terça-feira, 9 de dezembro de 2025

Inovação no tratamento da leucemia mieloide aguda: a MYLeukaemia

 

De acordo com um dos mais recentes estudos globais da leucemia, da Disease Burden, Risk Factors, and Trends of Leukaemia: A Global Analysis, Frontiers in Oncology (2022), esta doença foi responsável por, aproximadamente, 2,5% dos novos casos de cancro e por 3,1% da mortalidade associada a ele. Assim, este tipo de cancro do sangue matou, em 2020, mais de 311 mil pessoas, no Mundo, com mais de 474 mil novos casos. Ora, a investigação dos seus fatores de risco e das tendências epidemiológicas ajuda a descrever a distribuição geográfica e identificar grupos populacionais de alto risco.
Nas últimas décadas, o tratamento da doença evoluiu com a introdução dos transplantes de medula óssea. O primeiro transplante bem-sucedido realizou-se em 1956, e o primeiro, em Portugal, foi realizado em maio de 1987, no Instituto Português de Oncologia (IPO), em Lisboa. A taxa de sobrevivência, a cinco anos, para alguns tipos de leucemia duplicou, passando de 34%, no período de 1975 a 1977, para 70%, entre 2014 e 2020, nos Estados Unidos da América (EUA), segundo a Blood Cancer United – organização voluntária de saúde, fundada em 1949 e dedicada à luta contra o cancro no sangue em todo o Mundo, que financia pesquisas sobre a cura da leucemia, do linfoma, da doença de Hodgkin e do mieloma. E os transplantes de medula óssea ou de células estaminais complementam aquele que continua a ser o vetor primordial de tratamento da doença: a quimioterapia.

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Entretanto, Ricardo Figueira, em artigo sob o título “Portugueses criam avatar da medula óssea que pode revolucionar tratamento da leucemia”, publicado pela Euronews, a 9 de dezembro, dá-nos conta da iniciativa que surgiu na Universidade do Porto (UP) e assentou arraiais na Madeira, de onde são naturais dois dos protagonistas da MYLeukaemia, recém-contemplada com dois galardões de inovação da União Europeia (UE).
Na verdade, um grupo de investigadores do i3S – Instituto de Investigação e Inovação em Saúde da UP escolheu um alvo prioritário: a leucemia mieloide aguda (LMA), uma das leucemias agudas mais frequentes e mais agressivas em adultos. Não é uma doença única, pois “reúne múltiplos subtipos e perfis moleculares, com respostas muito diferentes às terapias disponíveis”. E, apesar dos avanços, os resultados continuam duros: a taxa de sobrevivência, a cinco anos, ronda, em média, 25-30%, diminuindo, significativamente, com a idade.
Mais do que os números, importa a pessoa. Além do diagnóstico, cada um é portador de historial clínico e biológico próprio: idade, comorbilidades, terapêutica e caraterísticas biológicas únicas da doença, que podem determinar como responder ao tratamento. Por isso, importa saber como adequar a terapia ao doente, como criar um quadro terapêutico ajustado à pessoa concreta e em resposta às suas necessidades biológicas. Para tanto, o grupo criou um modelo inovador. A ideia foi desenvolvida por Hugo Caires, investigador principal, Hugo Prazeres, technology transfer officer, e Diana Sousa, farmacêutica, no âmbito da investigação que desenvolviam na UP, financiada pela Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT), ora extinta e cujas competências passaram para a nova entidade, a Agência para a Investigação e Inovação (AI2).
Hugo Caires, CEO da MYLeukaemia, considera que a questão era perceber a necessidade da criação de “modelos mais realistas” para entender o que se passa nos doentes com LMA aguda e porque, após a terapia, muitos deles “têm recidivas da doença”. Na verdade, “cerca de metade dos doentes que entram em remissão, numa primeira linha de quimioterapia de indução/consolidação, após um ano, voltam a ter uma recidiva da doença”.
Da investigação na UP, passou-se à criação de uma empresa que pretende fazer a diferença, no campo das terapias para a leucemia: a MyLeukaemia está em fase de formação, mas venceu, recentemente, dois prémios nos EIT Inovation Awards, os prémios anuais do Instituto Europeu de Inovação e Tecnologia (EIT), instituição da UE sediada em Budapeste, na Hungria, que apoia as startups europeias. O projeto venceu nas categorias “Saúde” e “Prémio Especial Regiões Ultraperiféricas”, pois está sediado na Madeira. E foram também atribuídos prémios a duas outras startups portuguesas, a ProSpec, na categoria “Matérias-primas”, e a SmartRoads, em “Cidades Inteligentes e Mobilidade”.
Da UP o grupo voou para a Madeira, donde são originários Hugo Caires e Diana Sousa e onde o grupo assentou arraiais para iniciar os trabalhos, tendo entabulado diálogo com o governo regional e com o Serviço de Hematologia do SESARAM (Serviço de Saúde da Região Autónoma da Madeira), com vista a futura colaboração. Porém, há que esperar alguns anos, até a tecnologia poder beneficiar os doentes, já que “terá de passar por uma exaustiva fase de testes”.
Neste quadro, Hugo Caires pormenoriza que é preciso “um estudo-piloto, geralmente, observacional”, que pode demorar um ano, para estabelecer a capacidade de a nova tecnologia (organ-on-a-chip) prever que doentes, à partida, não responderão à terapia-padrão (“entre os 20 e os 30 doentes”). Depois, há um processo muito bem regulamentado e delineado, muito bem validado, da parte das entidades nacionais e das agências europeias (os Notifying Bodies), que supervisionam o desempenho da tecnologia em uso clínico.
Só passada essa validação em estudos multicêntricos, prossegue Hugo Caires, com mais de 100 a 150 doentes, se passará à fase seguinte. “Estamos a falar, geralmente, de três anos de investigação árdua, em colaboração com os clínicos, com muito investimento para conseguir levar o projeto a bom porto e é só então é que, em caso de parecer positivo, por parte das entidades competentes, é atribuída a chamada validação CE-IVD (in vitro diagnostics) e a tecnologia pode ser comercializada para diagnósticos in vitro e ficar disponível para servir os hematologistas e, por conseguinte, os doentes com neoplasias hematológicas”, explicitou.
E, porque “a inovação não se faz de um dia para o outro”, o CEO da MYLeukaemia lembra que “é preciso regulamentar e validar, com responsabilidade”, para que, ao chegar ao doente, “seja segura, eficaz” e permita a tomada de decisão clínica “baseada numa evidência funcional prévia, facultada por estas novas tecnologias, o que permita aumentar a sobrevivência destes doentes”.
Estamos a falar do avatar da MYLeukaemia, um modelo de medula óssea em organ-on-a-chip que permite testar, em laboratório, como células leucémicas respondem a diferentes terapias, uma abordagem de oncologia de precisão funcional, pensada para apoiar decisões terapêuticas no futuro. Nesta fase, o grupo trabalhou com linhas primárias e com linhas celulares leucémicas humanas (células derivadas de doentes e hoje comercializadas ou disponibilizadas por biobancos) – prática comum em investigação, para otimizar o protótipo e para validar o modelo, antes de se avançar para amostras clínicas.
A partir dessas células humanas, é construído um modelo que replica a medula óssea que todos partilhamos. Trata-se, como explica Hugo Caires, de um chip do tamanho da moeda de um euro, em que se cria um microambiente muito semelhante ao da medula óssea humana, “que tem uma parte óssea externa e uma componente gelificada no centro, com uma rede muito vascularizada”. No dizer do especialista, mimetiza-se, em laboratório, “o que aconteceria no corpo do doente”, tendo este tipo de modelo ajudado a “estudar como as células leucémicas interagem com o seu ‘refúgio’ na medula”, incluindo mecanismos associados à evasão à quimioterapia e à recidiva.
A etapa seguinte é tornar o avatar gradualmente mais personalizado, integrando células leucémicas do doente ao microambiente criado no chip e testando diferentes regimes terapêuticos já usados na prática clínica, a fim de gerar evidência funcional que possa informar o clínico em tempo útil. “Hoje, muitas decisões seguem protocolos, porque faltam ferramentas funcionais rápidas que ajudem a antecipar qual é a melhor opção terapêutica para cada indivíduo, antes de, efetivamente, a administrar ao doente”, explicita o investigador.
A empresa tenta contactos com departamentos de Hematologia e pretende testar, em paralelo, com amostras clínicas do doente, pondo-as em contacto com o dispositivo, para atuarem como avatares de medula óssea humana e darem resposta fisiológica ao que será esperado, quando a terapia for administrada ao doente. Os estudos-piloto deverão ser realizados na Madeira e, a seguir, envolver hospitais da região Norte do país, o próprio i3S e o Instituto de Patologia e Imunologia Molecular da UP (IPATIMUP).
Hugo Caires não promete uma revolução, até ter os resultados do estudo-piloto, mas sustenta que a ideia permitirá aos clínicos fazer uso mais inteligente das terapias disponíveis. Será, pois, “um instrumento útil na batalha contra um adversário muito poderoso: uma doença bastante agressiva e difícil de tratar, como é a leucemia mieloide aguda, um dos tipos mais comuns de leucemia” que se declina “em mais de 11 doenças diferentes, devido a mutações diferentes que dão origem a entidades clínicas distintas com elevada heterogeneidade na resposta terapêutica à terapia-padrão”. O objetivo é, para o investigador, “melhorar os resultados clínicos destes doentes, que são bastante pobres, atribuindo a terapia certa ao doente certo, com base num diagnóstico prévio de medicina de precisão funcional nas células leucémicas do próprio doente”.
Os 10 mil euros do prémio não são suficientes para financiar a investigação, mas constituem boa ajuda para a abertura da empresa, confessa o CEO. Porém, mais do que o dinheiro, foi importante receber o prémio pelo reconhecimento de grande potencial, a nível europeu, que oferece à MYLeukaemia mais argumentos para obter financiamentos por parte das instituições europeias: “Acredito que a MYLeukaemia será preponderante, daqui a alguns anos, assim que tiver a sua validação e aprovação, mas é um processo moroso, para o qual trabalhamos todos os dias”, observa Hugo Caires.
Ainda, do prémio, Hugo Caires disse que é prova de que, mesmo com menor financiamento, Portugal ombreia com os outros países da UE, no respeitante à inovação tecnológica, tendo as empresas portuguesas recebido quatro dos nove prémios atribuídos pelo EIT, dois dos quais foram para a MYLeukaemia: “Significa que Portugal é capaz de fazer ciência de alto nível, Deep Tech com um potencial enorme, sendo agora necessário encontrar os instrumentos financeiros para que estas startups portuguesas consigam ultrapassar o chamado ‘vale da morte’ do financiamento’, concluiu.
O grupo vai formar a empresa, incubá-la na Startup Madeira e, se tudo correr como previsto, passada a barreira dos testes clínicos, exportará o conceito para o resto da UE, tornando-se empresa de referência em tratamentos personalizados de cancros do sangue.

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Já em março de 2023, os doentes terminais com leucemia que não respondiam ao tratamento, passaram a ter esperança de cura, graças à nova pílula experimental, a revumenib. E, embora nem todos os doentes tenham mostrado remissão completa, os cientistas permaneciam esperançosos, pois os resultados indicavam que a pílula abriria caminho à cura da leucemia.
Este medicamento eliminou completamente o cancro num terço dos participantes, num ensaio clínico há muito esperado nos EUA. “Ficámos com muita esperança, depois dos resultados dos pacientes que receberam este medicamento. Esta era a última oportunidade. […] Eles progrediram em múltiplas linhas de terapia e numa fração deles, em cerca de metade, desapareceram as células de leucemia da medula óssea, revelou o coautor do estudo Dr. Ghayas Issa, médico do MD Anderson Cancer Center da Universidade do Texas, nos EUA. 
A LMA é um tipo de cancro que ataca a medula óssea, onde são produzidas células sanguíneas, e causa a produção descontrolada de células defeituosas. A revumenib é uma nova classe de terapia orientada para a leucemia aguda que inibe uma proteína específica, a menin. O medicamento funciona através da reprogramação das células de leucemia de volta às células normais, visto que a menin está envolvida na maquinaria complexa que é desviada pelas células de leucemia e faz com que células sanguíneas normais se transformem em células cancerosas.
Ao utilizar revumenib, o motor é desligado e as células de leucemia são transformadas, de novo, em células normais, resultando em remissão. Esta fórmula já salvou, até então, 18 vidas como parte do ensaio clínico, cujos resultados promissores foram publicados na revista Nature. Os resultados preliminares mostraram que 53% dos pacientes responderam ao revumenib, e 30% tiveram remissão completa, sem qualquer cancro detetável no seu sangue.
Com base nos dados deste ensaio, em dezembro de 2022, a US Food and Drug Administration concedeu à revumenib a “designação de terapia revolucionária”, para ajudar a acelerar o seu desenvolvimento e revisão regulamentar. “Isto é definitivamente um avanço e é o resultado de anos de ciência. Muitos grupos tinham trabalhado, arduamente, no laboratório, para compreender o que está a causar estas leucemias”, disse Issa, mas advertindo que o medicamento não funciona para todos os pacientes. É para um subconjunto específico de leucemias que, geralmente, têm genes ausentes ou mal rotulados ou uma fusão cromossómica.
A pílula, então, experimental visa a mutação mais comum na LMA, um gene chamado NPM1, e uma fusão menos comum chamada KMT2A. Combinadas, estima-se que tais mutações ocorrem em cerca de 30 a 40% das pessoas com LMA. O ensaio da fase 1 abrangeu 68 pacientes, em nove hospitais dos EUA. Todos tinham visto a sua leucemia regressar, após outros tratamentos, ou nunca tinham respondido bem aos medicamentos usuais. Entre eles, estava Algimante Daugeliate, arquiteta lituana de 23 anos de idade, diagnosticada com leucemia. Tinha recebido dois transplantes de medula óssea da irmã, mas todos os outros tratamentos tinham falhado. Os médicos tinham considerado cuidados paliativos para lhe aliviar o sofrimento. Porém, com a toma de revumenib, fez recuperação total.
Embora o medicamento seja bastante seguro, comparado com tratamentos padrão para a leucemia, foram identificados dois efeitos secundários principais: eventual afetação do sistema elétrico do coração, podendo ser detetado por eletrocardiograma (ECG), o que implica reduzir a dose ou suspender o tratamento; e, eventualmente, síndrome da diferenciação (grupo de reações potencialmente fatais aos tratamentos do cancro do sangue), pode ser gerida, eficazmente, se for reconhecida precocemente e se tomadas medidas apropriadas.

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Seja como for, é de saudar todo o contributo da ciência ao tratamento eficaz da leucemia e de todos os cancros do sangue. Bem recordo o sofrimento de uma família de Fonte Arcada, no concelho de Sernancelhe, quando lhe presidi ao funeral de uma criança que morreu vítima de leucemia, bem como senti a morte de um amigo meu que morreu, depois da contração da doença. É também por isso que o conhecimento desta doença me interessa.  

2025.12. 09 – Louro de Carvalho

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