quarta-feira, 20 de novembro de 2024

“Dilexit nos” (“amou-nos”), a nova carta-encíclica do Papa Francisco

 

A Santa Sé publicou, a 24 de Outro, a nova carta-encíclica do Papa Francisco, sobre o Coração de Jesus. Sob o título “Dilexit nos”, que significa “Ele amou-nos”, o documento aborda o amor humano e divino de Jesus.

O texto, organizado em 220 númenos, consta de uma pequena introdução (n.º 1), cinco capítulos (do n.º 2 ao n.º 217) e uma pequena conclusão (n.os 218 a 220).

A introdução, que ocupa o n.º 1, reza: “ ‘Amou-nos’, diz São Paulo referindo-se a Cristo (Rm 8,37), para nos ajudar a descobrir que nada ‘será capaz de separar-nos’ desse amor (Rm 8,39). Paulo afirmava-o com firme certeza, porque o próprio Cristo tinha garantido aos seus discípulos: ‘Eu vos amei’ (Jo 15,9.12). Disse também: ‘Chamei-vos amigos’ (Jo 15,15). O seu coração aberto precede-nos e espera-nos incondicionalmente, sem exigir qualquer pré-requisito para nos amar e oferecer a sua amizade: Ele amou-nos primeiro (cf 1Jo 4,10). Graças a Jesus, ‘conhecemos o amor que Deus nos tem, pois cremos nele’.” É a sinalização do tom de todo o documento.

Os capítulos são: I – A importância do coração (n.os 2 a 31); II – Gestos, palavras e amor (n.os 32 a 47); III – Este é o coração que tanto amou (n.os 48 a 91); IV – Amor que dá de beber (n.os 92 a 163); V – Amor por amor (n.os 164 a 217).

A conclusão (n.os 217 a 220) faz a ligação do teor desta encíclica com o da Laudato si’ e com o da Fratelli tutti, pois, bebendo do amor de Cristo, “tornamo-nos capazes de tecer laços fraternos, de reconhecer a dignidade de cada ser humano e de cuidar juntos da nossa casa comum”.

O amor de Cristo liberta-nos da febre de que tudo se compra e se paga, não havendo lugar para o amor gratuito. E a Igreja precisa deste amor, “para não substituir o amor de Cristo por estruturas ultrapassadas, obsessões de outros tempos, adoração da própria mentalidade, fanatismos de todo o género que acabam por ocupar o lugar do amor gratuito de Deus que liberta, vivifica, alegra o coração e alimenta as comunidades”. Por fim, o Papa deseja que, para todos, do Coração do Senhor Jesus Cristo “brotem rios de água viva para curar as feridas que nos infligem, para reforçar a nossa capacidade de amar e servir, para nos impulsionar a aprender a caminhar juntos em direção a um Mundo justo, solidário e fraterno” – até que celebremos, com alegria, unidos, o banquete do Reino, onde Cristo ressuscitado harmonizará “todas as nossas diferenças com a luz que brota incessantemente do seu Coração aberto”. E exclama: “Bendito seja!”

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O coração é o cerne da pessoa humana e o Mundo perdeu o seu coração. Parece óbvio, mas o Papa sustenta que precisamos de ouvir: neste período da civilizacional, estamos sob séria ameaça de perder o coração ou já o perdemos e precisamos de o recuperar. O coração revela quem somos (n.º 6), pois é “a morada do amor em todas as suas dimensões espirituais, psíquicas e até físicas” (n.º 21), “um núcleo que se esconde por trás de todas as aparências exteriores, mesmo por trás dos pensamentos superficiais que nos podem desviar” (n.º 4). No grego clássico profano, o termo kardía designa a parte mais íntima do ser humano, do animal e da planta. Em Homero, indica o centro corpóreo e a alma, o centro espiritual do ser humano. Na Ilíada, o pensamento e o sentimento, muito próximos um do outro, pertencem ao coração. O coração aparece como o centro do desejo e o lugar onde são forjadas as decisões importantes duma pessoa. Em Platão, o coração assume, de certa forma, uma função “sintetizante” do que é racional e das tendências de cada pessoa, pois tanto o comando das faculdades superiores como as paixões se transmitem através das veias que convergem no coração. Assim, desde a Antiguidade, advertimos a importância de considerar o ser humano não como soma de diferentes capacidades, mas como um complexo anímico-corpóreo com um centro unificador que dá a tudo o que a pessoa experimenta um substrato de sentido e orientação.

As nossas perguntas existenciais mais profundas podem ter resposta numa única e fundamental pergunta: “Eu tenho um coração?” (n.º 23). As questões que nos ocupam profundamente e nos permitem dar sentido à vida são ponderadas e mantidas no coração, tal como Maria que, segundo São Lucas, prezava e ponderava todas as coisas em seu coração (n.º 19).

O coração, além da sede da “profunda emoção” (n. 16), onde descobrimos quem somos, é também o lugar onde nasce o amor: o amor incondicional de Deus por nós, de que flui a nossa capacidade de amar os outros. No nosso coração, descobrimos o fogo ardente dessa capacidade, permitindo-nos “tornar-nos, de forma completa e luminosa, as pessoas que devemos ser, pois todo o ser humano é criado, acima de tudo, para o amor: fomos feitos para amar e ser amados” (n.º 21). E é nesta descoberta do amor de Deus por nós, na profundidade e unidade do nosso ser, que aprendemos a amar os outros, que é a essência do seguimento de Cristo. O conhecimento de que Jesus morreu por nós “torna-se afeição, amor” (n.º 27). E Francisco está convicto de que este é o coração que precisamos de recuperar, se quisermos curar o nosso próprio coração. “O amor de Cristo pode dar um coração ao nosso Mundo e reavivar o amor onde quer que pensemos que a capacidade de amar foi definitivamente perdida” (n.º 218).

A importância do afeto, não apenas do intelecto. Na abertura da encíclica, Francisco põe em contraste a complexa riqueza do coração com “o domínio mais facilmente controlável da inteligência e da vontade”. Embora muitos possam retirar-se para espaços aparentemente mais seguros, isso resulta em “atrofiamento da ideia de um centro pessoal, no qual o amor, no fim, é a única realidade que pode unificar todas as outras” (n.º 10).

Francisco critica a mentalidade excessivamente racionalista ou tecnocrática, atitude que tem sido marca do seu pontificado. E adverte que os nossos pensamentos e vontades, distintos dos nossos corações, são “facilmente previsíveis e, portanto, capazes de serem manipulados”, inclusive por algoritmos digitais que nos alimentam com informações personalizadas (n.º 14).

Para corrigir a dependência excessiva da clareza conceitual que pode parecer transmitir a verdade sem resultar em conversão profunda, ou transformar-se num “moralismo autossuficiente” (n.º 27), o Papa vinca a atenção de Santo Inácio de Loyola à “afeição”, dizendo que a reforma da vida não se estriba em “conceitos intelectuais que precisam de ser colocados em prática na vida diária, como se a afetividade e a prática fossem meramente efeitos de – e dependentes de – dados do conhecimento” (n.º 24). O capítulo 2 é lido quase como um minirretiro, no estilo inaciano, visando a conversão e a ordenação da afetividade, fazendo eco do afloramento de Francisco, em Fratelli Tutti, à reflexão sobre a parábola do Bom Samaritano como princípio organizador duma encíclica. Citando 38 passagens bíblicas nos 16 parágrafos do capítulo, o Papa convida-nos a experimentar o desejo e o cuidado do coração de Jesus, perguntando, em referência ao encontro de Jesus com o jovem rico em Mc 10,21: “Consegues imaginar o momento, o encontro entre os seus olhos e os de Jesus?” (n.º 39).

Mais do que reformar as estruturas a Igreja precisa de aprofundar o amor. Desde o início do seu pontificado, o Santo Padre tem alertado contra a tendência de a Igreja voltar o seu olhar para si mesma ou de cair no “mundanismo espiritual” e na autorreferência. Em “Dilexit nos”, continua o tema, dizendo que “o coração de Cristo também nos liberta de outro tipo de dualismo encontrado em comunidades e em pastores excessivamente envolvidos em atividades externas, em reformas estruturais que pouco evangélicas, em planos de reorganização obsessivos, em projetos mundanos, em modos seculares de pensar e em programas obrigatórios” (n.º 88). Vindo isto numa encíclica publicada durante a segunda sessão do Sínodo da sinodalidade, em que tópicos associados à mudança estrutural e organizacional foram transferidos para grupos de estudo, tal crítica impressiona. A esperança de Francisco é que, ao refletir sobre o coração de Cristo, “síntese encarnada do Evangelho”, a Igreja seja movida menos pela análise crítica de questões teológicas e sociais, mas muito mais por um poderoso amor afetivo por Cristo (n.º 90).

Francisco parece implorar aos que se deixam levar pelos próprios planos e visões para a Igreja, seja por meio de rigorosa adesão às estruturas atuais, seja por uma reforma radical delas, que se reorientem para a necessidade dum amor reavivado. Em vez de estruturas e preocupações ultrapassadas, de apego excessivo às próprias ideias e opiniões e de fanatismo em qualquer número de formas, a Igreja precisa “do amor gratuito de Deus que liberta, anima, traz alegria ao coração e constrói comunidades” (n.º 219).

A importância da piedade popular. Francisco exprime a sua consciência de que o Sagrado Coração e imagens devocionais conexas podem ser descartadas como kitsch, mas adverte contra o descarte da devoção como um todo. Certas representações podem, “parecer-nos de mau gosto e não particularmente propícias à afeição ou à oração, mas isso é de pouca importância, pois são apenas convites à oração” (n.º 57). Ele leva um passo adiante, criticando, como frequentemente faz, quem descarta tais expressões de piedade popular, como sendo demasiado emocionais ou carentes de profundidade. E escreve: “Pio XII descreveu como ‘falso misticismo’ a atitude elitista dos grupos que viam Deus como tão sublime, separado e distante que julgavam expressões afetivas de piedade popular como perigosas e necessitadas de supervisão eclesiástica” (n.º 86).

Falando da piedosa tradição dos católicos que procuram consolar Jesus no seu sofrimento, pede “que ninguém menospreze a fervorosa devoção do santo povo fiel de Deus”, acrescentando: “Encorajo todos a considerarem se pode haver maior razoabilidade, verdade e sabedoria em certas demonstrações de amor no consolo ao Senhor do que nos atos de amor frios, distantes, calculados e nominais praticados pelos que dizem ter fé mais reflexiva, sofisticada e madura” (n.º 160).

O Sagrado Coração pede reparação em ações e palavras de amor, não ao choro de autopiedade. Uma parte da devoção ao Sagrado Coração envolve “reparações” ao coração de Jesus pelos próprios pecados e pelos pecados do Mundo, que trouxeram e continuam a trazer-lhe tristeza. Porém, o foco excessivo na reparação pode levantar preocupações sobre duvidar da suficiência da redenção de Cristo, mas Francisco acredita que o impulso devocional para consolar o coração de Jesus é puro. “Pode parecer a alguns que este aspeto da devoção ao Sagrado Coração carece de base teológica firme, mas o coração tem as suas razões. Aqui o sensus fidelium percebe algo misterioso, além da lógica humana, e percebe que a paixão de Cristo não é mero evento do passado, mas “um evento do qual podemos compartilhar pela fé” (n.º 154).

Enfim, Francisco encoraja um enquadramento adequado das reparações. Convoca Santa Teresa de Lisieux para fornecer um contexto histórico e espiritual. “Teresa estava ciente de que, em certos setores, se havia desenvolvido uma forma extrema de reparação baseada na disposição de se oferecer em sacrifício pelos outros e de se tornar, em certo sentido, um ‘para-raios’ para os castigos da justiça divina” (n.º 195). Tanto Teresa como o Papa têm visão sombria dessa forma de devoção. Uma ênfase tão grande na justiça de Deus pode levar à noção de que “o sacrifício de Cristo foi, de alguma forma, incompleto ou apenas parcialmente eficaz, ou que a sua misericórdia não foi suficientemente poderosa” (n.º 195).

Somente Jesus salva e redime. Contudo, Francisco propõe uma estrutura de reparações que vê como “participação livremente aceite no seu amor redentor”. Isso faz-se amando o nosso próximo.

“Agradaria ao coração que tanto nos amou que nos deleitássemos numa experiência religiosa privada ignorando as suas implicações para a sociedade em que vivemos?” (n.º 205). O Papa conclui que não, pois somos chamados a reconciliar-nos com amigos, com familiares e com estranhos a quem prejudicamos e que nos prejudicaram. Somos chamados a construir sociedades de justiça, de paz e de fraternidade. Mas essa ação é animada por um amor intenso e também está conectada, de acordo com Francisco, tanto com a evangelização, seu foco na Evangelii Gaudium como com as suas encíclicas sociais Laudato si' e Fratelli Tutti (n.º 217). “Ao contemplarmos o Sagrado Coração, a missão torna-se uma questão de amor”, pois “o maior perigo na missão é que, no meio de todas as coisas que dizemos e fazemos, deixamos de promover um encontro alegre com o amor de Cristo que nos abraça e nos salva” (n.º 208).

A compunção pelos pecados que trespassaram o Coração de Cristo deve levar-nos à tristeza que nos mova, não à autopiedade ou ao perfecionismo, mas a amor maior a Deus e ao próximo.

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Em suma, uma encíclica que reflete o ser e o estilo do Papa argentino!

2024.11.19 – Louro de Carvalho

terça-feira, 19 de novembro de 2024

Guerra da Rússia na Ucrânia endurece e pode escalar

 

A 19 de novembro, aos mil dias da guerra da Rússia com a Ucrânia, o presidente da Rússia, Vladimir Putin, assinou um decreto-lei que introduz alterações à doutrina nuclear, a permitir o uso alargado deste género de armamento. Esta atitude política surge depois de o presidente dos Estados Unidos da América (EUA), Joe Biden, ter autorizado a Ucrânia utilizar armas norte-americanas, como ATACAMS (mísseis de longo alcance) em território russo.

Intitulado de “documento de planeamento estratégico”, o diploma inclui a “posição oficial sobre a dissuasão nuclear”, estabelecendo critérios para a utilização da “dissuasão nuclear”, em resposta a “uma agressão” de “um potencial inimigo”, quer contra a Rússia, quer contra os “seus aliados”.

A guerra passou por vários momentos de impasse, com a Rússia a atacar e a Ucrânia a responder adequadamente e vice-versa. Porém, nenhuma das partes tinha a perspetiva da vitória e não queria entrar em negociações a sério, apesar das várias sugestões e das diversas ofertas de mediação.

Entretanto, Donald Tump venceu as eleições presidenciais norte-americanas de 5 de novembro, e tornou-se o 47.º presidente dos EUA, devendo ser empossado a 20 de janeiro. O eleito prometeu, na campanha eleitoral, acabar com a guerra em 24 horas (deixando-a Rússia com as regiões que ocupou?). E o presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, baseado numa conversa que teve com ele, deu a entender que acreditara. Todavia, um dos governantes indigitados pelo presidente eleito dos EUA ridicularizou as crenças de êxito do chefe de Estado da Ucrânia, alegando o seu antigo estatuto de ator.

Recentemente, foi notícia que a Coreia do Norte cedeu armas e militares para combaterem na Ucrânia ao lado das forças militares russas. Por isso e, segundo alguns observadores, para obrigar Donald Trump a assumir o ónus político de suspender o apoio dos EUA à Ucrânia, autorizou Zelensky a utilizar armas norte-americanas em território russo, o que o líder ucraniano começou a fazer, quase de imediato. Obviamente, Moscovo reagiria à provocação. E Vladimir Putin decretou alterações à doutrina nuclear, permitindo a utilização alargada deste tipo de armamento.

Na sequência, o chefe da diplomacia russa prometeu “resposta apropriada” ao disparo ucraniano de mísseis ATACMS norte-americanos contra a Rússia, classificando-o como uma “nova fase” do conflito.Se os mísseis de longo alcance são utilizados a partir da Ucrânia, em direção ao território russo, isso significa que são operados por especialistas militares norte-americanos. Consideraremos esta uma nova fase da guerra ocidental contra a Rússia e responderemos em conformidade, declarou Serguei Lavrov aos jornalistas, no Rio de Janeiro, após a reunião do G20.

O chefe da diplomacia russa sustenta que o uso dos ATACMS para atacar solo russo é “um sinal” de que a Ucrânia e o Ocidente “querem uma escalada”, pelo que recomendou a leitura na íntegra, pelos Ocidentais, da nova doutrina nuclear russa, que alarga a possibilidade de Moscovo utilizar armas atómicas no caso de um ataque “massivo” por parte de um país não nuclear apoiado por uma potência nuclear, numa referência clara à Ucrânia e aos EUA. Isto não é, propriamente, uma novidade. Em setembro, o presidente russo já tinha avisado que, se a Ucrânia atacasse o território russo com mísseis ocidentais de longo alcance, isso significaria que “os países da NATO [Organização do Tratado do Atlântico Norte] estão em guerra com a Rússia”.

Por outro lado o parlamento ucraniano aprovou, a 19 de novembro, o orçamento para 2025, no qual 60% da despesa (50 mil milhões de euros), ou seja, mais de um quarto do produto interno bruto (PIB) são consagrados à defesa e à segurança nacional, para combater a invasão russa e as suas consequências, do que resulta que “todos os impostos cobrados aos cidadãos e às empresas, no próximo ano, serão utilizados para a defesa e para a segurança”. O texto deverá ser assinado pelo Presidente da República, Volodymyr Zelensky.

A invasão russa da Ucrânia, em curso desde fevereiro de 2022, arrasou a economia nacional e destruiu muitas infraestruturas, causando grandes prejuízos económicos e levando o Ocidente a fornecer a Kiev ajuda financeira em grande escala. E o exército ucraniano está em dificuldades, há vários meses, no campo de batalha, face a tropas russas mais numerosas, que ganham terreno em vários pontos da linha da frente.

Do seu lado, a Rússia prevê o aumento de 30% das despesas militares em 2025, após o aumento impressionante de 70%, em 2024, sinal da determinação do Kremlin em prosseguir a invasão do país vizinho a todo o custo. De acordo com o orçamento aprovado pelos deputados, no final de outubro, Moscovo gastará cerca de 160 mil milhões de dólares (cerca de 150 mil milhões de euros) em defesa e segurança, no próximo ano.

O Ministério da Defesa da Rússia afirmou que a Ucrânia já disparou seis mísseis de longo alcance fabricados nos EUA contra a região russa de Bryansk. Porém, os sistemas de defesa aérea abateram cinco e danificaram um. “Fragmentos de ATACMS caíram no território de uma instalação militar na região de Bryansk, deflagrando um fogo, que foi extinto”, referiu Moscovo, dando conta de que “não houve baixas, nem danos, como resultado do ataque inimigo na região de Bryansk com mísseis ATACMS”.

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Perante o novo decreto de Vladimir Putin, o Alto-Representante cessante da União Europeia (UE) para os Negócios Estrangeiros e Política de Segurança considerou que a alteração da doutrina nuclear da Rússia tem “um significado simbólico” no milésimo dia da invasão russa. “Não é a primeira vez que Putin apresenta a carta nuclear” e é uma “decisão irresponsável”, disse Josep Borrell, em conferência de imprensa no final de uma reunião ministerial de defesa, em Bruxelas, a sua última enquanto no exercício do cargo.

O responsável pela diplomacia da UE acrescentou que “o destino dos ucranianos determinará o destino da União Europeia”.

A Polónia diz que seis países europeus estão prontos para assumir ajuda a Kiev, se os EUA reduzirem apoio. Efetivamente, Radoslaw Sikorski, ministro dos Negócios Estrangeiros polaco, vincando a importância do reforço da defesa europeia, produziu tal declaração após reunião diplomática, em Varsóvia, que juntou os homólogos de mais quatro países da UE (França, Alemanha, Itália e Espanha). De facto, os países da UE querem reforçar os seus setores de defesa, face à invasão russa da Ucrânia, mas ainda não há medidas claras sobre como angariar o dinheiro para apoiar a indústria militar.

Na capital polaca, Radoslaw Sikorski declarou ainda que os cinco países da UE representados na reunião se mostraram a favor das euro-obrigações (‘eurobonds’, obrigação ou título de dívida pública emitido pelos países da Zona Euro) destinadas a financiar a defesa do bloco comunitário.

O ministro dos Negócios Estrangeiros italiano, Antonio Tajani, saudou o anúncio. “É a estratégia de apoiar a defesa europeia, de ter ‘eurobonds’ [...]. Temos de avançar”, afirmou Tajani.

Também o chefe da diplomacia francesa, Jean-Noël Barrot, se referiu à mobilização de “todas as alavancas” à disposição dos estados europeus, incluindo a capacidade financeira e económica da UE, para segurança e para desenvolvimento da base industrial e tecnológica da defesa europeia.

O secretário de Estado Adjunto e da Defesa Nacional português, Álvaro Castelo Branco, admitiu preocupação com a decisão do Kremlin de alargar as possibilidades de utilização de armamento nuclear, em resposta ao uso de mísseis de longo alcance pela Ucrânia. “Estamos preocupados, neste momento, com todas as atitudes de Vladimir Putin [...], [que] tem demonstrado que não está interessado em negociar a paz”, disse o governante português, no âmbito de uma reunião ministerial em Bruxelas, garantindo que Portugal mantém a meta de investir 2% do PIB em defesa, até 2029 (o governo anterior tinha estabelecido essa meta para o ano de 2030).

O primeiro-ministro de Portugal aproveitou as redes sociais para assinalar os mil dias da guerra na Ucrânia. “Mil dias de guerra na Ucrânia são mil dias de guerra à democracia, ao humanismo e ao direito internacional. São dias de desafio e solidariedade europeia com o povo ucraniano”, afirmou Luís Montenegro, reiterando apoio à Ucrânia, com palavras dirigidas ao presidente Zelensky e acrescentando: “Portugal caminha lado a lado convosco, Zelensky.”

Marcelo Rebelo de Sousa assinalou os mil dias de guerra com uma mensagem a Volodymyr Zelensky e ao povo ucraniano. “Hoje assinalam-se mil dias de corajosa resistência da Ucrânia contra a agressão não provocada e injustificada da Rússia […] Portugal continua ao lado da Ucrânia no caminho para a adesão à União Europeia, nas aspirações de adesão à NATO e firme no compromisso de disponibilizar assistência militar e humanitária à Ucrânia”, refere uma nota da Presidência da República, terminando assim: “Glória à Ucrânia (Slava Ukraini)!”

O secretário-geral da NATO, Mark Rutte, à entrada para uma reunião ministerial de defesa da UE, em Bruxelas, como convidado, alertou que uma vitória da Rússia na Ucrânia só encoraja o Kremlin a ir mais longe, considerou que cada país decide, bilateralmente, a utilização a dar ao armamento que forneceu e disse que o presidente russo não pode atingir os seus objetivos na Ucrânia. E, questionado sobre a utilização, pela Ucrânia, do armamento disponibilizado pelos países da Aliança Atlântica, Mark Rutte insistiu que os militares ucranianos deveriam poder utilizá-lo para alcançar quaisquer objetivos militares que tenham, mas que tal decisão tem de ser acordada, bilateralmente, entre a Ucrânia e cada país que forneceu armamento.         

O presidente ucraniano, discursando, no Parlamento Europeu (PE), por videoconferência, no dia que assinalou os mil dias da ofensiva russa, defendeu mais sanções contra Moscovo, pois Vladimir Putim “não valoriza as pessoas ou as regras, só valoriza o dinheiro e o poder”, coisas que temos de lhe tirar para restaurar a paz”.

Além disso, a Ucrânia pediu “medidas decisivas”, após a publicação de um relatório da Organização para a Proibição de Armas Químicas (OPAQ) onde esta diz ter descoberto gás lacrimogéneo proibido em amostras fornecidas por Kiev, o que Moscovo nega.

A presidente do PE, Robert Metsola, frisou a coragem do povo ucraniano e do presidente da Ucrânia, que são “uma inspiração para todos os que valorizam a liberdade em todo o Mundo”.

Os presidentes da Comissão Europeia, do Conselho Europeu e do PE prometeram à Ucrânia o apoio da UE contra a agressão russa, “durante o tempo que for necessário”.

No que toca ao apoio da UE, a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, recordou o compromisso de avançar com 50 mil milhões de euros até 2027 e a ajuda do G7, que ascenderá a 50 mil milhões de dólares (48 mil milhões de euros), até 2026. Anunciou o “apoio adicional de 65 milhões de euros para a iniciativa de compra de refeições escolares para as crianças ucranianas”, além das verbas que serão mobilizadas para o país, no âmbito das receitas com ativos russos imobilizados para impulsionar a produção militar na Ucrânia e para reparar as suas infraestruturas energéticas, antes do inverno. E, quanto à adesão da Ucrânia à UE, após o país a ter o estatuto de país candidato desde meados de 2022, adiantou que, apesar de o “inverno que se avizinha poder ser assustador”, a Europa “é amiga” e, por isso, será possível, em breve, “passar à fase seguinte das negociações” de adesão.

Através da rede social X, o presidente cessante do Conselho Europeu, Charles Michel, destacou os mil dias “de sacrifício”, os mil dias de “sofrimento”, mas os mil dias de “bravura e coragem”.

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Duas observações: i) resta saber se os norte-coreanos em combate pela Rússia são mandatados pelos seus governos ou se são mercenários a soldo de outras organizações; e ii) é de louvar a comoção do Ocidente pela publicação decreto-lei em causa assinado em Moscovo, mas estranha-se que a mesma não tenha surgido com a decisão de Joe Biden, sendo de prever que a Rússia responderia em conformidade. Dois pesos e duas medidas ou brincadeira com o fogo!

2027.11.19 – Louro de Carvalho

segunda-feira, 18 de novembro de 2024

Em Dia Mundial dos Pobres, urgem a esperança e a fraternidade cristãs

 

O VIII Dia Mundial dos Pobres foi celebrado no domingo, 17 de novembro. A iniciativa, proposta, pela primeira vez, em 2017, foi desejada por Francisco para exortar a Igreja a “sair” dos seus muros, a fim de se encontrar com a pobreza, nos múltiplos significados em que se manifesta.

Neste ano, tendo em vista o início do Jubileu Ordinário 2025, o Papa escolheu como lema a passagem do Livro de Ben-Sirah: “A oração do pobre eleva-se até Deus (cf Sir 21,5). Esta expressão, que vem do autor sagrado Ben Sirah, torna-se, imediata e facilmente, compreensível. O Santo Padre reafirma que os pobres têm lugar privilegiado no coração de Deus, que está atento e próximo de cada um. Deus escuta a oração dos pobres e, ante o sofrimento, fica “impaciente”, até lhes fazer justiça. De facto, o Ben-Sirah atesta que “o juízo de Deus será em favor dos pobres” (cf Sir 21,5).

Como é habitual, o Papa Francisco presidiu à Celebração Eucarística na Basílica de São Pedro, às 10h00. Antes da Santa Missa, simbolicamente, abençoou 13 chaves, representando os 13 países onde a Famvin Homeless Alliance (FHA), da Família Vicentina, com o Projeto “13 casas” para o Jubileu, construirá novas casas para pessoas desfavorecidas. Entre estes países, está a Síria, cujas 13 casas serão financiadas, diretamente, pela Santa Sé, como gesto de caridade para o Ano Santo. Este ato de solidariedade foi possível, graças a generoso donativo da UnipolSai, que quis contribuir com entusiasmo para este sinal de esperança para uma terra devastada pela guerra. Em seguida, na Sala Paulo VI, o Santo Padre almoçou com 1300 pessoas pobres. O almoço, organizado pelo Dicastério para o Serviço da Caridade, foi oferecido, desta vez, pela Cruz Vermelha Italiana e foi animado pela sua Fanfarra Nacional. No final do almoço, foi entregue a cada pessoa uma mochila oferecida pelos Padres Vicentinos (Congregação da Missão), com alimentos e produtos de higiene pessoal.

Ao fim do almoço, o Santo Padre cumprimentou a todos e agradeceu aos que colaboraram com o VIII Dia Mundial dos Pobres.

Segundo o Vatican News, serviço oficial de informações da Santa Sé, o esmoleiro apostólico, cardeal Konrad Krajewski, disse que celebrar o Dia Mundial dos Pobres “significa seguir Jesus e simplesmente pensar da mesma forma como indicado no Evangelho”.

“Porque é isso que Cristo teria feito e, portanto, é isso que também faremos”, disse Krajewski.

Um dos convidados para o almoço foi um homem de Palermo, na região italiana da Sicília, hóspede do Palazzo Migliori, residência para moradores de rua, perto da basílica de São Pedro. O homem disse à secção italiana do Vatican News que tinha um emprego e uma família, mas sofreu um derrame recentemente e a Comunidade de Santo Egídio tirou-o das ruas.

“Agradecendo a Sua Santidade o Papa e ao cardeal Krajewski, pode-se dizer que agora também tenho um lar e uma família. Ter um lugar para dormir também ajuda a fazer algo para o futuro”, disse o homem, que disse querer, primeiro, recuperar-se e, depois, procurar trabalho.

O Ambulatório Mãe de Misericórdia, estrutura ligada ao Dicastério para o Serviço da Caridade, que oferece, diariamente, cuidados de saúde gratuitos aos pobres e necessitados, esteve aberto durante a semana de 11 a 16 de novembro, das 8 às 17 horas. Todos os dias, foi efetuado um serviço de urgência médica, de medicina interna, de vacinação contra a gripe, de análises de sangue, de esfregaços (o teste de esfregaço consiste na extensão de uma fina camada de sangue sobre uma lâmina de microscopia que, após corada, é analisada em microscópio, podendo indicar uma série de deficiências, apontando alterações e anormalidades nessas células sanguíneas) e de pensos. Todos os serviços são gratuitos e reservados às pessoas que vivem em situação de pobreza, marginalização ou dificuldade; e sempre são garantidos os medicamentos e terapias necessários. Estiveram presentes médicos especialistas de 18 especialidades diferentes. Os serviços médicos oferecidos durante a semana incluíram as seguintes especialidades: cardiologia, ortopedia, oftalmologia, cirurgia geral, reumatologia, dermatologia, medicina dentária, ginecologia, pneumologia, otorrinolaringologia, oncologia, ecografia, urologia, psiquiatria, neurologia, doenças infeciosas, gastroenterologia, nefrologia e podologia.

O Dicastério para a Evangelização provê às necessidades dos mais necessitados com várias iniciativas de caridade, incluindo, por exemplo, o pagamento de algumas despesas domésticas das famílias mais pobres, através de contactos com as paróquias: iniciativa que se tornou possível, graças à tradicional generosidade da UnipolSai.

Na semana que antecedeu este Dia, as comunidades paroquiais e diocesanas foram chamadas a centrar as atividades pastorais em torno das necessidades dos mais pobres, com sinais concretos.

Como é usual, o Dicastério para a Evangelização preparou um Subsídio Pastoral, traduzido em seis línguas, que foi oferecido ao povo de Deus para que, nas palavras de D. Rino Fisichella, “a Jornada Mundial da Juventude seja uma provocação permanente para que as nossas comunidades sejam atentas e acolhedoras para com os mais necessitados.” E exortou: “Neste caminho em direção ao Jubileu Ordinário de 2025, a nossa atenção aos mais necessitados faça de todos nós Peregrinos de Esperança no mundo que precisa de ser iluminado pela presença da Luz.” Este subsídio pastoral para a preparação do Dia Mundial dos Pobres está disponível, gratuitamente, no website: http://www.evangelizatio.va/content/pcpne/it/attivita/gmdp/2024/sussidio.html.

Na sua Mensagem, o Papa Francisco convida todos a aprender a rezar pelos pobres e a rezar com eles, com humildade e confiança. O Dia Mundial dos Pobres é a oportunidade para se tomar consciência da presença dos pobres nas nossas cidades e comunidades e para compreender as suas necessidades. Como sempre, o Papa menciona os “novos pobres”, que surgem da violência das guerras, da “má política feita com armas” (n.º 4), que causa tantas vítimas inocentes.

E preciso não esquecer os voluntários que, nas nossas cidades, dedicam grande parte do seu tempo à escuta e ao apoio dos mais pobres. São rostos concretos que, com o seu exemplo, “são a voz da resposta de Deus às orações dos que a Ele recorrem” (n.º 7). O Dia Mundial dos Pobres é também uma ocasião para recordar cada um deles e agradecer ao Senhor.

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Na homilia da Missa do 33.º domingo do Tempo Comum no Ano B, que assinala o Dia Mundial dos Pobres, o Santo Padre advertiu que as palavras do Livro de Daniel e do Evangelho “poderiam suscitar em nós sentimentos de angústia”, mas são “um grande anúncio de esperança”. Jesus parece descrever o estado de espírito dos que, vendo a destruição de Jerusalém, pensam que o fim chegou, mas anuncia que “é na hora da escuridão e da desolação, quando tudo parece desmoronar-se, que Deus vem”, Se aproxima e “nos reúne para nos salvar”.

Jesus insta a que tenhamos olhar aguçado, capaz de “ler por dentro” os acontecimentos da História, para descobrir que, na angústia dos corações e do tempo, esplandece inabalável esperança. Por isso, o Papa exorta a que nos detenhamos sobre estas duas realidades: a angústia e a esperança, que duelam na arena do nosso coração.

A angústia, sentimento generalizado na nossa época, em que a comunicação social amplifica os problemas e as feridas, torna o Mundo inseguro e o futuro incerto. Também o Evangelho começa com um quadro que, em linguagem apocalítica, projeta no cosmos a tribulação do povo: “O Sol vai escurecer e a Lua não brilhará mais, as estrelas cairão.”

Se o nosso olhar se detém só na crónica dos acontecimentos, a angústia ganha terreno. Hoje, o escurece Sol e apaga-se a Lua, a fome e a carestia oprimem tantos irmãos, abundam os horrores da guerra e a morte de inocentes. Ante este cenário, “corremos o risco de afundarmos no desânimo e de não nos apercebermos da presença de Deus no drama da História. Vemos crescer à nossa volta a injustiça que gera a dor dos pobres, mas juntamo-nos aos resignados que, por comodismo ou preguiça, pensam que “o Mundo é assim mesmo” e que “não há nada” a fazer. Até a fé cristã se reduz a devoção inócua, que não incomoda os poderes do Mundo e não gera compromisso concreto de caridade. E, enquanto uma parte do Mundo é condenada a viver à margem da História, crescem as desigualdades e a economia penaliza os fracos; e, enquanto a sociedade se consagra à idolatria do dinheiro e do consumo, os pobres e os excluídos não podem fazer outra coisa senão continuar a esperar.

Porém, neste quadro apocalítico, Jesus acende a esperança, abre o horizonte, alarga-nos olhar para aprendermos a perceber, na precariedade e na dor do Mundo, a presença do amor de Deus que se faz próximo e que atua para a nossa salvação. Quando o Sol escurece, a Lua deixa de brilhar e as estrelas caem, é que o Evangelho nos diz que “vereis o Filho do Homem vindo nas nuvens com grande poder e glória” e que “reunirá os eleitos de Deus, de um extremo ao outro da Terra”.

Assim, Jesus aponta para a sua morte, que terá lugar pouco depois. No Calvário, o Sol escureceu e as trevas desceram; mas o Filho do Homem veio sobre as nuvens, pois o poder da ressurreição destruiu as cadeias da morte, a vida eterna de Deus surgiu da escuridão e um Mundo novo nasceu.

Esta é a esperança que Jesus nos quer transmitir. E fá-lo também com a imagem da figueira: “Olhai para a figueira, porque, quando os seus ramos ficam verdes e as folhas começam a brotar, sabeis que o verão está perto.” Do mesmo modo, somos chamados a ler as situações da nossa História terrena: onde parece haver apenas injustiça, dor e pobreza, o Senhor aproxima-Se para nos libertar da escravidão e para fazer brilhar a vida. Aproxima-se através da nossa proximidade cristã, com a nossa fraternidade. Não se trata de jogar uma moeda nas mãos do necessitado. A quem dá esmola, o Pontífice pergunta: “Tocas as mãos das pessoas ou jogas a moeda sem as tocares? Olhas nos olhos da pessoa a quem ajudas ou viras o olhar para outro lado?” Somos nós, os discípulos que, graças ao Espírito Santo, podemos semear a esperança no Mundo, acendendo luzes de justiça e de solidariedade, enquanto se adensam as sombras do Mundo fechado. Somos nós que a sua Graça faz brilhar, é a vida impregnada de compaixão que se torna sinal da presença do Senhor, “próximo do sofrimento dos pobres, para aliviar as suas feridas e mudar a sua sorte”.

A esperança cristã, que se realizou em Jesus e se concretiza no Reino, precisa de nós e do nosso empenho, de fé operosa na caridade, de cristãos que não passam para o outro lado do caminho.

A este respeito, Francisco exemplificou com uma fotografia feita por um fotógrafo romano: um casal adulto saía de um restaurante, no inverno; a senhora ia coberta com um casaco de pele e o homem ia bem abrigado; à porta, uma senhora pobre, deitada sobre o pavimento, pedia esmola; e o casal olhava para o outro lado. “Isto acontece todos os dias”, diz o Papa, perguntando: “Quando vejo a pobreza, a necessidade dos demais, olho para o outro lado?”

Um teólogo do século XX dizia que a fé cristã deve gerar em nós a “mística de olhos abertos”: não a espiritualidade que foge do Mundo, mas a fé que abre os olhos aos sofrimentos do Mundo e às aflições dos pobres, para exercer a compaixão de Cristo. “Diante dos pobres, diante dos que não têm trabalho, que não têm o que comer, que são marginalizados pela sociedade, tenho a mesma compaixão de Cristo?”, questiona-se o Pontífice.

Não devemos olhar só os grandes problemas da pobreza mundial, mas o pouco que todos nós podemos fazer todos os dias: com o nosso estilo de vida, com o cuidado e a atenção pelo ambiente, com a busca tenaz da justiça, com a partilha dos bens com os mais pobres, com o empenho social e político para melhorar a realidade que nos rodeia. Pode pouco, mas o pouco é como as primeiras folhas que brotam na figueira: este pouco será antecipação do verão, que está próximo.

O Papa recordou a advertência do cardeal Martini, segundo a qual devemos ter cuidado ao pensar que existe, primeiro, a Igreja, sólida em si, e, depois, os pobres que escolhemos. Ora, tornamo-nos a Igreja, na medida em que servimos os pobres, pois só assim a Igreja se torna “ela mesma”. Isto é, “a Igreja torna-se casa aberta a todos, lugar da compaixão de Deus pela vida de cada homem”. “Digo-o à Igreja, aos governos dos Estados e às organizações internacionais, digo-o a todos e a cada um: por favor, não nos esqueçamos dos pobres”, exorta o Santo Padre.

2024.11.18 – Louro de Carvalho

É preciso ler a História dos homens na perspetiva da esperança

 

A isto vem a liturgia do 33.º domingo do Tempo Comum no Ano B, o Dia dos Pobres, instituído pelo Papa Francisco, pois quem não tem esperança morre cedo ou passa a vida a matar o tempo.

Na ótica do cristão, o egoísmo, a violência, a injustiça, o pecado, não têm a última palavra na História do mundo e dos homens. A última palavra será sempre de Deus, que, a seu tempo, muda a noite do Mundo em aurora de vida sem fim.

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O Santo Padre comentou o Evangelho do dia (Mc 13,24-32), antes da recitação do Angelus, com os peregrinos reunidos na Praça de São Pedro, no Vaticano.

Jesus descreve uma grande tribulação: “o Sol escurecer-se-á e a Lua não dará a sua claridade”. Ao invés da tentação de se pensar no fim do Mundo, o Senhor oferece-nos uma chave de leitura: “O céu e a terra passarão, mas as Minhas palavras não passarão.”

E o Papa sugere que nos detenhamos a expressão “o que passa e o que permanece”.

Em algumas circunstâncias da vida, ante uma crise ou fracasso, ou quando vemos a dor causada pelas guerras, pelas violências, pelas calamidades naturais, temos a sensação de que tudo caminha para o fim, sentindo que até “as coisas mais belas passam”. Todavia, as crises e os fracassos, embora dolorosos, “são importantes, porque nos ensinam a dar a devida importância a cada coisa, a não apegar o nosso coração às realidades deste Mundo, porque estas passarão: estão destinadas a ser passageiras”.

Ao invés, algo permanece. As palavras de Jesus permanecem eternamente. Por isso, Ele “convida-nos a confiar no Evangelho, que contém a promessa de salvação e de eternidade, e a deixar de viver sob a angústia da morte”. Nele, encontraremos, um dia, as coisas e as pessoas que passaram e nos acompanharam na existência terrena. À luz da promessa de ressurreição, cada realidade adquire novo significado: tudo morre e nós morreremos um dia, mas não perderemos nada do que construímos e amámos, porque “a morte será o início de uma vida nova”.

Mesmo nas tribulações, nas crises, nos fracassos, “o Evangelho convida-nos a olhar a vida e a História sem medo de perder o que acaba, mas com alegria pelo que permanece”. Na verdade, “Deus prepara para nós um futuro de vida e de alegria”. E a questão que se nos levanta é se estamos apegados às coisas da terra, que passam, ou às palavras do Senhor, que permanecem e nos guiam para a eternidade. A afeição às coisas do Alto é uma atitude pascal.

Jesus tinha passado o dia no templo de Jerusalém. Fora o dia dos ensinamentos e das polémicas com os líderes judaicos. No final dia, Jesus dirigiu-se, novamente, a Betânia, com os discípulos. Detiveram-se no Jardim das Oliveiras, a contemplar Jerusalém, que ficava defronte. Pouco antes, em resposta à observação de um dos discípulos sobre a grandiosidade do templo e das suas pedras, Jesus tinha dito que o templo seria destruído e que não ficaria pedra sobre pedra. Agora, olhando a cidade, Pedro, André, Tiago e João pedem explicação a Jesus acerca do que tinha dito sobre a destruição do templo. E Jesus oferece-lhes um largo e enigmático ensinamento, o conhecido “discurso escatológico” (cf Mt 13,4-37), texto que emprega imagens e linguagens com alusões enigmáticas, ao jeito do género literário apocalítico. Nele confluem elementos de caráter histórico – a destruição de Jerusalém e do templo ocorrerá 40 anos depois, no ano 70, quando as tropas romanas de Tito tomarem a cidade e a incendiarem – com reflexões de caráter profético sobre o sentido da História humana. O objetivo do discurso seria dar aos discípulos indicações acerca da atitude a tomar, face às vicissitudes que marcarão a caminhada histórica da comunidade, até ao momento em que Jesus vier instaurar, em definitivo, o novo céu e a nova terra.

Os quatro discípulos indicados no início do discurso representam a comunidade cristã de todos os tempos. São os primeiros chamados por Jesus e, como tal, convertem-se em representantes de todos os futuros discípulos. O discurso não é uma mensagem privada a um grupo especial, mas uma mensagem pública a toda a comunidade crente. No horizonte último da caminhada da comunidade, Jesus põe o final da História e o reencontro definitivo dos discípulos com Ele.

O discurso escatológico divide-se em três partes, antecedidas de a introdução. Na primeira parte, Jesus anuncia uma série de vicissitudes que marcarão a História e que requerem dos discípulos adequada atitude: vigilância e lucidez. Na segunda, Jesus anuncia a vinda definitiva do Filho do Homem e o nascimento de um Mundo novo a partir das ruínas do velho. E, na terceira, Jesus vinca a incerteza quanto ao tempo histórico dos eventos anunciados e insiste com os discípulos para que estejam vigilantes e preparados para acolherem o Senhor que vem.

O trecho em causa abrange a segunda parte e versículos da terceira do discurso escatológico.

Depois de enumerar diversos acontecimentos que marcarão o caminho histórico da comunidade dos discípulos (guerras, conflitos, terramotos e todo o tipo de confusões; perseguições, traições e condenações; a destruição de Jerusalém; o aparecimento de falsos messias e de falsos profetas), Jesus refere-se à sua segunda-vinda e ao surgimento de um Mundo novo.

Jesus recorre a imagens expressivas, tiradas da tradição profética e apocalítica, para descrever a queda do Mundo velho que se opõe a Deus e que persegue os crentes: “o Sol escurecerá e a Lua não dará a sua claridade; as estrelas cairão do céu e as forças que há nos céus serão abaladas”. Em Is 13,10, o obscurecimento do Sol, da Lua e das estrelas anuncia o dia da intervenção justiceira de Javé para destruir o império babilónico e para libertar o Povo de Deus exilado numa terra estrangeira; e, em Jl 2,10, estas imagens são usadas para descrever os acontecimentos do “dia do Senhor”, em que Javé intervirá, para castigar os opressores e para salvar os seus eleitos.

As velhas imagens, utilizadas pelos profetas para descrever a queda dos impérios que oprimiam o Povo de Deus, mantêm atualidade na época de Jesus. Os Gregos, por exemplo, adoravam, como deuses o Sol (“Élios”) e a Lua (“Selénê”); e os Romanos identificavam o imperador como “o Sol” (Nero, o primeiro perseguidor dos cristãos de Roma, fez erigir no palácio imperial uma estátua de bronze com trinta metros de altura que o representava como o deus “Sol”). Os leitores de Marcos entendiam que Jesus, ao falar do escurecimento do Sol e da Lua ou da queda das estrelas, se referia à falência dos impérios que lutam contra Deus e contra os seus santos. Assim, Jesus garante aos discípulos que acontecerá uma viragem decisiva na História: a velha ordem religiosa e política, os poderes que se opõem a Deus e que perseguem os santos serão derrubados, para darem lugar a um Mundo novo, construído segundo o Coração de Deus (os seus critérios e valores).

A queda do Mundo velho vem associada à vinda do Filho do Homem. A imagem leva-nos a Dn 7,13-14, onde se anuncia a vinda de um Filho do Homem sobre as nuvens do céu, para afirmar a sua soberania sobre “todos os povos, todas as nações e todas as línguas” e “para estabelecer um império eterno que não passará jamais”. Esse “Filho do Homem, cheio de poder e de glória, que virá “reunir os seus eleitos”, é Jesus. Com esta imagem, Marcos assegura o triunfo definitivo de Cristo sobre os poderes opressores e a libertação dos que, apesar das perseguições, percorrem com fidelidade os caminhos de Deus.

A mensagem é clara: os discípulos terão de percorrer um caminho de sofrimento e de perseguição, mas não se devem deixar afundar no desespero, porque Jesus vem para os libertar e salvar. Com a sua vinda gloriosa (de ontem, de hoje, de amanhã), cessará a escravidão que os impede de conhecer a vida em plenitude e nascerá um Mundo novo, de alegria e de felicidade.

Na segunda parte do trecho em causa, Jesus responde à questão dos discípulos: “Diz-nos quando tudo isto acontecerá e qual o sinal de que tudo está para acabar.”

Na ótica de Jesus, mais importante do que definir o tempo exato é confiar na chegada do Mundo novo e estar atento aos sinais que o anunciam. A figueira é a última árvore a ganhar folha, mas, quando os ramos ficam tenros e aparecem folhas novas, o agricultor percebe que chegou o verão e o tempo das colheitas. De igual modo, os crentes são convidados a esperar, com paciência e confiança, a chegada do Mundo novo e a perceber, nos sinais de desagregação do Mundo velho, o anúncio de que o tempo da libertação está a chegar. Assim, os crentes podem preparar o seu coração para O acolherem, para aceitarem os desafios que Ele traz.

Não há data marcada para o advento dessa realidade. Porém, os crentes podem estar certos: as palavras de Jesus não são bela teoria ou piedoso desejo, mas a garantia de que o Mundo novo, de vida plena e de felicidade sem fim, surgirá. Essa garantia deve ser um capital de esperança que anima e fortalece os discípulos.

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primeira leitura (DN 12,1-3) anuncia aos crentes perseguidos pelo rei selêucida Antíoco IV Epífanes, que Deus interviria para lhes oferecer a salvação. A ação de Deus porá fim ao sofrimento em que estão e abrir-lhes-á as portas dama vida nova, da vida eterna. Esta esperança deve sustentar os justos na sua aflição e animá-los a permanecerem fiéis a Deus.

Em 333 a.C., Alexandre da Macedónia derrotou Dario III, rei dos Persas, na batalha de Issos (Síria). A Palestina, até aí sob o domínio dos Persas, ficou integrada no império de Alexandre. Quando Alexandre morreu, em 323 a.C., os seus generais disputaram a sucessão. A Palestina passou a ser pomo de discórdia entre a família dos Ptolomeus, que governava o Egito, e a família dos Selêucidas, que governava a Mesopotâmia e a Síria. Os Ptolomeus asseguraram o domínio da Palestina e da Síria, mas o selêucida Antíoco III, aliado com Filipe V da Macedónia, venceu-os (batalha das fontes do Jordão, no ano 200 a.C.) e conquistou a Palestina. O período ptolomaico foi de relativa benevolência para a cultura judaica, mas a situação mudou no reinado do selêucida Antíoco IV Epífanes (174-164 a.C.), o qual, impor a cultura helénica em todo o império, praticou uma política de intolerância, face à cultura e à religião judaicas. Se muitos judeus renegaram a fé e assumiram os valores helénicos, muitos outros resistiram, defenderam a sua identidade cultural e religiosa, uns pela insurreição armada (caso de Judas Macabeu e seguidores), e outros, enfrentando a prepotência dos reis helénicos com a palavra e os escritos.

Então, surge Livro de Daniel. O autor é judeu fiel à cultura e valores religiosos dos antepassados. A pretexto de contar a história de um tal Daniel, judeu exilado na Babilónia, que manteve a fé num ambiente adverso, o autor do livro pede aos concidadãos que não se deixem vencer pela perseguição e que se mantenham fiéis à religião e aos valores dos seus pais, garantindo que Deus não abandonará o seu Povo e que recompensará todos os que se mantiveram fiéis à Lei e aos mandamentos. Estamos na primeira metade do século II a.C., pouco antes da morte de Antíoco (que ocorreu em 164 a.C.).

No livro misturam-se géneros literários diversos. Os capítulos 7 a 12 (que incluem o trecho em referência) pertencem ao género apocalítico (“Apocalipse” significa “revelação”), que recorre, em abundância, a símbolos (números, cores, animais, plantas…) e a linguagem cifrada (que os destinatários conhecem e os perseguidores ignoram). O autor propõe-se comunicar revelações sobre o desígnio de Deus, o protagonismo de Deus na História, a luta de Deus contra o mal, a vitória de Deus sobre os impérios humanos. Em tempo de perseguição e de crise, urge restaurar a esperança e assegurar ao Povo a vitória de Deus e dos fiéis sobre os opressores.

Aos crentes perseguidos é anunciada a chegada do tempo em que Deus intervirá para salvar o Povo fiel. Essa intervenção de Deus será levada a cabo por Miguel, o chefe do exército celestial, cuja missão é castigar os perseguidores e proteger os santos. No imaginário judaico, Miguel é um espírito celeste (um anjo protetor) que vela pelo Povo de Deus e que, por mandato divino, opera a libertação dos justos perseguidos. A ação de Miguel trará a salvação aos membros fiéis do Povo de Deus, os inscritos no livro de Deus. A intervenção de Deus porá fim ao Mundo velho da injustiça, da opressão, e iniciará o Mundo novo de justiça, felicidade, paz e vida verdadeira.

Entretanto, os santos que, antes da intervenção de Deus, foram perseguidos e mortos por causa da sua fidelidade a Deus não estão condenados a ficar no “sheol”, o reino das sombras onde erram os mortos. E o livro abre as portas a nova esperança: todos os que morreram antes da intervenção de Deus a inaugurar a nova era ressuscitarão. Os maus (que tentaram destruir os santos) ressuscitarão para “a vergonha e o horror eterno”; os santos (que se mantiveram fiéis a Deus) ressuscitarão para “a vida eterna”. Pela primeira vez aparece em textos veterotestamentários formulada a ideia da ressurreição dos mortos. O texto não explica em que consiste a vida eterna, mas os símbolos utilizados (“resplandecerão como a luz do firmamento”; “brilharão como estrelas por toda a eternidade”) evocam a transfiguração dos ressuscitados. A vida que os espera não será semelhante à do Mundo presente, mas luminosa e transfigurada. É esta a esperança que sustenta os justos, chamados a permanecerem fiéis a Deus, apesar da prova. A sua vida não é sem sentido e não está condenada ao fracasso; mas a sua constância e fidelidade serão recompensadas com a vida eterna. Embora sem dados concretos e claros, começa a esboçar-se a teologia da ressurreição.

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segunda leitura (Heb 10,11-14.18) lembra que Jesus veio ao Mundo concretizar o desígnio de Deus: libertar o homem do pecado e de inseri-lo na dinâmica de vida. Com a sua vida e seu testemunho, Cristo ensinou-nos a vencer o egoísmo e o pecado e a fazer da vida dom de amor a Deus e aos irmãos. É esse o caminho do mundo novo, o que conduz à vida definitiva.

Os sumo-sacerdotes da Antiga Aliança ofereciam, cada ano, no solene dia da Expiação (“Yom Kippur”), um sacrifício pelos seus pecados e pelos do Povo. Além disso, todos os dias, ofereciam, no templo, diversos sacrifícios de expiação (“hattâ’t) e de reparação (‘âshâm”), para manifestar o arrependimento do pecador e obter de Deus o perdão para os pecados do oferente. A obra desses sacerdotes nunca estará terminada: dia após dia, repetem os mesmos rituais. Além disso, o autor está convicto de que tais sacrifícios não são eficazes, já que não conseguem, de forma duradoura, restabelecer a corrente de vida e de comunhão entre o Povo pecador e o Deus santo. São ritos externos e superficiais, que não transformarão os corações duros e egoístas dos homens em corações capazes de viverem no amor a Deus e aos irmãos.

Porém, Cristo ofereceu a Deus um único sacrifício pelo pecado e “sentou-se, para sempre, à direita de Deus”. Sentou-se, porque a obra estava concluída: não precisou de oferecer mais sacrifícios pois o seu sacrifício perfeito foi totalmente eficaz. Obedecendo ao desígnio do Pai, apresentou-se ante dos homens e mostrou-lhes – com palavras e gestos – como devem viver; com a entrega da vida na cruz, mostrou aos homens o amor até ao extremo e convidou-os fazerem da própria vida dom de amor a Deus e aos irmãos. Dessa forma, Jesus venceu a lógica do egoísmo e do pecado e colocou, em definitivo, os homens no caminho certo, preparados para integrarem a família de Deus. O sacrifício de Jesus, oferecido de uma só vez, libertou os homens da dinâmica de egoísmo e de pecado e permitiu-lhes aproximarem-se de Deus com renovado coração. Assim, “tornou perfeitos, para sempre, os que são santificados”.

Terminada a tarefa de reconciliação dos homens com Deus, Cristo foi entronizado à direita de Deus. Esta imagem de triunfo mostra como o caminho percorrido por Cristo tem o aval de Deus e qual é a meta final da caminhada do homem: a comunhão com Deus, a pertença à família de Deus. Se o caminho da fidelidade ao desígnio de Deus e da entrega aos irmãos levou Jesus a sentar-Se à direita do Pai, também os que seguem Jesus chegarão à mesma meta e sentar-se-ão à direita de Deus. Assim, a Carta aos Hebreus exorta os cristãos a viverem na fidelidade aos compromissos que assumiram com Cristo no Batismo. Quem, apesar das crises, segue o caminho de Cristo, sentar-se-á à direita de Deus e viverá, sempre, em comunhão com Deus.

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Que Virgem Santa, que se confiou totalmente à Palavra de Deus, interceda por nós.

2024.11.18 – Louro de Carvalho

domingo, 17 de novembro de 2024

Israel continua com episódios de guerra e de genocídio duro

 
De acordo com a peça jornalística intitulada “Ataques israelitas em Gaza matam mais de 70 pessoas”, de Daniel Bellamy, em articulação com a Associated Press (AP), publicada pela Euronews, a 17 de novembro, pelo menos 72 Palestinianos (número avançado pelas autoridades do território, citadas pela Al Jazeera) morreram na noite de sábado (dia 16) para domingo (dia 17) e no próprio domingo, em resultado de um bombardeamento israelita contra vários edifícios residenciais na cidade de Beit Lahia, no Norte da Faixa de Gaza.
Estes dados têm origem em informação das autoridades médicas palestinianas, as quais avançam que 111 Palestinianos foram mortos no enclave costeiro desde a madrugada do dia 17.
Os ataques mataram, pelo menos, seis pessoas, em Nuseirat, e outras quatro, em Bureij, dois campos de refugiados construídos no centro da Faixa de Gaza que remontam à guerra de 1948 que envolveu a criação de Israel. Outras duas pessoas foram mortas num ataque à principal autoestrada Norte-Sul de Gaza, de acordo com informação do Hospital dos Mártires de Al-Aqsa, na cidade central de Deir al-Balah, que recebeu os 12 corpos.
O Ministério da Saúde de Gaza revela que já foram mortos, durante a guerra, cerca de 43800 Palestinianos. Sem fazer distinção entre civis e combatentes, afirma que as mulheres e as crianças representam mais de metade das vítimas mortais. Cerca de 90% da população de Gaza, 2,3 milhões de Palestinianos, foi deslocada e grandes áreas do território foram arrasadas pelos bombardeamentos israelitas e pelas operações terrestres.
Esta guerra começou depois de militantes palestinianos terem invadido Israel a 7 de outubro de 2023, matando cerca de 1200 pessoas – maioritariamente civis – e raptando 250 outras. Cerca de 100 reféns ainda se encontram em Gaza, pensando-se que cerca de um terço estarão mortos.
Porém, a guerra de Israel não se limita à Faixa de Gaza. No Líbano, aviões de guerra israelitas bombardearam os subúrbios do Sul de Beirute, a capital, depois de os militares terem avisado a população de que teriam de ser evacuados, pelo menos, sete edifícios. O grupo militante Hezbollah tem forte presença na zona, Dahiyeh, e os ataques ocorreram quando o governo libanês analisava uma proposta de cessar-fogo mediada pelos Estados Unidos da América (EUA).
O exército israelita publicou avisos de evacuação no X, cerca de uma hora antes dos ataques no Sul de Beirute, que ocorreram na madrugada do dia 17. Os meios de comunicação social locais noticiaram o toque dos sinos das igrejas na zona e nos arredores, para alertar os residentes. Não houve relatos imediatos de vítimas. E os militares israelitas também renovaram os apelos aos residentes de mais de uma dúzia de aldeias no Sul do Líbano para que fugissem, à medida que as tropas terrestres avançavam para Norte.
O Hezbollah começou a disparar foguetes, mísseis e drones contra Israel no dia seguinte ao ataque de 2023 do Hamas, atraindo ataques aéreos de retaliação. O conflito foi-se agravando e, em setembro, deflagrou uma guerra total. As forças israelitas invadiram o Líbano em 1 de outubro.
Segundo o Ministério da Saúde, mais de 3400 pessoas morreram no Líbano e mais de 1,2 milhões foram expulsas das suas casas. Não se sabe quantos dos mortos são combatentes do Hezbollah.
Do lado israelita, os ataques aéreos do Hezbollah mataram, pelo menos, 76 pessoas, incluindo 31 soldados, e provocaram a fuga de cerca de 60 mil pessoas das comunidades do Norte do país.
Entretanto, um ataque com rockets atingiu a residência privada do primeiro-ministro israelita, Benjamin Netanyahu, na cidade costeira de Cesareia, do que resultou a detenção de três suspeitos.
Netanyahu e a família não se encontravam na residência, quando dois foguetes foram disparados durante a noite e não houve feridos, segundo as autoridades.
Já no mês passado, um drone lançado pelo Hezbollah atingiu a mesma residência privada, estando também ausentes Netanyahu e a família.
A polícia não forneceu pormenores sobre os suspeitos que estavam por detrás dos foguetes, mas as autoridades apontaram para os críticos internos de Netanyahu. O presidente de Israel, Isaac Herzog, condenou o incidente e advertiu contra “uma escalada de violência na esfera pública”.
Na verdade, Benjamin Netanyahu enfrentou meses de protestos em massa, pela forma como lidou com a crise dos reféns desencadeada pelo ataque do Hamas a Israel, a 7 de outubro de 2023, que desencadeou a guerra em curso em Gaza. Os críticos culpam-no das falhas de segurança e de informação que permitiram o ataque e de não ter chegado a acordo com o Hamas para libertar dezenas de reféns detidos em Gaza. E Israelitas voltaram a reunir-se em Telavive, no dia 16, à noite, a exigir um acordo de cessar-fogo que permita a libertação dos reféns.
O ministro da Justiça, Yariv Levin, aproveitou o ataque para apelar ao relançamento dos seus planos de revisão do sistema judiciário israelita, que tinham provocado meses de protestos em massa antes da guerra. “Chegou o momento de dar todo o apoio à restauração do sistema judicial e dos sistemas de aplicação da lei e de pôr fim à anarquia, ao tumulto, à recusa e às tentativas de prejudicar o primeiro-ministro, declarou.
Segundo os apoiantes, a revisão do sistema judiciário visa reforçar a democracia, limitando a autoridade dos juízes não eleitos e conferindo mais poderes aos eleitos. Os opositores veem a reforma como uma tomada de poder por parte de Netanyahu, que está a ser julgado por acusações de corrupção, e como um ataque a um órgão de controlo fundamental.
Yair Lapid, líder da oposição, disse, em mensagem no X, que “condena veementemente” o disparo de foguetes contra a casa de Netanyahu, mas critica a proposta de Yariv Levin. “Levin deveria ir para casa com o resto deste governo irresponsável. […] Não o deixaremos transformar Israel num Estado antidemocrático”, escreveu Yair Lapid.
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Também no dia 17, de acordo com a Euronews e com a AP, Mohammed Afif, o principal porta-voz do Hezbollah, terá sido morto num ataque israelita a Beirute, nesse dia, segundo confirmou um alto funcionário do grupo, que falou sob condição de anonimato, por não estar autorizado a informar os jornalistas. O ataque aconteceu numa altura em que é esperada a reação das autoridades libanesas a uma proposta de cessar-fogo mediada pelos EUA.
Mohammed Afif, chefe das relações com os meios de comunicação do Hezbollah, foi morto num ataque ao escritório do Baath, partido socialista árabe, no centro de Beirute.
Inicialmente, o exército libanês anunciou que um soldado foi morto e três ficaram feridos, um dos quais em estado grave. “O inimigo israelita atingiu diretamente um centro do exército”, em Mari, na zona de Hasbaya, causando a morte de um dos soldados e o ferimento de três outros, um dos quais se encontra em estado crítico”, afirmou o exército em comunicado. E, pouco depois, um outro comunicado referia que “um segundo soldado” tinha morrido, devido aos ferimentos.
Israel também bombardeou, depois de ter emitido vários avisos de evacuação para a população como já foi referido, vários edifícios nos subúrbios do sul de Beirute, onde o Hezbollah tem a sua sede, há muito tempo.
O último ataque israelita deste ano, no centro de Beirute, foi em 10 de outubro, quando 22 pessoas foram mortas em dois locais. O Hezbollah começara a disparar rockets, mísseis e drones contra Israel, no dia seguinte ao ataque do Hamas, a 7 de outubro de 2023, que desencadeou o agravamento do conflito em Gaza. Israel, por sua vez, lançou ataques aéreos de retaliação no Líbano. E a escalada do conflito não deixou de aumentar, tendo eclodido uma guerra em setembro deste ano, com as forças israelitas a invadirem o Líbano, a 1 de outubro.
O Hezbollah tem continuado a disparar, diariamente, dezenas de projéteis contra Israel e alargou o seu alcance ao centro do país. Os ataques mataram, pelo menos, 76 pessoas, incluindo 31 soldados, e provocaram a fuga de cerca de 60 mil pessoas no Norte do país.
Segundo o Ministério da Saúde, mais de 3400 pessoas morreram no Líbano e mais de 1,2 milhões foram expulsas das suas casas. Não se sabe quantos dos mortos são combatentes do Hezbollah.
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Nem só os ataques e os bombardeamentos fazem a guerra. Numa entrevista alargada à Euronews, em Bruxelas, a 15 de novembro, Scott Anderson, diretor da Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina no Próximo Oriente – conhecida pela sigla UNRWA (do Inglês, United Nations Relief and Works Agency for Palestine Refugees in the Near East) –, traçou um quadro devastador da situação no território palestiniano, sublinhando a grave escassez de alimentos. “Para a população da Faixa de Gaza, trata-se de uma catástrofe humanitária que pode facilmente agravar-se”, afirmou Scott Anderson ao editor político da Euronews, Stefan Grobe, vincando: “Não há lugar seguro em Gaza, incluindo as zonas seguras.”
Já passou mais de um ano do início da guerra entre Israel e o Hamas – e o fim não está à vista. “Há mais de um mês que não conseguimos fazer chegar alimentos a essas pessoas”, disse Anderson sobre a situação no terreno em zonas do Norte, acrescentando: “Se não fizermos alguma coisa rapidamente, a situação pode evoluir para uma fome generalizada, o que seria uma situação provocada pelo homem e algo que poderia ser facilmente corrigido, se conseguíssemos ajuda suficiente para cuidar de todos.”
Anderson também reagiu às acusações israelitas de que as instalações da UNRWA eram utilizadas para albergar terroristas do Hamas, para esconderijos de armamento e para sedes administrativas.
Em resposta, a UNRWA tomou medidas para eliminar os terroristas do Hamas entre os seus funcionários, mas Anderson não garante que o trabalho esteja concluído. “Temos mais de 13 mil pessoas. Levamos a neutralidade muito a sério, como o demonstra a ação muito rápida do comissário-geral”, disse, acrescentando: “Não posso dizer, com certeza, que está feito. Não tenho provas de mais. […] E, se o fizéssemos, tomaríamos medidas. Mas não, não podemos afirmar isso com certeza, seria incorreto da nossa parte.”
E Anderson comentou a última tentativa israelita de proibir o acesso da UNRAW a toda a zona.
“Se não formos capazes de operar, se não formos capazes de continuar a trazer essa ajuda, tudo para[rá]. E isso teria situações potencialmente catastróficas para as pessoas no terreno”, vincou.
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Parece que a insistência dos ataques israelitas em Gaza, no Líbano e no Irão têm em vista a eliminação do último Palestiniano ou, pelo menos, do seu poderio, por mais exíguo que seja. Então, boicota-se a ajuda humanitária e instaura-se uma tática pior do que a nazi nos tempos do holocausto: a morte à míngua extrema de tudo. 
A isto vem juntar-se o episódio de 12 de novembro, com o ministro das Finanças israelita, Bezalel Smotrich, a dizer, em reunião do Partido Sionista Religioso, que tanto a Faixa de Gaza como a Cisjordânia serão, “para sempre, retiradas” aos Palestinianos, na sequência da vitória de Donald Trump nas eleições presidenciais dos EUA. “Estávamos a um passo de implementar a soberania sobre os colonatos na Judeia e Samaria [Cisjordânia] e, agora, chegou o momento de o fazer”, disse, em declarações aos membros da coligação ultranacionalista (liderada pelo primeiro-ministro), Smotrich, que é também ministro-adjunto do Ministério da Defesa, responsável pelos assuntos civis na Cisjordânia ocupada,.
No final de maio, o exército entregou poderes legais significativos na Cisjordânia ocupada a funcionários dos colonos liderados por Smotrich, uma anexação “de facto”, já que o objetivo final é o controlo direto dos territórios palestinianos por Israel. E Smotrich, que reside num colonato na Cisjordânia, afirmou ter dado instruções à divisão de administração de colonatos do Ministério da Defesa e à administração civil do exército na Cisjordânia para darem início à preparação das infraestruturas necessárias à ocupação da Cisjordânia.
Neste ano, há um recorde apropriação de terras palestinianas, após Israel declarar mais de 2300 hectares na Cisjordânia ocupada como terras do Estado, mecanismo utilizado com a designação de reservas naturais e de áreas de treino militar, para expulsar mais Palestinianos. Israel apossou-se da Cisjordânia e de Jerusalém Oriental na Guerra dos Seis Dias, em 1967 e, desde então, tem mantido uma ocupação militar destes territórios palestinianos. E o governo de Benjamin Netanyahu promove uma política de expansão dos colonatos, através do Conselho de Colonização de Israel, apoiado pelo exército no terreno.
Segundo a “Notícias ao Minuto”, o Ministério dos Negócios Estrangeiros português condenou, a 17 de novembro, as declarações de Smotrich em prol da anexação israelita da Cisjordânia, por “violação do direito internacional” e por desrespeito pelos “direitos do povo palestiniano”.
Na guerra já vale tudo. Além da forte componente militar, tem a trágica vertente civil.

2024.11.17 – Louro de Carvalho