sábado, 6 de dezembro de 2025

Donald Trump ataca a Europa, mas propõe-se “salvá-la”

 

O presidente dos Estados Unidos da América (EUA), Donald Trump, mandou publicar, em novembro, a “Estratégia de Segurança Nacional dos Estados Unidos da América”, a fim de assegurar que o país continuará a ser, nas próximas décadas, “o país mais forte, rico, poderoso e bem-sucedido do Mundo”, o que requer “estratégia coerente e focada em como interagimos com o Mundo”, devendo todos os norte-americanos saber o que se tenta fazer e porquê.
O documento de 33 páginas define “estratégia” como “um plano concreto e realista que explica a conexão essencial entre fins e meios”, a partir da avaliação do que se deseja e de que ferramentas estão disponíveis, ou podem ser criadas, para lograr os resultados pretendidos. E, porque a estratégia tem de “avaliar, classificar e priorizar”, fica assente que “o propósito da política externa [dos EUA] é a proteção dos interesses nacionais essenciais”.
O texto sustenta que as estratégias norte-americanas, desde o fim da Guerra Fria, ficaram aquém do esperado, não tendo definido claramente “o que queremos” e tendo, ao invés, proferido “platitudes vagas” e até avaliado mal “o que deveríamos querer”. Nestes termos, as elites da política externa dos EUA convenceram-se de que a dominação norte-americana permanente do Mundo “era do melhor interesse do nosso país”, mas “os assuntos de outros países só nos dizem respeito, se as suas atividades ameaçarem diretamente os nossos interesses”.
Sobrestimaram a capacidade de os EUA de financiarem “um enorme estado regulatório-administrativo de bem-estar social” e “um enorme complexo militar, diplomático, de inteligência e de ajuda externa”. Com o globalismo e com o “livre comércio” corroeram a classe média e a base industrial de que depende “a preeminência económica e militar americana”. Por conseguinte, deixaram que “aliados e parceiros transferissem o custo da sua defesa para o povo americano”, arrastando-o para conflitos e controvérsias centrais aos interesses deles, mas irrelevantes para os dos EUA, assim como “atrelaram a política americana a uma rede de instituições internacionais, algumas das quais são movidas por um antiamericanismo declarado e muitas por um transnacionalismo” que busca “dissolver a soberania de cada Estado”.
Está traçado o pano de fundo da nova estratégia dos EUA: defesa dos interesses do país, abolição das diversas formas de solidariedade (política, social, humanitária), exceto as que interessem ao desígnio norte-americano, e na medida do seu interesse. Os EUA deixam de ser a Santa Casa da Misericórdia do Mundo. E que se governem por si a Organização das Nações Unidas (ONU) e instituições satélites ou derivadas, bem como a Organização do Trado do Atlântico Norte (NATO).

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A páginas 25 e 26, fica patente a posição dos EUA relativa à Europa, sob a irónica epígrafe “Promovendo a Grandeza Europeia”, frisando que autoridades norte-americanas têm pensado nos problemas europeus, “em termos de gastos militares insuficientes e de estagnação económica”, o que, sendo verdade, esconde que os problemas da Europa são mais profundos.
A Europa continental vem perdendo participação no produto interno bruto (PIB) global – de 25%, em 1990, para os14%, atuais – em parte, devido a regulamentações nacionais e transnacionais que minam a criatividade e o dinamismo. Contudo, o texto sustenta que tal declínio económico é ofuscado pela perspetiva sombria de apagamento civilizacional, pois as amplas questões que a Europa enfrenta incluem as atividades da União Europeia (UE) e de outros órgãos transnacionais “que minam a liberdade política e a soberania, políticas migratórias que estão a transformar o continente e a criar conflitos, censura à liberdade de expressão e supressão da oposição política, queda acentuada nas taxas de natalidade e perda de identidades nacionais e autoconfiança”.
Se tal situação persistir, “o continente será irreconhecível, em 20 anos ou em menos”. Certos países europeus não terão economias e forças armadas fortes “para permanecerem aliados confiáveis”, mas os EUA querem que “a Europa permaneça europeia, recupere a sua autoconfiança civilizacional e abandone o seu foco fracassado na sufocação regulatória”.
No atinente à relação da Europa com a Rússia, o documento considera que os aliados europeus desfrutam de “significativa vantagem em poderio militar sobre a Rússia, em quase todos os aspetos, exceto em armas nucleares”. Em resultado da guerra da Rússia na Ucrânia, muitos europeus consideram a Rússia uma ameaça existencial. Por isso, gerir as relações europeias com a Rússia exigirá significativo empenhamento diplomático dos EUA, para “restabelecer as condições de estabilidade estratégica, em toda a massa continental eurasiana”, e “para mitigar o risco de conflito entre a Rússia e os estados europeus”.
É, pois, interesse fundamental dos EUA negociar a “cessação rápida das hostilidades na Ucrânia”, para “estabilizar as economias europeias”, para “evitar uma escalada ou expansão não intencional da guerra”, para “restabelecer a estabilidade estratégica com a Rússia” e para “permitir a reconstrução da Ucrânia”, possibilitando a sua sobrevivência como Estado viável.
A guerra na Ucrânia aumentou a dependência externa da Europa, especialmente, da Alemanha, cujas empresas químicas estão a construir algumas das maiores fábricas de processamento do Mundo na China, usando gás russo que não obtêm internamente. Donald Trump discorda das autoridades europeias que “nutrem expectativas irrealistas para a guerra, baseadas em governos minoritários instáveis, muitos dos quais atropelam princípios básicos da democracia para suprimir a oposição”, enquanto “a grande maioria europeia deseja a paz”, desejo que “não se traduz em políticas, em grande parte, devido à subversão dos processos democráticos por esses governos”. Todavia, a Europa continua vital para os EUA, estratégica e culturalmente.
O comércio transatlântico continua como um dos pilares da economia global e da prosperidade norte-americana. Os setores europeus, da indústria à tecnologia e à energia, são dos mais robustos do Mundo. A Europa abriga pesquisas científicas de ponta e instituições culturais de renome mundial. Por isso, os EUA não podem descartar a Europa, pelo que a diplomacia norte-americana “deve continuar a defender a democracia genuína, a liberdade de expressão e a celebração, sem reservas, do caráter e da História individuais das nações europeias”.
Os EUA incentivam os aliados políticos na Europa a promoverem esse renascimento de espírito, e a crescente influência de partidos patrióticos europeus, de facto, é motivo de grande otimismo. Assim, o objetivo do inquilino da Casa Branca é ajudar a Europa a corrigir a sua trajetória atual, de modo que se torne “uma Europa forte, para nos ajudar a competir, com sucesso, e [para] trabalhar em conjunto connosco para impedir que qualquer adversário domine a Europa”.
Os EUA reafirmam o “forte apego sentimental ao continente europeu” e, em especial, à Grã-Bretanha e à Irlanda. O caráter desses países é estrategicamente importante, pois são “aliados criativos, capazes, confiantes e democráticos, para estabelecer condições de estabilidade e segurança”.  Assim, a longo prazo, é plausível que, no máximo, em algumas décadas, certos membros da NATO se tornem maioritariamente não europeus, permanecendo em aberto se toparão o seu lugar no Mundo, ou a sua aliança com os EUA, da mesma forma que aqueles que assinaram a Carta da NATO.
Como era de esperar, veio a septenária priorização da política geral dos EUA para a Europa:
“Restabelecer as condições de estabilidade na Europa e a estabilidade estratégica com a Rússia;
“Permitir que a Europa se sustente por si e opere como um grupo de nações soberanas alinhadas, inclusive, assumindo a responsabilidade primária pela sua defesa, sem ser dominada por qualquer potência adversária;
“Cultivar a resistência à trajetória atual da Europa, dentro das nações europeias;
“Abrir os mercados europeus aos bens e serviços dos EUA e garantir o tratamento justo dos trabalhadores e das empresas dos EUA;
“Fortalecer as nações da Europa Central, Oriental e Meridional, por meio de laços comerciais, de vendas de armas, de colaboração política e de intercâmbios culturais e educacionais;
“Acabar a perceção da NATO como aliança em constante expansão, impedindo essa realidade; e
“Incentivar a Europa a tomar medidas para combater a supercapacidade mercantilista, o roubo tecnológico, a espionagem cibernética e outras práticas económicas hostis.

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A estratégia trumpiana significa menorização da Europa, ataque à sua idiossincrasia, entrega da sua defesa a si própria e suposta descoberta da sua salvação, através do apoio a partidos da extrema-direita, os quais, na ótica de Trump, são paladinos da liberdade de expressão que a UE restringe. Que olhe para o que está a criar nos EUA, a diversos níveis!
O governo norte-americano culpa as nações da UE e as suas políticas migratórias pelo que diz ser o iminente e total desmantelamento da Europa.
Estas estratégias de segurança nacional são lançadas pelos presidentes dos EUA, uma vez por mandato, para moldarem a forma como o governo atribui orçamentos e define prioridades políticas. Aliás, Donald Trump classificou esta estratégia como guião para garantir que os EUA “se mantêm a maior e mais bem-sucedida nação da História da Humanidade e o berço da liberdade na Terra”. Na verdade, é consonante com o estilo do slogan de campanha de Donald Trump, MAGA – “Make America Great Again” (“torne a América grande outra vez”).
Apesar de as ideias atinentes à Europa coincidirem com o que Donald Trump e o seu vice-presidente, J. D. Vance, têm afirmado, Pippa Norris, professora de política comparada na Harvard Kennedy School, diz que “o Departamento de Estado não dispõe de uma ‘estratégia de segurança nacional”, sendo “a política externa determinada, de forma errática e improvisada, pela Casa Branca”, segundo os caprichos e instintos do Presidente.
Segundo Heather A. Conley, investigadora no American Enterprise Institute e antiga diplomata do Departamento de Estado, esta não é uma estratégia de segurança nacional dos EUA, mas é a segurança “altamente personalizada”, em torno da visão do Mundo de Trump. A secção sobre a Europa, em particular, “é bastante invulgar e prescritiva, refletindo as visões da extrema-direita europeia sobre a imigração, a cultura e o papel do Estado-nação”.
Contudo, para Norris, o impacto da política externa dos EUA, nesta administração, “tem sido desastroso para a Europa e para as relações transatlânticas, desde as ‘tarifas’ à NATO e à Ucrânia”. As autoridades norte-americanas reconhecem, no plano estratégico, a falta de autoconfiança notória “na relação da Europa com a Rússia”, apesar de os europeus gozarem de “significativa vantagem, em poderio militar, sobre a Rússia, em quase todos os aspetos, exceto nas armas nucleares”. Porém, a administração Trump conclui que a gestão das relações europeias com a Rússia exigirá “significativo envolvimento diplomático dos EUA”.
Cessar as hostilidades na Ucrânia ajudará, segundo os EUA, a “estabilizar as economias europeias” e restabelecer “a estabilidade estratégica com a Rússia”. Referindo o aumento da dependência europeia, sobretudo, da Alemanha, desde o conflito na Ucrânia, a administração Trump discorda das autoridades europeias, que nutrem expectativas irrealistas para a guerra, “baseadas em governos minoritários instáveis, muitos dos quais atropelam princípios básicos da democracia para suprimir a oposição”. Ou seja, se ainda não foi alcançada a paz, é por causa da “subversão dos processos democráticos, por parte destes governos”, o que “é estrategicamente importante para os EUA, porque os Estados europeus não se podem reformar, se estiverem presos em crises políticas”.
J.D. Vance disse temer que a liberdade de expressão “esteja a recuar” na Europa, criticando, por exemplo, a vontade de encerrar redes sociais, quando se deteta conteúdo de ódio ou ações policiais contra a misoginia, online. Na senda do libertarianismo nas redes sociais e noutras plataformas, Vance criticou, insistentemente, o cancelamento dos resultados das eleições presidenciais na Roménia, desvalorizando a interferência da Rússia em eleições estrangeiras.
O governo norte-americano defende que a diplomacia norte-americana “deve continuar a defender a democracia genuína, a liberdade de expressão e a celebração sem reservas do caráter e da História individuais das nações europeias”. Para tanto, fala do “renascimento do espírito”, com “crescente influência dos partidos patrióticos europeus”, como motivo para otimismo. Ora, isto configura uma guerra ideológica contra a Europa, visível no propósito de “ajudar a Europa a “corrigir a sua trajetória atual” e na intenção de “trabalhar com países alinhados que desejam restaurar a sua antiga grandeza”. Tal propósito e tal intenção, como atesta a experiência norte-americana dos últimos meses (aliás, isso foi típico de mandatos anteriores), induzirá interferência noutros países, contra a alegada perda de soberania e de liberdade política e contra as políticas migratórias, bem como a queda das taxas nacionais e a perda de identidades nacionais, temas caros a muitas das forças políticas que fazem oposição interna à UE. Estaremos ante discurso fascista típico do slogan alemão “Deutschland über alles” (“A Alemanha acima de tudo”) e do americano MAGA, com enunciados, provavelmente, gerados pelo ChatGPT.
Por isso, é de pressupor que o governo dos EUA é hostil à UE, querendo subverter as coligações europeias que acreditam na democracia e no Estado de direito e representando ameaça à segurança e à prosperidade europeias. Isto, quando a UE depende das Forças Armadas dos EUA e firmou com a Casa Branca um acordo comercial de inteira submissão. Assim, os líderes europeus devem procurar formas de promover a democracia e a maioria não fascista nos EUA e organizem-se para se defenderem da administração Trump.
Esta estratégia deveria preocupar os líderes europeus, pois tem implicações graves para o futuro da relação transatlântica, especialmente, para o futuro papel dos EUA na NATO, dado o desejo declarado de Washington de lograr a estabilidade estratégica com a Rússia e dadas as suas visões sobre a guerra na Ucrânia. Não é boa notícia para a Europa, porque prenuncia menor compromisso e menor presença de segurança dos EUA. Com efeito, recentemente, responsáveis ​​do Pentágono disseram a um grupo de responsáveis militares europeus que a Europa deve preparar-se para cuidar, plenamente, da sua própria defesa convencional, até 2027. Caso contrário, os EUA retirar-se-iam do planeamento de defesa coletiva da NATO. E o recente Plano de Prontidão para a Defesa da UE exige que a autossuficiência europeia seja alcançada até 2030, o que é impossível, ao ritmo atual de rearmamento europeu.
Também Marco Rubio, secretário de Estado dos EUA, não compareceu na última reunião dos ministros dos Negócios Estrangeiros da NATO, e os EUA negociaram a paz com a Rússia e a Ucrânia sem a presença da Europa e retiraram algumas das suas tropas da Roménia.
Enfim, a nova Estratégia de Segurança Nacional revela que, hoje, o colonialismo tem forte rosto norte-americano e inventou uma bem atuante forma de exploração ideológica.

2025.12.06 – Louro de Carvalho

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