quarta-feira, 10 de dezembro de 2025

Coração aberto e disponível ao plano de Deus para o Mundo

 

A Solenidade da Imaculada Conceição da Virgem Santa Maria, Padroeira de Portugal e de Moçambique convida-nos a equacionar a resposta que damos aos desafios de Deus. E, com o exemplo de Maria de Nazaré, a liturgia apela ao acolhimento, em coração aberto e disponível, do desígnio de Deus para nós e para o Mundo.

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A primeira leitura (Gn 3,9-15.20) mostra, recorrendo à saga de Adão e Eva, personagens simbólicas o que sucede, quando rejeitamos o desígnio de Deus e preferimos vias de egoísmo, de orgulho e de autossuficiência, vivendo à margem de Deus ou tentando pôr-nos no lugar de Deus, o que leva ao sofrimento, à destruição, à infelicidade e à morte.
O relato javista, de Gn 2,4b-3,24, sobre as origens da vida e do pecado, a que pertence o trecho em apreço é do século X a.C. e terá aparecido em Judá no tempo do rei Salomão. Apresenta-se em estilo exuberante e vivo, parecendo obra de um catequista, que ensina, recorrendo a imagens sugestivas, coloridas e fortes.
Mais do que ensinar como apareceram o Mundo e o homem, o catequista garante que, na origem da vida e do homem, está Javé e que na origem do mal e do pecado estão as opções erradas do homem. É uma longa reflexão sobre as origens da vida e do mal que desfeia o Mundo e que está estruturada num esquema tripartido, com duas situações opostas e uma realidade central a servir de charneira e em torno da qual gravitam a primeira e a terceira parte.
Na primeira parte (Gn 2,4b-25), é descrita a criação do paraíso e do homem, sendo a criação um espaço ideal de felicidade, onde tudo é bom e o homem vive em comunhão total com o criador e com as outras criaturas. Na segunda parte (Gn 3,1-7), é descrito o pecado do homem e da mulher, tendo as opções erradas do homem introduzido na comunhão do homem com Deus e com o resto da criação fatores de desequilíbrio e de morte. Na terceira parte (Gn 3,8-24), são apresentados o homem e a mulher, confrontados com o resultado das suas opções erradas e as com consequências que daí advieram, para o homem e para o resto da criação.
Na ótica do catequista javista, Deus criou o homem para a felicidade, mas levanta-se a questão do motivo por que enfrentamos o egoísmo, a injustiça, a violência. E a resposta está na História humana: o homem que Deus criou livre e feliz fez opções erradas.
O trecho em apreço pertence à terceira parte do tríptico. Os intervenientes são Deus, que “passeia no jardim, à brisa do dia”; e Adão e Eva, que se esconderam de Deus no arvoredo do jardim.
Antes de proferir a sua acusação, Deus investiga, descobre e estabelece os factos. A primeira pergunta de Deus ao homem é: “Onde estás?” A resposta é já confissão de culpabilidade: “Ouvi o rumor dos teus passos no jardim e, como estava nu, tive medo e escondi-me.” A vergonha e o medo são sinal de perturbação, de rutura com a situação de inocência, de harmonia, de serenidade e de paz. Evidentemente, desobedecendo a Deus e percorrendo caminhos opostos aos que Deus lhe propusera, a resposta do homem trai o seu segredo e a sua culpa. A segunda pergunta de Deus é retórica: “Terias tu comido dessa árvore, da qual te proibira de comer?”. É a “árvore do conhecimento do bem e do mal”, que significa a autossuficiência, o orgulho, a marginalização de Deus e das suas propostas, a veleidade de decidir por si o que é bem e o que é mal, pondo-se no lugar de Deus e reivindicando autonomia total, em relação ao criador. A situação do homem, perturbado e em rutura, é resposta clara à pergunta. “Comeu da árvore proibida”, isto é, escolheu a via de orgulho e de autossuficiência, face a Deus. Daí a vergonha e o medo.
Ao defender-se, o homem acusa a mulher e, veladamente o próprio Deus pela situação em que está: “A mulher que me deste por companheira deu-me do fruto da árvore e eu comi.” Adão representa a Humanidade imersa no egoísmo e na autossuficiência, que esqueceu o dom de Deus e vê n’Ele um adversário; por outro lado, a resposta mostra a Humanidade que quebrou a sua unidade e se instalou na cobardia, na falta de solidariedade, no ódio. Escolher vias opostas às de Deus conduz a uma vida de rutura com Deus e com os irmãos.
Também mulher, interpelada, se defende: “A serpente enganou-me e eu comi.”. Entre os povos cananeus, a serpente era ligada aos rituais de fertilidade e de fecundidade. Os israelitas deixavam-se fascinar por esses cultos e abandonavam Javé, para assegurarem a fecundidade dos campos e dos rebanhos. Na época em que o autor javista escreve, a serpente era o sedutor dos crentes, que os levava a abandonar a Lei de Deus. E, neste contexto, é um símbolo literário de tudo o que afastava os israelitas de Javé. A resposta da mulher confirma tudo o que, até agora, estava sugerido: a Humanidade que Deus criou prescindiu de Deus, ignorou o seu desígnio enveredou por outros rumos. Achou, no egoísmo e na autossuficiência, que podia encontrar a vida à margem de Deus, prescindindo das propostas de Deus.
Está definida a culpa de uma Humanidade que pensou poder ser feliz em vias de autossuficiência e de egoísmo, totalmente à margem dos caminhos de Deus. Por isso, Deus condena, como falsos e enganosos, os cultos e as tentações que seduziam os israelitas e os colocavam fora da dinâmica da Aliança e dos mandamentos. O catequista javista sabe que a serpente é um animal miserável, que passa toda a vida a morder o pó da terra. Por conseguinte, serve-se deste dado para exprimir, plasticamente, a condenação radical de tudo o que leva o homem a afastar-se de Deus e a enveredar por sendas de egoísmo e de autossuficiência.
Sobre o significado da inimizade e da luta entre a “descendência” da mulher e a “descendência” da serpente, o autor javista dá uma explicação etiológica (uma etiologia é a tentativa de explicar o porquê de uma que o autor conhece no seu tempo, a partir de um pretenso acontecimento primordial, que seria o responsável pela situação atual) para o facto de a serpente inspirar horror aos humanos e de todos lhe procurarem esmagar a cabeça. Porém, a interpretação judaica e cristã viu, aqui, uma profecia messiânica: Deus anuncia que um filho da mulher (o Messias) acabará com as consequências do pecado e inserirá a Humanidade na dinâmica de graça.
Por fim, é de anotar o hagiógrafo não fala de um pecado cometido nos primórdios da Humanidade pelo primeiro homem e pela primeira mulher; mas do pecado cometido por todos os homens e mulheres de todos os tempos. E está a ensinar que a raiz de todos os males está no facto de o homem prescindir de Deus e de construir o Mundo a partir de critérios de egoísmo e de autossuficiência. Conhecemos bem este quadro.

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O Evangelho (Lc 1,26-38) apresenta a resposta de Maria ao plano de Deus. Ao invés de Adão e de Eva, Maria rejeitou o orgulho, o egoísmo e a autossuficiência e preferiu conformar a sua vida, de forma total e radical, com os planos de Deus. Do seu sim total, resultou salvação e vida plena para ela e para o Mundo.
Após a configuração do ambiente do quadro, Lucas apresenta o diálogo entre Maria e o anjo.
Começa com a saudação do anjo. Na sua boca, são postos termos e expressões com ressonância veterotestamentária, ligados a contextos de eleição, de vocação e de missão. Assim, o termo latino “ave” (tradução do grego, “kkaîre”) com que o anjo se dirige a Maria, mais do que uma saudação, é o eco dos anúncios de salvação à filha de Sião, figura fraca e delicada que personifica o Povo de Israel, em cuja fraqueza se apresenta e representa a salvação oferecida por Deus e que Israel deve testemunhar ante os outros povos. A expressão “cheia de graça” (“kekharitôménê”) significa que Maria é objeto da predileção e do amor de Deus. E a expressão “o Senhor contigo” (“hô Kýrios metà soû”) aparece, com frequência, ligada aos relatos de vocação no Antigo Testamento (na vocação de Moisés, na vocação de Gedeão e na vocação de Jeremias), para assegurar ao chamado a assistência de Deus na missão que lhe é confiada Estamos, pois, ante o “relato de vocação” de Maria. A visita do anjo destina-se a apresentar à jovem nazarena o plano de Deus e que postula uma resposta clara de Maria.
A Maria Deus propõe que aceite ser a mãe de um filho especial. Desse filho é dito que se chamará Jesus (a significar “Deus salva”). Esse filho é apresentado pelo anjo como o “Filho do Altíssimo”, que herdará “o trono de seu pai David” e cujo reinado “não terá fim”. Tais palavras levam-nos à promessa de Deus ao rei David, através do profeta Natã. Esse filho é descrito nos mesmos termos em que a teologia de Israel descreve o “messias” libertador. Assim, o que é proposto a Maria é que ela aceite ser a mãe do “messias” que Israel esperava, o libertador enviado por Deus ao seu Povo para lhe oferecer a vida e a salvação definitivas.
A resposta de Maria começa com uma objeção, como nos relatos de vocação do Antigo Testamento. É a reação natural do chamado, que se assustou com a perspetiva do compromisso com algo que o ultrapassa, e uma forma de mostrar a grandeza e o poder de Deus que, apesar da fragilidade e das limitações dos chamados, faz deles instrumentos da sua salvação no meio dos homens e do Mundo.
Face à objeção, o anjo garante a Maria que o Espírito Santo virá sobre ela e a cobrirá com a sua sombra. É o mesmo Espírito que foi derramado sobre os juízes, sobre os reis, sobre os profetas, sobre os anciãos de Israel, a fim de que pudessem ser presença eficaz da salvação de Deus no meio do Mundo. A “sombra” ou “nuvem” leva-nos à “coluna de nuvem” que acompanhava a caminhada do Povo de Deus em marcha pelo deserto, indicando o caminho para a Terra Prometida da liberdade e da vida nova. Nestes termos, apesar da fragilidade de Maria, Deus vai, através dela, fazer-se presente no Mundo, para oferecer a salvação a todos os homens.
O relato termina com a resposta inequívoca de Maria: “Eis a serva do Senhor; faça-se em mim segundo a tua palavra.” Afirmar-se como serva significa, mais do que humildade, reconhecer que se é eleito(a) de Deus e aceitar a eleição, com tudo o que ela implica, pois, no Antigo Testamento, ser “servo do Senhor” é título de glória, reservado aos que Deus escolheu, que reservou para o seu serviço e que enviou ao Mundo com uma missão (tal designação aparece, por exemplo, no Deuteroisaías, em referência à figura enigmática do “servo de Javé”). Desta forma, Maria reconhece que Deus a escolheu, aceita com disponibilidade a escolha e manifesta a disposição de cumprir, com fidelidade, o plano de Deus.

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A segunda leitura (Ef 1, 3-6.11-12) garante-nos que Deus tem um projeto de vida plena, verdadeira e total para cada homem e para cada mulher, um projeto que esteve, desde sempre, na mente de Deus. Esse projeto, apresentado aos homens através de Jesus Cristo, exige de cada um de nós uma resposta decidida, total e sem subterfúgios.
O trecho em referência aparece no início da carta e é parte de um hino litúrgico que deve ter circulado nas comunidades cristãs, antes de ser enxertado aqui pelo apóstolo. Este hino dá graças pela ação do Pai e do Espírito Santo, no sentido de oferecer aos homens a salvação. Configura o plano salvador de Deus.
A ação de graças dirige-se a Deus, que é a fonte última de todas as graças concedidas aos homens. Essas graças atingiram os homens através do Filho, Jesus Cristo.
Segundo o hino, a ação do Pai consiste em, no seu amor, nos ter elegido desde sempre, “antes da criação do Mundo”, “para sermos santos e irrepreensíveis”.  O termo “santo” indica a situação de alguém que foi separado do Mundo e consagrado a Deus, para o serviço de Deus; e o termo “irrepreensível” aplicava-se às vítimas oferecidas em sacrifício a Deus, que deviam ser imaculadas e sem defeito. Estamos, pois, ante uma santidade, isto é, uma consagração a Deus verdadeira e radical.
Além da eleição, o Pai predestinou-nos “para sermos seus filhos adotivos”. Ou seja, através de Cristo, ofereceu-nos a sua vida e integrou-nos na sua família, na qualidade de filhos. O fim desta ação de Deus é o louvor da sua glória. Eleição e adoção como filhos resultam do imenso amor de Deus pelos homens, amor gratuito, incondicional e radical.
Nos vv. 7-10, que a liturgia da Solenidade não conservou, o autor do hino refere-se ao sangue derramado de Cristo e ao seu significado redentor. A morte de Jesus na cruz é o sinal inequívoco e eloquente do espantoso amor de Deus pelos homens; e dessa forma, Deus ensinou-nos a viver no amor, no amor total e radical. Por Cristo, Deus derramou sobre nós a sua graça, tornando-nos pessoas novas e diferentes, capazes de viverem no amor. Assim, Deus manifestou-nos o seu plano de salvação, que o hino chama “o mistério”, e que consiste em levar-nos à plena identificação com Jesus, na sua ilimitada capacidade de amar e de dar vida, à unidade e à harmonia totais com Jesus. Identificando-nos com Cristo e ensinando-nos a viver no amor total, Deus reconciliou-nos consigo, com os outros e com a Natureza. Da ação redentora de Cristo nasceu o Homem Novo, capaz de novo tipo de relação com Deus, com os outros homens e mulheres e com toda a criação, avesso ao egoísmo, ao orgulho, à autossuficiência, mas marcado pelo amor e pelo dom da vida.
Dessa forma, em Cristo fomos constituídos filhos de Deus e herdeiros da salvação, conforme o projeto de Deus preparado desde toda a eternidade em nosso favor.

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É, por tudo isto, útil à alma e agradável a Deus cantar com o salmista:

“Cantai ao Senhor um cântico novo: o Senhor fez maravilhas.”

“Cantai ao Senhor um cântico novo, / pelas maravilhas que Ele operou. / A sua mão e o seu santo braço / Lhe deram a vitória.

“O Senhor deu a conhecer a salvação, / revelou aos olhos das nações a sua justiça. / Recordou-Se da sua bondade e fidelidade / em favor da casa de Israel.

“Os confins da terra puderam ver / a salvação do nosso Deus. / Aclamai o Senhor, terra inteira, / exultai de alegria e cantai.”

“Aleluia. Aleluia. Ave, Maria, cheia de graça, o Senhor é convosco, bendita sois Vós entre as mulheres.”

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Por fim, pelo que tem de relação com a Virgem Santa Maria e de prece-compromisso, transcrevo a oração do Papa Leão proferida, na tarde de 8 de dezembro, na Praça de Espanha, em Roma, na tradicional homenagem pontifícia à Imaculada:

“Ave, ó Maria! Alegra-te, cheia de graça, daquela graça que, como luz gentil, torna radiantes
aqueles sobre os quais reverbera a presença de Deus.

“O Mistério envolveu-te desde o princípio, do ventre da tua mãe começou a fazer em ti grandes coisas, que logo exigiram o teu consentimento, aquele Sim que inspirou muitos outros sins.

“Imaculada, Mãe de um povo fiel, a tua transparência ilumina Roma com luz eterna, o teu caminho perfuma as suas ruas mais do que as flores que hoje te oferecemos.

“Muitos peregrinos do Mundo inteiro, ó Imaculada, percorreram as ruas desta cidade, ao longo da História e neste ano jubilar. Uma Humanidade provada, por vezes esmagada, humilde como a terra da qual Deus a moldou e na qual não cessa de soprar o seu Espírito de vida.

“Olha, ó Maria, para tantos filhos e filhas nos quais a esperança não se apagou: germine neles o que o teu Filho semeou, Ele, Palavra viva que, em cada um, pede para crescer ainda mais, para tomar carne, rosto e voz. Que floresça a esperança jubilar em Roma e em todos os cantos da Terra, esperança no Mundo novo que Deus prepara e do qual tu, ó Virgem, és como a gema e a aurora.
“Depois das portas santas, abram-se agora outras portas de casas e oásis de paz onde refloresça a dignidade, se eduque para a não violência, se aprenda a arte da reconciliação.

“Venha o reino de Deus, novidade que tanto esperaste e à qual te abriste inteiramente, desde criança, jovem mulher e mãe da Igreja nascente. Inspira novas intuições à Igreja que caminha em Roma e às Igrejas particulares que, em cada contexto, recolhem as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos nossos contemporâneos, sobretudo, dos pobres e de todos aqueles que sofrem. Que o batismo gere ainda homens e mulheres santos e imaculados, chamados a tornarem-se membros vivos do Corpo de Cristo, um Corpo que age, consola, reconcilia e transforma a cidade terrena na qual se prepara a Cidade de Deus.

“Intercede por nós, confrontados com mudanças que parecem encontrar-nos despreparados e impotentes. Inspira sonhos, visões e coragem, tu que sabes melhor do que ninguém que nada é impossível a Deus, e que Deus não faz nada sozinho.

“Coloca-nos a caminho, com a pressa que um dia moveu os teus passos em direção à tua prima Isabel e com a trepidação com que te tornaste exilada e peregrina, para seres abençoada, sim, mas entre todas as mulheres, primeira discípula do teu Filho, mãe do Deus connosco. Ajuda-nos a ser sempre Igreja com e entre as pessoas, fermento na massa de uma Humanidade que invoca justiça e esperança.

“Imaculada, mulher de infinita beleza, cuida desta cidade, desta humanidade. Indica-lhe Jesus, leva-a a Jesus, apresenta-a a Jesus. Mãe, Rainha da paz, roga por nós!”

2025.12.09 – Louro de Carvalho

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