As festas têm realce na vivência comunitária da fé cristã, sobretudo, no contexto das paróquias e das tradições locais. Porém, a sua celebração, marcada por fortes raízes culturais e sociais, tem enfrentado alguns desafios, face às transformações da sociedade.
No contexto das festas dos santos populares em curso e na iminência das inúmeras festas de verão, parece oportuna a releitura da orientação que, a 4 de janeiro de 2004, a arquidiocese de Braga, através da pena do então arcebispo primaz, D. Jorge Ferreira Ortiga, ofereceu à comunidade eclesial, num texto de reflexão para que “as festas recuperem e mantenham o seu verdadeiro sentido cristão”, obviando aos desvios da sua finalidade, e para que, aliando tradição e renovação, interioridade e expressão comunitária, se promovam celebrações fautoras de evangelização, de encontro fraterno e de genuína alegria cristã.
Sempre o Cristianismo se posicionou como estímulo à alegria, vivida na consciência e na expressão comunitária exterior. Sinal eminente desta alegria são as festas cristãs, quer tenham sido cristianizadas sobre festas anteriores ao fenómeno cristão, quer sejam típicas da Igreja Católica. Com efeito, alguns aspetos da vida de Cristo, da Virgem Maria, dos anjos, dos santos e das santas tornaram-se pretextos para conciliar a dimensão interior – apresentação do Mistério ou da vida hagiográfica (a recordar para viver) – e exterior, como ponto de encontro para saborear, no convívio e na concórdia, a alegria vivenciada na interioridade da celebração.
Nem sempre foi fácil dar prioridade ao interior a transbordar para as manifestações festivas, mas sempre se direcionou a festa neste sentido. Porém, o contexto da vida moderna, com tantas solicitações, exige que as comunidades se esforcem por darem sentido cristão às suas festas. Não se condena ou proíbe a expressão antropológica dos sinais de alegria, mas há que discernir e criar, à volta das festas cristãs, ambiente contrário ao mero mundanismo. É necessário recriar o espírito genuíno da festa e recrear a alma e o corpo, mas dentro dum conjunto de orientações que deem às festas a sua dimensão cristã ou a recuperem.
As festas não podem ser pretexto para o desfile das vaidades para expressão de bairrismo ou para a busca de protagonismo pessoal, familiar ou grupal, nem apenas um ato ditado pela tradição local, por vezes, sem consciência do mistério em causa ou do facto que deu origem à festa, mesmo da parte dos seus agentes e colaboradores.
Neste sentido, as comunidades deveriam refletir sobre os programas das festas religiosas e as comissões deveriam aprimorá-los, organizarndo um programa diferente das festas meramente profanas. É pena que, em festas dedicadas a uma entidade sacra, a missa e/ou a procissão ocupem um canto escondido ou eclipsado do programa, polvilhado de bailes, de conjuntos musicais e de jogos pretensamente populares. Há, no entanto, um vasto leque de opções que proporcionam muita festa exterior, sem distrair ou fazer esquecer o essencial da festa cristã, mesmo que ela ocorra em paralelo com uma festa com forte componente cívica, a cargo de uma autarquia, de uma organização social, cultural ou humanitária ou de uma organização militar ou paramilitar. O diálogo tudo pode conseguir. E as orientações pastorais gizadas pela arquidiocese primaz ousavam dar oportunidade às comunidades para concretizarem a renovação sinodal, na fidelidade à Tradição e na abertura à novidade cristã.
O texto do então arcebispo primaz enfatiza que a Igreja estima as festas, porque fazem parte da vida humana e são formas de viver e de manifestar a fé. Visam promover o culto devido a Deus, à Mãe de Deus, aos anjos, aos santos e às santas, constituindo um meio de são convívio, de recreio e de promoção cultural. Graças a elas, o povo alimentou a fé e sentiu o repto “à conversão e à santidade”. Muitas eram precedidas de tempos fortes de reflexão da Palavra, de oração, de penitência, de celebração de sacramentos e de formulação de propósitos em direção à conversão constante. Era o caso das novenas e dos tríduos.
Este contexto de mudança reclama solicitude pastoral, “com sentido de discernimento lúcido e sereno, com agilidade mental e com criatividade capaz de nos colocar, com dignidade e eficácia”, no âmbito da missão evangelizadora e no rumo da História. Se os tempos e os homens são outros, se a cultura, os problemas e as situações são outras e se a vivência da fé é mais débil, não podemos olvidar que este é o tempo em que nos foi dado viver e no qual temos de saber encarar os novos desafios.
A paróquia, nas várias instâncias de participação e de corresponsabilidade, deve refletir, com sentido crítico e pedagógico, sobre as festas religiosas que promove, sobre o que haverá nelas de abusivo, por que isso acontece e como proceder para que se conformem com o sentido cristão, com a solidariedade, com a sadia diversão e com a promoção cultural.
As festas religiosas “devem ser promovidas por pessoas que tenham a vivência da fé, o sentido de Igreja, a estima do povo e a disposição de cumprirem as normas sobre as festas religiosas”. Ora, como nem sempre assim acontece, muitas festas – mercê de comissões pouco esclarecidas na fé e pouco firmes nos valores – descaindo neste processo de transformação, afastaram-se da finalidade das celebrações. Tais desvios geram tensão entre comissões de festas e estruturas paroquiais ou causam divisões na comunidade, guerrilhas permanentes e até de escândalos que a ninguém deixam ficar bem, sendo explorados por quem goza com a fraqueza alheia.
Apesar de a maior parte das comissões organizadoras se constituírem com o conhecimento e a aprovação do Pároco e dos seus órgãos colegiais, há tendência para se subtraírem à autoridade paroquial, nomeadamente do pastor da comunidade.
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Para ajudar a promover a dignificação das festas, o então arcebispo primaz,
com alguma explanação, evocou a Nota
Pastoral sobre Festas Religiosas, de 28 de janeiro de 1988, para a
Arquidiocese de Braga, de que faz breve síntese.As comissões de festas devem ser formadas por cristãos convictos, que deem garantias do cumprimento das normas da Igreja e do desejo de trabalharem de harmonia com o pároco e com os órgãos colegiais da paróquia. Por isso, é o pároco quem aprova e nomeia as comissões, ouvidas as instâncias de corresponsabilidade paroquial, nomeadamente o Conselho Económico e, se existir, o Conselho Pastoral. Assim, não deve a comissão cessante apresentar ao pároco, sem estes passos prévios, a nova comissão de festas para ser lida e nomeada no fim da Eucaristia ou de outro serviço religioso. Tudo deve ser previamente combinado, em espírito de entendimento e de comunhão eclesial.
Embora volte a ser a comissão do ano anterior a fazer a festa, não deve renomeada sem que sejam apresentadas ao Conselho Económico, e por este ao povo, as contas da última festa, devendo o saldo ser entregue ao Conselho Económico, para ser aplicado a bem do culto e da comunidade cristã, podendo, se o Conselho Económico achar bem, transitar, no todo ou em parte, para a receita da festa do ano seguinte. As comissões de festas ou mordomias de nenhum modo podem considerar-se donas do saldo, cabendo-lhes apenas a sua administração, no tempo vigente para a sua mordomia. Embora possam manifestar a sua ideia e gosto, não podem, por sua iniciativa, gastar esse dinheiro nesta ou naquela obra, à revelia do Concelho Económico, nem agir como se lhes pertença a administração da capela, durante o ano em que são comissão. E, se as festas são promovidas por obrigação estatutária de confrarias ou de irmandades, também estas devem apresentar as contas à paróquia.
O Conselho Económico é o órgão responsável pela gestão, conservação e enriquecimento de todo o património paroquial que não tenha corpos sociais próprios, e responde por ele. E este não pode fazer obras sem projeto, pareceres técnicos e licença da autoridade eclesiástica competente. Assim, as verbas recolhidas para a realização de festas devem ser depositadas em conta aberta em instituição bancária, em nome de “Fábrica da Igreja Paroquial de ………..Comissão de Festas de ………..”, a ser e movimentada por dois de três membros da respetiva comissão de festas. Não podem ser depositadas em nome pessoal.
A programação de qualquer festa religiosa deve ser feita, sempre, em comunhão com o pároco, o qual, enquanto primeiro e principal responsável por qualquer festa religiosa, deve ser o elo de unidade e de comunhão. Deve evitar-se o esbanjamento de verbas em programas festivos com número exagerado de conjuntos, de bandas, etc., tantas vezes, em duplicado e amontoados, sem grande espaço, no local, e sem tempo para atuarem, mas sob bairrismo, sob espírito de vaidade ou de competição. Também se deve evitar satisfazer, com a programação, uma só camada etária da comunidade esquecendo a maioria do povo.
Para as festas religiosas, exceto as que se efetuam apenas dentro do templo – requer-se licença prévia da Cúria Diocesana, que será concedida para cada caso, mediante requerimento assinado pelo principal responsável da equipa promotora e pelo pároco, com a apresentação do respetivo programa.
A par da promoção e das expressões da cultura local que for possível e desejada, fomente-se, em horários nobres e concorridos, a cultura da fé, pela reflexão da Palavra de Deus, pela celebração dos sacramentos, pela oração, por comunicações ou palestras para famílias, para jovens, para adultos, para crianças, etc..
A Eucaristia é o ponto alto da festa religiosa. Por isso, deve ter lugar de relevo e ser a hora conveniente para toda a comunidade poder fazer dela o centro da festa e nela participar. Como princípio, dê-se preferência, na animação da Missa da Festa, ao grupo coral paroquial, para levar a assembleia a participar com cânticos conhecidos. Se há mais do que um grupo coral, será eclesial que se associem, ultrapassando possíveis divergências nada cristãs e, juntos, colaborem para que a Eucaristia seja mais vivida e mais bem participada. Evite-se, como norma, a missa a “grande instrumental”, a não ser com grupo de boa formação litúrgica e capaz de envolver a Assembleia na participação.
Se houver sermão integrado na Eucaristia, deve ser feito em tom de homilia, não descurando a apresentação, os conteúdos e a forma, pois também depende dele a vivência da Eucaristia, da Festa, da interiorização da Palavra, da conversão e da vida cristã dos fiéis.
As procissões podem ser ocasião privilegiada de catequese. Para tanto, devem decorrer com dignidade e manter-se imunes de manifestações pagãs, avessas à doutrina da Igreja, e ser pensadas e preparadas. A improvisação e o desleixo banalizam. Há de, pois, cuidar-se de um ambiente capaz, possibilitando a reflexão. Os quadros bíblicos, os textos lidos e os cânticos apropriados, sobretudo, se o percurso for longo e houver amplificação sonora, podem servir tal objetivo. O povo há de ser sensibilizado e convidado para se integrar na caminhada, ajudando-o, com informação e catequese, a descobrir o sentido da procissão e a importância do testemunho. É necessário relevar que não é de bom gosto nem de sentido evangélico afixar dinheiro nas imagens ou nos seus mantos ou figurar pessoas com trajes e idades inconvenientes ou sem capacidade de comportamento a condizer com a missão a desempenhar na procissão. E convém que, ao convidarem-se as pessoas para pegarem ao Pálio ou para terem outras missões na procissão, se informem sobre como se devem apresentar.
Mesmo com licença da autoridade civil, é de ter em conta o trânsito nas estradas, sobretudo nas de grande movimento e sem vias alternativas, para não dar lugar a justas reclamações e à revolta contra a religião por pessoas que viajam, que “têm os seus planos, as suas urgências e direitos” que não lhes devemos subtrair.
É lícito fazer promessas como expressão de ação de graças, de despreendimento e de oferta de nós mesmos. Porém, salva a legítima intenção manifestada pelos oferentes, o dinheiro que delas resulte destina-se à promoção do culto e à conservação do lugar sagrado, à evangelização, à catequese e à caridade, em sintonia com o pároco. Reprova-se, pois, que as comissões de festas, se apoderem dele e o utilizem como entendem, o que nem a autoridade eclesiástica pode fazer. A venda de ouro ofertado em cumprimento de promessas ou ex-votos que se possam conservar está proibida e só pode ser autorizada pela Santa Sé, através da Cúria Diocesana. Não se façam promessas cujo cumprimento dependa da vontade de outros ou os sacrifique. Quando se hajam feito, devem ser comutadas, junto de algum sacerdote.
Os Santuários merecem carinho especial. Aí se deve privilegiar a prioridade da Evangelização e a dignidade da celebração dos sacramentos. Os locais de peregrinações e de romarias devem ser preservados do ambiente tão comum às festas religiosas ordinárias. O povo, que aprecia as festas e o barulho, também busca os locais de silêncio, de paz, de recolhimento, de oração, de beleza contemplativa, onde a Natureza se associa à expressão da bondade de Deus. A preocupação deve ser preservar o ambiente e o espaço, para que as peregrinações e as romarias correspondam ao dinamismo da fé e se tornem interpelativas para quantos procuram esses lugares. Não podem ser mero cumprimento formal de Estatutos, mas ter dinâmica própria e uma ideia central – em sintonia com o programa pastoral – que esteja até no acolhimento, por amplificação sonora condigna e por sacerdote ou leigo preparado para o efeito. Os peregrinos não devem sair do santuário sem uma ideia a viver.
Párocos, reitores e capelães dos santuários hão de explicar aos fiéis e, em especial, aos mordomos ou membros das comissões de festas esta doutrina e disciplina. Com o esforço de todos, ir-se-á obtendo a dignificação das festas religiosas, atingindo-se a sua finalidade. Apela-se à compreensão e à colaboração das paróquias, para que, pedagogicamente, em diálogo sincero e prudente, se cumpram todas as normas, que redundarão em glória de Deus, em bem espiritual dos cristãos e em sadio recreio e exercício cultural do Povo de Deus.
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De igual modo, em batismos, crismas, casamentos e comunhões se deve
privilegiar o mistério cristão, em vez da hipervalorização da foto, da feira de
vaidades e do lado social.
2025.06.23 – Louro de Carvalho
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