domingo, 22 de junho de 2025

Mergulhar no mistério de Jesus Cristo

 
A liturgia do XX domingo comum, no Ano C, pretende que mergulhemos no mistério de Jesus, não propriamente para ampliarmos conhecimentos sobre uma figura histórica ou para cunharmos fórmulas de fé, mas para, crendo em Jesus, nos tornarmos seus discípulos.
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No Evangelho (Lc 9,18-24), Jesus confronta os discípulos com a questão decisiva discipular: “Quem dizeis que Eu sou?” Depois, convidando-os a ir com Ele até Jerusalém, até à cruz, até ao dom total da vida por amor, garante-lhes que a vida vivida em chave de amor, de serviço, de entrega, de dom, não é desperdiçada, mas plenamente realizada.
O episódio evangélico em apreço é comum aos três Sinóticos. Mateus e Marcos situam-no na região de Cesareia de Filipe, cidade edificada por Herodes Filipe, no início da era cristã, localizada no Norte da Galileia, no sopé do Monte Hermon, junto de uma das nascentes do rio Jordão (na zona da atual Bânias). Ao invés, Lucas não valoriza o lugar geográfico onde decorreu este diálogo entre Jesus e os discípulos, mas salienta que Jesus tinha ido orar e que os discípulos estavam com Ele. 
A narração lucana começa, pois, com referência à oração de Jesus. Lucas põe, com frequência, Jesus a rezar, antes de acontecimentos decisivos, visto que a oração é o lugar do encontro de Jesus com o Pai. Depois de rezar, Jesus tem sempre uma importante mensagem, que vem do Pai, para comunicar aos discípulos. Por isso, o diálogo de Jesus com os discípulos é momento importante da revelação de Jesus.
A princípio, o diálogo centra-se na resposta à questão: “Quem é Jesus?”; depois, Jesus anuncia aos discípulos a sua Paixão e morte, em Jerusalém; e, por fim, Jesus define as condições que os discípulos devem assumir para O seguirem.
Sobre a questão decisiva discipular, Jesus coloca-a em duas vertentes: o que é que as pessoas, em geral, dizem d’Ele e o que é que os próprios discípulos pensam d’Ele.
Os contemporâneos de Jesus veem-No em continuidade com o passado (“é João Baptista”, “Elias” ou “algum dos profetas”) e não captam a condição única de Jesus. Reconhecem apenas que Jesus é um homem convocado por Deus e enviado ao Mundo com uma missão, como os profetas do Antigo Testamento. Na sua ótica, Jesus é apenas alguém bom, justo, generoso, que escutou os apelos de Deus e que Se esforçou por ser um sinal vivo de Deus, como tantos outros homens antes d’Ele. Não é o suficiente: significa que os “homens” não entenderam a novidade de Jesus, nem a profundidade do seu mistério.
Já os discípulos pensam muito além da opinião comum. Acompanharam Jesus por toda a Galileia, conviveram com Ele, noite e dia, escutaram as suas palavras e testemunharam os seus gestos. Viram, pois, em Jesus uma dimensão que as outras pessoas não captaram. E Pedro, porta-voz do grupo dos discípulos, resume o sentir da comunidade do Reino na expressão: “(És) o Messias de Deus”. Ora, dizer que Jesus é o “Messias” (o Cristo, o “ungido de Deus”) significa dizer que Ele é o libertador que Israel esperava, enviado por Deus para libertar o seu Povo e para lhe oferecer a salvação definitiva.
Todavia, a compreensão de Jesus como Messias podia prestar-se a graves equívocos, numa altura em que o título de Messias estava conotado com esperanças político-nacionalistas. Por isso, Jesus ordenou aos discípulos que não falassem disso a ninguém.
Jesus tem consciência de que os discípulos tinham ideias erradas acerca do Messias e da sua missão. Por isso, explica-lhes que o messianismo não passa pelos triunfos políticos ou militares, mas pela cruz e pelo dom da vida. E, depois dos confrontos que teve com os líderes religiosos judaicos, está bem consciente do que O espera, se continuar a ser fiel ao desígnio do Pai. As lideranças recusam o Reino de Deus e farão tudo para eliminar a proposta de Jesus. Assim, para que tudo fique claro, fala aos discípulos do destino que o espera em Jerusalém. E esclarece que a sua entrega na cruz não é o ponto final da sua vida: Ele ressuscitará “ao terceiro dia”, porque a entrega da vida por amor é fonte de Vida definitiva.
Depois de anunciar este seu destino, Jesus convida os discípulos a seguirem um percurso similar: se querem ser seus discípulos, têm de “renunciar a si mesmos”, de “tomar a cruz” e de O seguir no caminho do amor, da entrega e do dom da vida. Jesus não obriga, apenas propõe; e cada um, sabendo o que tal decisão implica, faz a sua escolha.
Renunciar a si mesmo significa abdicar do egoísmo e da autossuficiência, para fazer da vida um dom a Deus e aos outros. O discípulo não pode viver fechado em si, prisioneiro dos seus interesses e critérios pessoais, preocupado em concretizar os seus projetos de riqueza, de segurança, de bem-estar, de domínio, de êxito, de triunfo. Quem opta pelo seguimento de Jesus passa a viver como Ele, pondo toda a sua vida ao serviço do projeto de Deus e do bem dos irmãos.
“Tomar a cruz” é estar disponível para fazer da vida, até às últimas consequências, um dom de amor. Foi o que Jesus fez. Porém, Jesus não viveu essa entrega apenas no calvário; Ele gastou toda a sua vida, desde o nascimento até à morte, a fazer o bem. Tomar a própria cruz e seguir Jesus é fazer de toda a vida – diariamente, todo o dia, e não apenas pontualmente – um dom de amor, ao serviço de Deus e dos irmãos.
No final, Jesus explica aos discípulos as razões por que devem abraçar a “lógica da cruz”. Convida-os a entender que dar a vida por amor não é perdê-la, mas ganhá-la. Quem é capaz de dar a vida a Deus e aos irmãos ganha a Vida eterna, a Vida verdadeira.
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Na primeira leitura (Zc 12,10-11;13,1), o profeta Zacarias desafia os habitantes de Jerusalém a olharem para um misterioso profeta “trespassado”, cuja entrega se transformou em fonte de vida nova para os seus irmãos. O autor do Quarto Evangelho identificará tal figura profética com o próprio Cristo.
Zacarias, filho de Baraquias, profetizou em Jerusalém, no pós-exílio, na época do rei persa Dario. A sua missão prolongou-se por cerca de dois anos (entre 520 e 518 a.C.). Foi contemporâneo do profeta Ageu, com que teve papel preponderante na reconstrução do Templo de Jerusalém. Na linha dos grandes profetas, prega a conversão, formula exigência éticas, critica o culto vazio e injusto. Refere a vinda de um enviado, que chama “Gérmen”, através do qual Deus afastará a iniquidade do país, “num único dia”. O Templo será reconstruído, a Terra purificada e Jerusalém voltará a ser a cidade onde Deus reside no meio do Povo.
O profeta anuncia que Deus vai derramar, sobre a casa de David e sobre os habitantes de Jerusalém, “um espírito de piedade e de súplica”, o qual provocará uma transformação interior que levará à conversão e recolocará a comunidade na órbita de Deus.
A transformação operada levará o povo a olhar para aquele que trespassaram, lamentando-o “como se lamenta um filho único” e chorando-o “como se chora o primogénito”. Inicialmente, o texto parece identificar o “trespassado” com o próprio Deus (“ao olhar para Mim, a quem trespassaram”); mas, a seguir, distingue Deus e a misteriosa personagem. Assim, o dativo “para Mim” significará que Deus se sente atingido pela morte infligida ao seu enviado.
Alguns identificam este mártir com o rei Josias, morto, em Megido, em combate contra os egípcios no ano 609 a.C.; outros consideram que a figura se inspira no sumo-sacerdote Onias III, assassinado por causa da fidelidade à Aliança, ao Templo e aos valores do povo judaico. Porém, o mais provável é que o “trespassado” seja um profeta anónimo, da época de Zacarias, por cuja morte os habitantes de Jerusalém se tornaram responsáveis. A figura que melhor ilumina esta passagem é a do “servo sofredor” do Deuteroisaías, apesar de os termos aqui usados serem diferentes dos do quarto cântico do Servo de Javé. Como acontece com o “servo de Javé”, o sacrifício deste mártir é fonte de transformação e de purificação dos corações.
Nestes breves versículos, a “casa de David” é repetidamente evocada. Provavelmente, haverá aqui a sugestão de uma ligação entre a figura do “trespassado” e a promessa messiânica. Por isso, João, o autor do Quarto Evangelho, verá a concretização da figura aqui evocada em Jesus, morto na cruz, com o coração trespassado pela lança do soldado.
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Na segunda leitura, (Gl 3,26-29) Paulo convida os cristãos das comunidades da Galácia a “revestirem-se” de Cristo. Revestir-se de Cristo é fazer de Cristo a sua referência, viver em comunhão com Ele, caminhar ao ritmo d’Ele, abraçar a sua missão. Os que fazem tal opção entram na grande família de irmãos, iguais em dignidade e herdeiros da vida em plenitude.
Os Gálatas eram um povo de origem céltica que, no início do séc. III a.C., se dirigiu para Oriente, passou a Macedónia e chegou à Ásia Menor (atual Turquia). Depois de algumas vicissitudes, fixaram-se nos planaltos da Anatólia, no coração da Ásia Menor, na região de Ancira (atual Ancara), que se tornou a capital do reino gálata. Em 189 a.C., os Gálatas dessa região foram derrotados pelos Romanos, mas ficaram com ampla autonomia. O rei gálata Amintas, ao morrer (ano 25 a.C.), legou a Roma os seus territórios. E a Galácia ficou província romana.
A Carta aos Gálatas sugere que Paulo, ao atravessar a Galácia, se deteve, algum tempo, na região, afetado por um problema de saúde. Acolhido pela generosa hospitalidade das gentes da região, o apóstolo anunciou-lhes o Evangelho.
Paulo soube, a dada altura, que alguns pregadores cristãos tinham passado nas comunidades cristãs da Galácia e deixado um rasto de confusão. Pelo que o apóstolo diz na Carta, percebe-se que se trata de judaizantes, isto é, cristãos de origem judaica que procuravam impor a prática da Lei de Moisés e, em particular, a circuncisão. Esses judaizantes condenavam Paulo e afirmavam que ele não estava em comunhão com os outros apóstolos.
Paulo estava convicto de que a circuncisão não era importante para a adesão a Cristo. A Lei moisaica fora superada pela novidade de Jesus Cristo. Os Gálatas não devem deixar-se enganar pelos que lhes querem impor a observância da Lei de Moisés. E o apóstolo adverte que tanto os ritos judaizantes como os rituais laxistas do paganismo, apenas prenderão os Gálatas numa escravatura da qual Cristo já os tinha libertado. É a liberdade que está em causa.
O trecho em referência integra a segunda parte da Carta aos Gálatas. Nesta secção, Paulo desenvolve o tema central da carta: a salvação chega-nos por Jesus Cristo, que deu a vida para libertar os homens do pecado. Quem salva é Cristo e não a Lei.
Nos versículos que antecedem esta perícopa, Paulo compara a Lei ao carcereiro e ao pedagogo greco-romano. O carcereiro era, não raro, exemplo de crueldade; o pedagogo (geralmente, um escravo pouco instruído que acompanhava a criança à escola e a mantinha disciplinada) também não era muito apreciado e evocava a imagem de reprimendas e de castigos. É verdade, segundo o apóstolo, que é melhor ser conduzido pela mão do que perder-se no caminho, mas seria insensato aspirar a viver sempre no cárcere ou considerar como ideal ser sempre conduzido pela mão de um tutor, sem experimentar a liberdade.
Ao aderirem a Cristo, os Gálatas, porque encontraram a vida plena, não precisam do pedagogo – que é a lei de Moisés – para os conduzir. Quando encontraram Cristo, atingiram a maioridade e ficaram com todos os seus direitos, como filhos e como herdeiros.
A adesão plena a Cristo deu-se no batismo. Aí, os crentes foram “revestidos de Cristo” e tornaram-se “filhos de Deus”. Ser revestido de Cristo significa que, entre a pessoa batizada e Cristo, se estabeleceu uma relação que que toca o âmago da existência. Paulo, noutra passagem, expressa essa identificação de forma muito bela: “Já não sou eu que vivo, mas é Cristo que vive em mim.” Pelo batismo, o cristão assume a existência do próprio Cristo e torna-se, como Ele, a pessoa que acolhe, plenamente, a vontade de Deus, servindo os irmãos. O batizado identifica-se com Cristo, escuta-O, vive ao seu estilo, em plena comunhão com Ele. Na pessoa batizada, circula a vida de Cristo: é como a veste que cobre o crente e que ele nunca deve tirar.
A grande consequência resultante desta condição é que o cristão é livre. Graças à vida que circula nele, a que recebeu de Cristo, já não está sujeito à escravatura do egoísmo, do pecado e da morte. Caminha, guiado por Cristo, ao encontro da vida plena e total.
Por outro lado, a identificação plena com Cristo elimina toda a discriminação entre os batizados. É a mesma vida, a de Cristo, que circula em todos. Não há fronteiras de raças (“não há judeu nem grego”), nem barreiras sociais (“não há escravo nem livre”), nem diferenças de condição sexual (“não há homem nem mulher”), porque todos são um só em Cristo. Todos são “filhos”, com igual direito, quanto à herança, pois é o mesmo Deus que é Pai de todos e que oferece a todos a mesma vida em plenitude.
Para todos fica o repto: Depois de conhecermos isto, estamos dispostos a voltar à escravidão?

2025.06.22 – Louro de Carvalho


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