A
Solenidade da Imaculada Conceição da Virgem Santa Maria, Padroeira de Portugal
e de Moçambique convida-nos a equacionar a resposta que damos aos desafios de
Deus. E, com o exemplo de Maria de Nazaré, a liturgia apela ao acolhimento, em
coração aberto e disponível, do desígnio de Deus para nós e para o Mundo.
***
A
primeira leitura (Gn 3,9-15.20) mostra, recorrendo à saga de Adão e Eva,
personagens simbólicas o que sucede, quando rejeitamos o desígnio de Deus e
preferimos vias de egoísmo, de orgulho e de autossuficiência, vivendo à margem
de Deus ou tentando pôr-nos no lugar de Deus, o que leva ao sofrimento, à
destruição, à infelicidade e à morte.
O
relato javista, de Gn 2,4b-3,24, sobre as origens da vida e do pecado, a
que pertence o trecho em apreço é do século X a.C. e terá aparecido em Judá no
tempo do rei Salomão. Apresenta-se em estilo exuberante e vivo, parecendo obra
de um catequista, que ensina, recorrendo a imagens sugestivas, coloridas e
fortes.
Mais
do que ensinar como apareceram o Mundo e o homem, o catequista garante que, na
origem da vida e do homem, está Javé e que na origem do mal e do pecado estão
as opções erradas do homem. É uma longa reflexão sobre as origens da vida e do
mal que desfeia o Mundo e que está estruturada num esquema tripartido, com duas
situações opostas e uma realidade central a servir de charneira e em torno da
qual gravitam a primeira e a terceira parte.
Na
primeira parte (Gn 2,4b-25), é descrita a criação do paraíso e do homem,
sendo a criação um espaço ideal de felicidade, onde tudo é bom e o homem vive
em comunhão total com o criador e com as outras criaturas. Na segunda parte (Gn
3,1-7), é descrito o pecado do homem e da mulher, tendo as opções erradas
do homem introduzido na comunhão do homem com Deus e com o resto da criação
fatores de desequilíbrio e de morte. Na terceira parte (Gn 3,8-24), são
apresentados o homem e a mulher, confrontados com o resultado das suas opções
erradas e as com consequências que daí advieram, para o homem e para o resto da
criação.
Na
ótica do catequista javista, Deus criou o homem para a felicidade, mas
levanta-se a questão do motivo por que enfrentamos o egoísmo, a injustiça, a
violência. E a resposta está na História humana: o homem que Deus criou livre e
feliz fez opções erradas.
O
trecho em apreço pertence à terceira parte do tríptico. Os intervenientes são
Deus, que “passeia no jardim, à brisa do dia”; e Adão e Eva, que se esconderam
de Deus no arvoredo do jardim.
Antes
de proferir a sua acusação, Deus investiga, descobre e estabelece os factos. A
primeira pergunta de Deus ao homem é: “Onde estás?” A resposta é já confissão de
culpabilidade: “Ouvi o rumor dos teus passos no jardim e, como estava nu, tive
medo e escondi-me.” A vergonha e o medo são sinal de perturbação, de rutura com
a situação de inocência, de harmonia, de serenidade e de paz. Evidentemente,
desobedecendo a Deus e percorrendo caminhos opostos aos que Deus lhe propusera,
a resposta do homem trai o seu segredo e a sua culpa. A segunda pergunta de
Deus é retórica: “Terias tu comido dessa árvore, da qual te proibira de comer?”.
É a “árvore do conhecimento do bem e do mal”, que significa a autossuficiência,
o orgulho, a marginalização de Deus e das suas propostas, a veleidade de
decidir por si o que é bem e o que é mal, pondo-se no lugar de Deus e
reivindicando autonomia total, em relação ao criador. A situação do homem,
perturbado e em rutura, é resposta clara à pergunta. “Comeu da árvore proibida”,
isto é, escolheu a via de orgulho e de autossuficiência, face a Deus. Daí a
vergonha e o medo.
Ao
defender-se, o homem acusa a mulher e, veladamente o próprio Deus pela situação
em que está: “A mulher que me deste por companheira deu-me do fruto da árvore e
eu comi.” Adão representa a Humanidade imersa no egoísmo e na autossuficiência,
que esqueceu o dom de Deus e vê n’Ele um adversário; por outro lado, a resposta
mostra a Humanidade que quebrou a sua unidade e se instalou na cobardia, na
falta de solidariedade, no ódio. Escolher vias opostas às de Deus conduz a uma
vida de rutura com Deus e com os irmãos.
Também
mulher, interpelada, se defende: “A serpente enganou-me e eu comi.”. Entre os
povos cananeus, a serpente era ligada aos rituais de fertilidade e de
fecundidade. Os israelitas deixavam-se fascinar por esses cultos e abandonavam
Javé, para assegurarem a fecundidade dos campos e dos rebanhos. Na época em que
o autor javista escreve, a serpente era o sedutor dos crentes, que os levava a
abandonar a Lei de Deus. E, neste contexto, é um símbolo literário de tudo o
que afastava os israelitas de Javé. A resposta da mulher confirma tudo o que,
até agora, estava sugerido: a Humanidade que Deus criou prescindiu de Deus,
ignorou o seu desígnio enveredou por outros rumos. Achou, no egoísmo e na autossuficiência,
que podia encontrar a vida à margem de Deus, prescindindo das propostas de
Deus.
Está
definida a culpa de uma Humanidade que pensou poder ser feliz em vias de autossuficiência
e de egoísmo, totalmente à margem dos caminhos de Deus. Por isso, Deus condena,
como falsos e enganosos, os cultos e as tentações que seduziam os israelitas e
os colocavam fora da dinâmica da Aliança e dos mandamentos. O catequista javista
sabe que a serpente é um animal miserável, que passa toda a vida a morder o pó
da terra. Por conseguinte, serve-se deste dado para exprimir, plasticamente, a
condenação radical de tudo o que leva o homem a afastar-se de Deus e a
enveredar por sendas de egoísmo e de autossuficiência.
Sobre
o significado da inimizade e da luta entre a “descendência” da mulher e a “descendência”
da serpente, o autor javista dá uma explicação etiológica (uma etiologia é a
tentativa de explicar o porquê de uma que o autor conhece no seu tempo, a
partir de um pretenso acontecimento primordial, que seria o responsável pela
situação atual) para o facto de a serpente inspirar horror aos humanos e de todos
lhe procurarem esmagar a cabeça. Porém, a interpretação judaica e cristã viu,
aqui, uma profecia messiânica: Deus anuncia que um filho da mulher (o Messias)
acabará com as consequências do pecado e inserirá a Humanidade na dinâmica de
graça.
Por
fim, é de anotar o hagiógrafo não fala de um pecado cometido nos primórdios da Humanidade
pelo primeiro homem e pela primeira mulher; mas do pecado cometido por todos os
homens e mulheres de todos os tempos. E está a ensinar que a raiz de todos os
males está no facto de o homem prescindir de Deus e de construir o Mundo a
partir de critérios de egoísmo e de autossuficiência. Conhecemos bem este
quadro.
***
O
Evangelho (Lc 1,26-38) apresenta a resposta de Maria ao plano de Deus.
Ao invés de Adão e de Eva, Maria rejeitou o orgulho, o egoísmo e a
autossuficiência e preferiu conformar a sua vida, de forma total e radical, com
os planos de Deus. Do seu sim total, resultou salvação e vida plena para ela e
para o Mundo.
Após
a configuração do ambiente do quadro, Lucas apresenta o diálogo entre Maria e o
anjo.
Começa com a saudação do anjo. Na sua boca, são postos termos e expressões com
ressonância veterotestamentária, ligados a contextos de eleição, de vocação e
de missão. Assim, o termo latino “ave” (tradução do grego, “kkaîre”) com que o
anjo se dirige a Maria, mais do que uma saudação, é o eco dos anúncios de
salvação à filha de Sião, figura fraca e delicada que personifica o Povo de
Israel, em cuja fraqueza se apresenta e representa a salvação oferecida por
Deus e que Israel deve testemunhar ante os outros povos. A expressão “cheia de
graça” (“kekharitôménê”) significa que Maria é objeto da predileção e do amor
de Deus. E a expressão “o Senhor contigo” (“hô Kýrios metà soû”) aparece, com
frequência, ligada aos relatos de vocação no Antigo Testamento (na vocação de
Moisés, na vocação de Gedeão e na vocação de Jeremias), para assegurar ao chamado
a assistência de Deus na missão que lhe é confiada Estamos, pois, ante o “relato
de vocação” de Maria. A visita do anjo destina-se a apresentar à jovem nazarena
o plano de Deus e que postula uma resposta clara de Maria.
A
Maria Deus propõe que aceite ser a mãe de um filho especial. Desse filho é dito
que se chamará Jesus (a significar “Deus salva”). Esse filho é apresentado pelo
anjo como o “Filho do Altíssimo”, que herdará “o trono de seu pai David” e cujo
reinado “não terá fim”. Tais palavras levam-nos à promessa de Deus ao rei David,
através do profeta Natã. Esse filho é descrito nos mesmos termos em que a
teologia de Israel descreve o “messias” libertador. Assim, o que é proposto a
Maria é que ela aceite ser a mãe do “messias” que Israel esperava, o libertador
enviado por Deus ao seu Povo para lhe oferecer a vida e a salvação definitivas.
A
resposta de Maria começa com uma objeção, como nos relatos de vocação do Antigo
Testamento. É a reação natural do chamado, que se assustou com a perspetiva do
compromisso com algo que o ultrapassa, e uma forma de mostrar a grandeza e o
poder de Deus que, apesar da fragilidade e das limitações dos chamados, faz
deles instrumentos da sua salvação no meio dos homens e do Mundo.
Face
à objeção, o anjo garante a Maria que o Espírito Santo virá sobre ela e a
cobrirá com a sua sombra. É o mesmo Espírito que foi derramado sobre os juízes,
sobre os reis, sobre os profetas, sobre os anciãos de Israel, a fim de que pudessem
ser presença eficaz da salvação de Deus no meio do Mundo. A “sombra” ou “nuvem”
leva-nos à “coluna de nuvem” que acompanhava a caminhada do Povo de Deus em
marcha pelo deserto, indicando o caminho para a Terra Prometida da liberdade e
da vida nova. Nestes termos, apesar da fragilidade de Maria, Deus vai, através
dela, fazer-se presente no Mundo, para oferecer a salvação a todos os homens.
O
relato termina com a resposta inequívoca de Maria: “Eis a serva do Senhor;
faça-se em mim segundo a tua palavra.” Afirmar-se como serva significa, mais do
que humildade, reconhecer que se é eleito(a) de Deus e aceitar a eleição, com
tudo o que ela implica, pois, no Antigo Testamento, ser “servo do Senhor” é
título de glória, reservado aos que Deus escolheu, que reservou para o seu
serviço e que enviou ao Mundo com uma missão (tal designação aparece, por
exemplo, no Deuteroisaías, em referência à figura enigmática do “servo de Javé”).
Desta forma, Maria reconhece que Deus a escolheu, aceita com disponibilidade a
escolha e manifesta a disposição de cumprir, com fidelidade, o plano de Deus.
***
A
segunda leitura (Ef 1, 3-6.11-12) garante-nos que Deus tem um projeto de
vida plena, verdadeira e total para cada homem e para cada mulher, um projeto
que esteve, desde sempre, na mente de Deus. Esse projeto, apresentado aos
homens através de Jesus Cristo, exige de cada um de nós uma resposta decidida,
total e sem subterfúgios.
O
trecho em referência aparece no início da carta e é parte de um hino litúrgico
que deve ter circulado nas comunidades cristãs, antes de ser enxertado aqui pelo
apóstolo. Este hino dá graças pela ação do Pai e do Espírito Santo, no sentido
de oferecer aos homens a salvação. Configura o plano salvador de Deus.
A
ação de graças dirige-se a Deus, que é a fonte última de todas as graças
concedidas aos homens. Essas graças atingiram os homens através do Filho, Jesus
Cristo.
Segundo
o hino, a ação do Pai consiste em, no seu amor, nos ter elegido desde sempre, “antes
da criação do Mundo”, “para sermos santos e irrepreensíveis”. O termo “santo” indica a situação de alguém
que foi separado do Mundo e consagrado a Deus, para o serviço de Deus; e o
termo “irrepreensível” aplicava-se às vítimas oferecidas em sacrifício a Deus,
que deviam ser imaculadas e sem defeito. Estamos, pois, ante uma santidade,
isto é, uma consagração a Deus verdadeira e radical.
Além
da eleição, o Pai predestinou-nos “para sermos seus filhos adotivos”. Ou seja,
através de Cristo, ofereceu-nos a sua vida e integrou-nos na sua família, na
qualidade de filhos. O fim desta ação de Deus é o louvor da sua glória. Eleição
e adoção como filhos resultam do imenso amor de Deus pelos homens, amor
gratuito, incondicional e radical.
Nos
vv. 7-10, que a liturgia da Solenidade não conservou, o autor do hino
refere-se ao sangue derramado de Cristo e ao seu significado redentor. A morte
de Jesus na cruz é o sinal inequívoco e eloquente do espantoso amor de Deus
pelos homens; e dessa forma, Deus ensinou-nos a viver no amor, no amor total e
radical. Por Cristo, Deus derramou sobre nós a sua graça, tornando-nos pessoas
novas e diferentes, capazes de viverem no amor. Assim, Deus manifestou-nos o
seu plano de salvação, que o hino chama “o mistério”, e que consiste em
levar-nos à plena identificação com Jesus, na sua ilimitada capacidade de amar
e de dar vida, à unidade e à harmonia totais com Jesus. Identificando-nos com
Cristo e ensinando-nos a viver no amor total, Deus reconciliou-nos consigo, com
os outros e com a Natureza. Da ação redentora de Cristo nasceu o Homem Novo,
capaz de novo tipo de relação com Deus, com os outros homens e mulheres e com
toda a criação, avesso ao egoísmo, ao orgulho, à autossuficiência, mas marcado
pelo amor e pelo dom da vida.
Dessa
forma, em Cristo fomos constituídos filhos de Deus e herdeiros da salvação,
conforme o projeto de Deus preparado desde toda a eternidade em nosso favor.
***
É,
por tudo isto, útil à alma e agradável a Deus cantar com o salmista:
“Cantai
ao Senhor um cântico novo: o Senhor fez maravilhas.”
“Cantai
ao Senhor um cântico novo, / pelas maravilhas que Ele operou. / A sua mão e o
seu santo braço / Lhe deram a vitória.
“O
Senhor deu a conhecer a salvação, / revelou aos olhos das nações a sua justiça.
/ Recordou-Se da sua bondade e fidelidade / em favor da casa de Israel.
“Os
confins da terra puderam ver / a salvação do nosso Deus. / Aclamai o Senhor,
terra inteira, / exultai de alegria e cantai.”
“Aleluia.
Aleluia. Ave, Maria, cheia de graça, o Senhor é convosco, bendita sois Vós
entre as mulheres.”
***
Por
fim, pelo que tem de relação com a Virgem Santa Maria e de prece-compromisso,
transcrevo a oração do Papa Leão proferida, na tarde de 8 de dezembro, na Praça
de Espanha, em Roma, na tradicional homenagem pontifícia à Imaculada:
“Ave,
ó Maria! Alegra-te, cheia de graça, daquela graça que, como luz gentil, torna
radiantes
aqueles sobre os quais reverbera a presença de Deus.
“O
Mistério envolveu-te desde o princípio, do ventre da tua mãe começou a fazer em
ti grandes coisas, que logo exigiram o teu consentimento, aquele Sim que
inspirou muitos outros sins.
“Imaculada,
Mãe de um povo fiel, a tua transparência ilumina Roma com luz eterna, o teu
caminho perfuma as suas ruas mais do que as flores que hoje te oferecemos.
“Muitos
peregrinos do Mundo inteiro, ó Imaculada, percorreram as ruas desta cidade, ao
longo da História e neste ano jubilar. Uma Humanidade provada, por vezes
esmagada, humilde como a terra da qual Deus a moldou e na qual não cessa de
soprar o seu Espírito de vida.
“Olha,
ó Maria, para tantos filhos e filhas nos quais a esperança não se apagou: germine
neles o que o teu Filho semeou, Ele, Palavra viva que, em cada um, pede para
crescer ainda mais, para tomar carne, rosto e voz. Que floresça a esperança
jubilar em Roma e em todos os cantos da Terra, esperança no Mundo novo que Deus
prepara e do qual tu, ó Virgem, és como a gema e a aurora.
“Depois das portas santas, abram-se agora outras portas de casas e oásis de paz
onde refloresça a dignidade, se eduque para a não violência, se aprenda a arte
da reconciliação.
“Venha
o reino de Deus, novidade que tanto esperaste e à qual te abriste inteiramente,
desde criança, jovem mulher e mãe da Igreja nascente. Inspira novas intuições à
Igreja que caminha em Roma e às Igrejas particulares que, em cada contexto,
recolhem as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos nossos contemporâneos,
sobretudo, dos pobres e de todos aqueles que sofrem. Que o batismo gere ainda
homens e mulheres santos e imaculados, chamados a tornarem-se membros vivos do
Corpo de Cristo, um Corpo que age, consola, reconcilia e transforma a cidade
terrena na qual se prepara a Cidade de Deus.
“Intercede
por nós, confrontados com mudanças que parecem encontrar-nos despreparados e
impotentes. Inspira sonhos, visões e coragem, tu que sabes melhor do que
ninguém que nada é impossível a Deus, e que Deus não faz nada sozinho.
“Coloca-nos
a caminho, com a pressa que um dia moveu os teus passos em direção à tua prima
Isabel e com a trepidação com que te tornaste exilada e peregrina, para seres
abençoada, sim, mas entre todas as mulheres, primeira discípula do teu Filho, mãe
do Deus connosco. Ajuda-nos a ser sempre Igreja com e entre as pessoas, fermento
na massa de uma Humanidade que invoca justiça e esperança.
“Imaculada,
mulher de infinita beleza, cuida desta cidade, desta humanidade. Indica-lhe
Jesus, leva-a a Jesus, apresenta-a a Jesus. Mãe, Rainha da paz, roga por nós!”
2025.12.09
– Louro de Carvalho
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