outra comunicação fundamental, em que o diretor da PIDE/DGS, Silva Pais, dizia ao chefe do governo, Marcelo Caetano, que saísse de casa e se protegesse no quartel da GNR do Largo do Carmo, que veio a ser cercado pelas tropas do capitão Salgueiro Maia e onde, horas depois, se entregaria ao general Spínola.
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Amadeu Garcia dos Santos nasceu a 13 de agosto de 1935, no Bairro Alto, em Lisboa. Estudou no Colégio Caliponense e no Liceu Passos Manuel. Em 1960, completou o curso de Engenharia da Escola do Exército, cumprindo, depois, duas comissões na Guerra Colonial: na Guiné, de 1962 a 1964, e em Angola, de 1968 a 1970.
Enquanto professor na Academia Militar (AM), foi contactado por Fisher Lopes Pires para se ocupar das transmissões no golpe de estado que estava em planeamento. Após a decisão de se passar para a ação armada, Otelo Saraiva de Carvalho entrou em contacto com Garcia dos Santos para lhe propor a parte das transmissões. A partir da ordem de operações de Otelo, Garcia dos Santos delineou as transmissões e, no dia 24 de abril, andou a montar as transmissões no Quartel da Pontinha com rádios que tinha retirado do depósito do material de transmissões.
Também participou, ao lado dos moderados e de Ramalho Eanes, na contenção do golpe de 25 de Novembro, que levou ao fim do Processo Revolucionário em Curso (PREC). E passou a integrar o Conselho da Revolução (CR).
Entretanto, entre 1974 e 1975, foi secretário de Estado das Obras Públicas no II, III e IV governos provisórios, liderados por Vasco Gonçalves, e, entre 1975 e 1976, no VI governo provisório, liderado por José Pinheiro de Azevedo.
Foi chefe da Casa Militar do Presidente da República, general António dos Santos Ramalho Eanes. Entre 1982 e 1983, foi o CEME, tendo sido exonerado pelo presidente da República, sob proposta do primeiro-ministro Mário Soares. Apesar da oposição de Ramalho Eanes, Mário Soares alegou razões políticas para propor a exoneração de Garcia dos Santos, que Ramalho Eanes aceitou. Segundo Garcia dos Santos, a exoneração coroou a manifestação de um conflito entre o Presidente da República e o primeiro-ministro, e que levou Ramalho Eanes a decidir, contra a vontade de Mário Soares, dissolver a Assembleia da República (AR) e a convocar as eleições legislativas intercalares, em 1979, após a rutura do acordo entre o partido Socialista (PS) e o partido do Centro Democrático Social (CDS), que sustentava o II governo constitucional, e depois de dois governos de iniciativa presidencial de curta duração (um viu o seu programa rejeitado na AR), a que se seguiu um terceiro para preparar as eleições e gerir os negócios do Estado.  
O seu último cargo público foi, entre 1997 e 1998, o de presidente da JAE, no tempo do governo de António Guterres. Apresentou a demissão, em 1998, por discordância de João Cravinho, ministro do Equipamento, Planeamento e Administração do Território, relativamente às nomeações para completar o conselho de administração da JAE. Como presidente da JAE, o general exigiu a expulsão de um grupo de funcionários da JAE, nomeadamente, o administrador da JAE SA, Donas Botto, ao ministro, que aceitou, inicialmente, mas recuou. E João Cravinho referiu que o general nunca lhe expôs qualquer situação de corrupção na JAE, confirmando que o conflito entre Garcia dos Santos e Donas Botto esteve na origem da demissão do general.
Após entrevista de Garcia dos Santos ao Expresso, em outubro de 1998, três meses depois de se ter demitido da presidência da JAE, denunciou o caso da JAE, tendo assinalado, em 1998, a existência de profundo problema de corrupção naquele organismo, que incluía a passagem de dinheiro para o PS. O general denunciou um caso de corrupção na JAE, na Guarda, e o então procurador-geral da República, José Cunha Rodrigues, assegurou que um relatório da Inspeção-Geral de Finanças (IGF), cobrindo o período entre 1992 e 1994, desmentia a existência de corrupção na JAE. Porém, em carta a Garcia dos Santos, o ministro das Finanças, António de Sousa Franco, confirmou saber dos problemas de corrupção na JAE e quem eram as pessoas envolvidas. Ainda em outubro de 1998, foi publicado um relatório da IGF, dando conta de que haviam saído da JAE mais de 650 mil contos (3,25 milhões de euros), sem qualquer controlo.
Cunha Rodrigues recuou na sua posição inicial e o Ministério Público (MP) iniciou investigação a todos os processos da JAE. O ministro João Cravinho ordenou também uma sindicância à JAE. Foi constituída uma comissão parlamentar de inquérito (CPI) para averiguar o caso, à qual Garcia dos Santos compareceu, mas recusando revelar à AR o nome dos empreiteiros implicados na corrupção na JAE, alegando não possuir provas e que, se revelasse os nomes, arriscaria processos judiciais por difamação, além de nenhum dos empreiteiros ter autorizado que fosse divulgado o seu nome, publicamente.
A CPI solicitou então ao presidente da Assembleia da República que participasse a prestação de Garcia dos Santos na AR à Procuradoria-Geral da República (PGR), tendo Garcia dos Santos sido acusado de desobediência qualificada pelo MP e condenado, em maio de 2001, ao pagamento de multa no valor atual de 670 euros pelo Tribunal Criminal de Lisboa (TCL), a pena mínima pedida pelo MP, por não ter antecedentes criminais. E o ministro João Cravinho ordenou a extinção da JAE, em 1999, e as conclusões da sindicância à JAE foram entregues à PGR, de que resultou um processo com 19 arguidos pelos crimes de participação económica em negócio, corrupção ativa para ato lícito, corrupção passiva para ato lícito, burla agravada, peculato, falsificação de documento autêntico e recetação, entre os quais constava o último ministro das Obras Públicas, Transportes e Comunicações, dos governos de Cavaco Silva, e o seu secretário de Estado das Obras Públicas. No entanto, em maio de 2000, o processo acabou arquivado por falta de provas.
Em junho de 2009, um relatório do Tribunal de Contas (TdC) concluiu que, “se a gestão da JAE fosse eficaz, as estradas teriam custado menos 44%”. Em reação a tudo isto, Garcia dos Santos lamentou ter sido o único condenado, e não os responsáveis pela má gestão da JAE, e apontou especiais responsabilidades ao ministro João Cravinho, ao seu antecessor na presidência da JAE, Maranha das Neves, a quem acusou de, enquanto presidente do Laboratório Nacional de Engenharia Civil (LNEC), ter sido alvo de um processo de corrupção desaparecido da Polícia Judiciária (PJ), e ao seu sucessor na presidência da JAE, António Lamas, de quem disse: “Não sabe gerir, nunca geriu nada na vida, e de estradas não sabe rigorosamente nada.” E considerou que o então ministro das Finanças, Sousa Franco, tinha sido “cobarde”, por ter escrito uma carta a corroborar as acusações do general, sem assumir, depois, as responsabilidades.
Garcia dos Santos acusou António Guterres e Cunha Rodrigues, de não terem dado ouvidos às suas denúncias, bem como os deputados da AR presentes na sua audição na CPI, atirando que “os deputados não têm palavra, não têm noção da honestidade, nem da honradez”. E sustentou que o financiamento partidário ilícito, “por muitas leis que se façam, continuará a existir por debaixo da mesa”.
De facto, muita gente diz querer combater a corrupção, mas, na hora da verdade, todos se encolhem, até parecendo que ninguém quer a sério este combate. Entretanto, João Cravinho passa à História como o paladino do combate à corrupção, que também foi pouco ouvido.
Garcia dos Santos foi membro do Conselho das Ordens Nacionais durante a presidência de Aníbal Cavaco Silva, tendo apresentado a demissão do cargo em 2014, após classificar, num almoço da Associação 25 de Abril comemorativo do 40.º aniversário da Revolução dos Cravos, o presidente Aníbal Cavaco Silva como “o principal culpado pela atual situação do país”, por não ter obrigado a um entendimento entre os partidos políticos para a formação de um governo após as eleições legislativas de 2009, das quais não resultou maioria absoluta de nenhum partido.
Em 2023, o general explicou, em entrevista ao Público, como contactou com o MFA. Havia um grupo chamado “Movimento dos Capitães “, que fazia reuniões e discutia os problemas. Um dia, perguntaram-lhe se queria participar numa dessas reuniões. Respondeu que o faria com muito gosto e prazer. Começou a assistir às reuniões, em que se discutia o seu estatuto político e militar.
E, sobre a JAE, referiu que os “problemas passavam pela forma como se lançavam e realizavam as obras” e que a corrupção se sentia “através de projetos mal feitos e mal conduzidos”, o que se “fazia propositadamente, para que determinada empresa ganhasse, sabendo onde está o erro no anteprojeto”.
***
De acordo com o Exército, o velório de Garcia dos Santos está agendo para o dia 6, entre as 16h00 e as 23h00, na capela da AM, em Lisboa, com retoma no  dia 7, às 10h00, seguindo-se missa de corpo presente, pelas 11h00, e cortejo fúnebre para o Cemitério do Alto de São João, com cremação do corpo às 13h00.
Em nota, o Exército diz que o ramo “está de luto, por ter deixado de contar com um dos seus mais notáveis soldados”, justificando a sua vida e o seu legado “um profundo reconhecimento e perene respeito pela sua memória, constituindo fator de motivação e [de] orgulho para todos os que servem nesta secular instituição”.
Também o Presidente da República declarou, em comunicado, ter recebido, “com enorme tristeza”, a notícia do falecimento do general. Segundo o chefe de Estado,  Garcia dos Santos “constituiu-se como uma das figuras fundamentais do 25 de Abril”, tendo servido, “dedicadamente”, a instituição militar. “Portugal perdeu uma referência do momento inicial e do avanço para a consolidação do 25 de Abril e da então democracia nascente”, considerou o Presidente da República.
Pessoalmente, habituei-me a olhar este homem com respeito e admiração. Na segunda parte do meu tempo do serviço militar obrigatório (SMO), o nosso general Garcia dos Santos era o CEME. Ouviu-me com muita atenção e dissipou a dúvida que surgiu sobre a data do términus da minha prestação, pois eu não queria perder direitos conexos com a minha profissão docente, o que não aconteceria se, apenas, me mantivesse ao serviço no estrito tempo do SMO. Mais tarde, num encontro que tive com ele, como presidente da JAE, reconheceu-me pela voz.
Aqui lhe deixo também o preito de homenagem como chefe militar de notável andragogia e como político que denunciou a corrupção.

2025.07.04 – Louro de Carvalho


Marchas do Orgulho e marchas da Humildade

 
 
No âmbito do mês de junho como o Mês do Orgulho, centenas de milhares de pessoas desfilaram, no dia 28, em Budapeste, na Hungria, na marcha do Orgulho (o Pride), organizada pela ONG Rainbow Mission e pela Câmara Municipal, apesar da proibição do governo. Estava em causa a defesa dos direitos da comunidade LGBTQIA+ e a liberdade de reunião contra as políticas de Viktor Orbán. O evento decorreu sem incidentes, com pouca intervenção policial e com os contramanifestantes mantidos afastados.
Em março, o parlamento e o governo húngaros tentaram proibir esta marcha anual regular, que foi só mais uma das várias cidades do Mundo, em especial, da Europa. Para tanto, os deputados favoráveis ao executivo aprovaram várias alterações constitucionais e legislativas, alegando que a marcha viola os direitos das crianças, que, doravante, se sobrepõem a outros direitos fundamentais. A polícia rejeitou o pedido de autorização das organizações não-governamentais (ONG) que habitualmente organizavam o Pride, mas Gergely Karácsny, presidente da Câmara Municipal de Budapeste, anunciou que seria realizado outro evento como municipal, porque o município não está sujeito à lei da reunião, pelo que, de acordo com a sua interpretação da lei, não precisa de autorização para realizar o evento. A polícia considerou o evento ilegal e avisou que os participantes poderiam ser multados e os organizadores condenados a um ano de prisão. Não obstante, compareceu grande multidão.
“Se não falarmos, agora, podemos nunca mais ter a oportunidade de o fazer, de novo”, dizia um participante. “Não nos envolvemos em política, só queremos ser livres e é assim que podemos ser livres, saindo à rua e defendendo-nos”, disse um jovem casal de homens.
Antes do evento, havia preocupação por a polícia ter permitido contramanifestações de grupos de extrema-direita no percurso da marcha, mas as autoridades separaram-nos dos participantes no Pride e a sua presença não causou perturbação. Apesar de os contramanifestantes do grupo Nossa Pátria terem bloqueado a Ponte da Liberdade, no percurso original, foram cercados pela polícia de ambos os lados, enquanto os participantes no Pride atravessavam a Ponte Erzsébet. “O que está a acontecer, aqui, é completamente ilegal, está a pôr em perigo o desenvolvimento saudável das crianças e acho muito triste que a polícia não esteja a parar este processo. […] Enquanto as organizações radicais nacionais têm sido restringidas nas suas manifestações, como têm sido, há muitos anos, os manifestantes do Nossa Pátria não têm sido autorizados a atravessar a Ponte da Liberdade”, dizia Tamás Gaudi-Nagy, diretor executivo do Serviço Nacional de Defesa Legal.
Já o presidente da Câmara Municipal, ameaçado de prisão pelo Ministro da Justiça húngaro, afirmou, no seu discurso: “Se podem proibir um evento Pride num estado-membro da União Europeia [UE], então nenhum presidente de câmara na Europa está seguro. E, hoje, ao virdes tantos de vós, fizestes de Budapeste a capital da Europa por este dia.”
Gergely Karácsony afirmou que os participantes “mostraram força, face ao poder”, e criticou Péter Magyar, líder do Tisza, o maior partido da oposição, que não participou na marcha e só publicou uma cautelosa mensagem de apoio nas redes sociais, sem explicitar o evento.
Segundo a polícia, a quem Gergely Karácsony agradeceu, até às 20 horas, foram detidas 36 pessoas e só duas ficaram presas – uma, por hooliganismo, e outra, por posse de drogas – o que mostra que o Budapest Pride terminou, praticamente, sem incidentes.
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Hadja Lahbib, Comissária Europeia para a Igualdade, e 70 eurodeputados foram à Hungria, para protestarem contra a proibição da marcha do Orgulho, mas o líder da oposição não se juntou aos manifestantes, que marchavam (chegaram a estar na rua 200 mil), agitando bandeiras do arco-íris e da UE. Os eurodeputados eram, maioritariamente, do grupo liberal Renew Europe, dos Socialistas e Democratas, da Esquerda e dos Verdes, aos quais se juntou Maria Walsh, eurodeputada irlandesa do Partido Popular Europeu (PPE). E, de Portugal, estiveram presentes as eurodeputadas Catarina Martins (BE) e Ana Catarina Mendes (PS).
Maria Walsh declarou que “não se trata de colocar partidos uns contra os outros, mas de seres humanos que se manifestam por outros”. E a francesa Emma Rafowicz, eurodeputada socialista, acusou o PPE de estar, desde o início da legislatura, “a oscilar entre as forças democráticas e a extrema-direita”, não percebendo “quem são os seus adversários”.
O Tisza, partido de centro-direita, cujo líder é o eurodeputado e chefe da oposição húngara, Péter Magyar, está à frente do Fidesz, partido governamental, nas sondagens para as eleições legislativas de 2026. E Magyar não esteve em Budapeste, evitando tomar posição sobre a questão da Marcha do Orgulho, que divide as opiniões no país, com 47% dos Húngaros a oporem-se à sua realização. Porém, no início do dia, apelou a protesto pacífico. “Peço a todos que não caiam em nenhuma provocação. Se alguém se magoar, hoje, em Budapeste, se alguém se magoar, Viktor Orbán será o único responsável”, publicou, nas suas plataformas sociais.
A comissária europeia para a Igualdade reuniu-se com organizações da sociedade civil local, no dia anterior, mas não compareceu na marcha, alegando que iria participar em reuniões na cidade.
Segundo a lei aprovada em março, é proibida qualquer representação de relações entre pessoas do mesmo sexo para menores, norma que o evento poderia violar. Porém, a Comissão Europeia, sustentando que se trata de violação do seu direito comunitário e remeteu o caso para o Tribunal de Justiça Europeu (TJUE). E os eurodeputados conservadores e de extrema-direita defendem o governo, afirmando que a UE não deve interferir nos assuntos internos da Hungria. No entanto, o presidente da Câmara de Budapeste, do partido dos Verdes, permitiu o desfile, reetiquetando-o de celebração do “Dia da Liberdade”, oficialmente organizado pela edilidade.
Esta lacuna legal permitiu que milhares de pessoas marchassem pelas ruas de Budapeste sob um calor sufocante, protestando contra a proibição do Pride e contra o governo de Viktor Orban em geral. Além das bandeiras LGBTQIA+ e da música alta, havia cartazes com a imagem do primeiro-ministro. A segurança foi apertada, com câmaras de segurança instaladas em postes de iluminação no centro da cidade e centenas de polícias colocados em pontos-chave do desfile, vigiando os manifestantes e assegurando que não houvesse confrontos.
Os participantes foram avisados pelo Ministério da Justiça húngaro de que os organizadores do desfile corriam o risco de serem condenados a até um ano de prisão e que os participantes poderiam ser multados em 500 euros. A polícia foi encorajada pelo governo a utilizar tecnologia de reconhecimento facial para identificar os participantes, embora Karácsony insista que ninguém será punido pela sua participação no desfile.
Por sua vez, o grupo nacionalista “Movimento da Juventude dos 64 Condados” organizou um evento permitido pelas autoridades, na mesma praça de Budapeste onde os participantes no Pride se reuniram, mais tarde. E o Movimento Nossa Pátria, pequeno partido parlamentar de extrema-direita, organizou uma contramarcha aprovada pela polícia, ao longo do mesmo percurso do Pride. Porém, durante o dia, o protesto da extrema-direita foi bloqueado por forte presença policial para evitar conflitos. E, ao fim do dia, não se registaram incidentes de maior, embora se tenha registado um confronto entre um pequeno grupo do “Movimento Juvenil dos 64 Condados” – que segurava uma faixa a comparar as pessoas LGBTQIA+ a pedófilos – e a Marcha do Orgulho. Também outro manifestante antipride tentou parar a marcha, pondo-se em frente ao camião que liderava o desfile, mas foi gozado pela multidão e retirado pela polícia.
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Paralelamente, um movimento de jovens católicos filipinos organizou “marchas da humildade”, no mês de junho, com procissões eucarísticas e com atos públicos de reparação ao Coração de Jesus, em cidades importantes por todo o país, em alternativa espiritual às celebrações do “mês do orgulho” LGBTQIA+.
O movimento foi iniciado pela jovem filipina Raven Castañeda, triste com o que viu no campus da sua universidade jesuíta. “Comecei a marcha Humilitas por causa de uma inspiração que recebi um dia”, disse a estudante universitária que fundou o movimento, que relatou: “Em junho de 2023, caminhava pelo campus da minha universidade, quando vi uma multidão a promover o vício do orgulho, agitando bandeiras numa universidade dedicada a Nossa Senhora. Então, senti profunda dor no coração, porque não entendia como era possível a universidade católica permitir um evento que promove o vício e promove uma ideologia contrária às verdades da nossa fé.”
Então foi à capela rezar diante do Santíssimo Sacramento. Lá, Raven e alguns amigos restauraram a devoção da hora santa no campus da faculdade, após terem sido informados de que não se fazia, há cerca de 20 anos. Porém, depararam com uma capela vazia. Raven ajoelhou-se e rezou a consolar Cristo, naquela hora sombria. E sentiu-se movida a promover o Sagrado Coração de Jesus. Fez a Deus o voto de que, no ano seguinte, com a ajuda da sua graça, agitaria a bandeira do seu Humilde e Sacratíssimo Coração, para lembrar às pessoas que nesse Coração está o Amor que salva, que nos salva da nossa miséria, “o amor que nos dá a paz que o Mundo não pode dar; o amor que pode nos proporcionar a alegria e a bem-aventurança que o Mundo nem sequer começa a compreender”.
Raven Castañeda e outros voluntários foram de porta em porta, em diferentes paróquias, a convidar pessoas a participarem na marcha. Centenas de fiéis, na maioria, jovens, compareceram. Organizações, como Famílias Missionárias de Cristo, Solteiros por Cristo, Jovens por Cristo, Filipinas Pró-Vida, Movimento Social Conservador das Filipinas, The Sentinel Philippines, Conservadores das Filipinas, juntaram-se às marchas, além de padres e religiosos.
As Filipinas têm a tradição de devoção ao Coração de Jesus, há muito tempo. A primeira consagração foi feita pelo presidente Ramon Magsaysay em 1956. E, em junho de 1995, o presidente Fidel Ramos, protestante, renovou-a, pessoalmente.
Uma ex-lésbica que participara em paradas do orgulho LGBTQIA+, juntou-se à Marcha da Humildade, neste ano, falou do seu estilo de vida, no passado: “Achava que tinha encontrado o amor e a identidade, mas, no fundo, sempre me senti perdida e incompleta.”
Viu, na missa, quando o padre elevava a hóstia sagrada, um “coração brilhante” de Jesus atrás do padre, visivelmente a estender-se na sua direção. Como protestante, não compreendia a presença real de Jesus Cristo na Eucaristia. Mas a experiência foi tão profunda que se sentiu fortemente atraída pela Igreja. “Daquela noite em diante, comecei a buscar. […] Li. Rezei mais. Visitei diferentes igrejas. A minha alma começou a ter fome”, confessou.
Por fim, após receber formação de um diretor espiritual, que descreveu como “oração atendida”, tornou-se católica. E, quando ouviu falar da Marcha da Humildade deste ano, lembrou-se de tudo e pensou que tinha de caminhar, “não para ser vista pelo Mundo, mas para caminhar para Aquele que primeiro me estendeu a mão”. “A marcha Humilitas não foi como a do orgulho. Não foi barulhenta, nem ostentosa. Não se tratava de ser adoração, mas de ser vista por Deus. Não foi um protesto, mas uma procissão”, disse.
Um rapaz confessou que lutava contra pecados sexuais, mas, às vezes, justificava-os, porque toda a gente os faz. Entretanto, percebeu o que é o orgulho. Segundo o jovem, o orgulho diz que fará as suas regras, redefinirá género, casamento e sexualidade como quiser, em vez de seguir a vontade e o plano de Deus para a sexualidade, ou seja, fazer a própria vontade, não a de Deus. Ao invés, a humildade submete-se ao senhorio de Jesus e obedece-Lhe. Se Ele é o Senhor deve ser seguido, mesmo que, às vezes, seja difícil.
O padre Joel Jason, conhecido pela promoção da Teologia do Corpo, de São João Paulo II, disse que a tática do diabo é sempre a mesma: “O orgulho dá lugar à rebelião e à revolta contra a Natureza e contra a criação. O orgulho diz: não sou criatura; sou o meu próprio criador. […] É o pecado original do primeiro homem e da primeira mulher que os separou de Deus”, diz o padre.
O movimento quer ser contramovimento silencioso e devoto de católicos a testemunhar, publicamente, a fé e a fazer reparação pelos pecados, numa sociedade que busca normalizar, glorificar e celebrar a imoralidade. “O objetivo da nossa iniciativa é, simplesmente, promover o Sagrado Coração de Jesus e encorajar os jovens filipinos a encontrar em seu Coração um refúgio para todos os seus problemas”, disse Nirva Dela Cruz, que organizou a marcha.
“Não podemos tornar-nos tão frios e indiferentes a esse Coração tão terno e transbordante de amor por nós. A nossa esperança é que o Sagrado Coração de Jesus seja consolado por esses atos de fé”, disse Christine May, devota do Coração de Jesus que compôs a canção-tema da marcha.
“Estamos a levar a nossa fé do santuário para as ruas, proclamando as palavras do próprio Jesus [ditas a santa Margarida Maria Alacoque]: Eis o coração que amou tanto os homens, que não poupou nada, até [ao ponto de] esgotar-Se e consumir-se [para testemunhar] o seu amor; [e] em troca, recebe da maior parte só ingratidão, pela sua irreverência e sacrilégio, e pela frieza e desprezo que Me [mostram] a Mim…”, disse Raven Castañeda.
Depois da marcha, centenas de jovens assinaram a declaração de compromisso que diz: “Somos a Igreja jovem das Filipinas. Estamos comprometidos a promover e a crescer, na devoção ao Sagrado Coração e à Eucaristia; a caminhar com os pobres, encontrando maneiras de servi-los e defender sua causa, pois, neles, vemos o Sagrado Coração; a construir uma sociedade onde a verdade reine e seja guiada pelas doutrinas de Cristo; e a evangelizar com ousadia, mesmo quando for desconfortável, fortalecendo comunidades formadas na fé católica verdadeira.”
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Todas as manifestações em referência são legítimas em democracia, pois correspondem a um direito fundamental, porém não podem alterar gravemente a ordem pública.
Todavia, embora os grupos minoritários devam ser protegidos e ter os seus direitos respeitados por todos, não têm, contudo, o direito de se imporem como modelo social, levando a uma certa ostracização dos demais. Os grupos políticos de extrema-direita não são combatíveis com as proibições ou com insultos, mas com o discurso democrático lúcido e com ações políticas que obviem aos falhanços económicos e sociais que eles denunciam.
Os cidadãos e cidadãs LGBTQIA+ não são só de esquerda, nem só de direita. E não derivam daí os crimes de pedofilia, como não resultam do celibatarismo. Por sua vez, os católicos têm o dever de aumentar e de manifestar a sua fé, também publicamente, pois não é habitante de sacristia, mas sem hostilizar os demais e sem dar azo a justas reclamações. Ninguém é dono exclusivo da Verdade, nem do Mundo: somos seus intérpretes e professamos a fraternidade.

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2025.07.03 – Louro de Carvalho