domingo, 19 de outubro de 2025

Governo francês sobreviveu a duas moções de censura

 

O governo do reconduzido primeiro-ministro francês, Sébastien Lecornu, sobreviveu, no dia 16 de outubro, às moções de censura da extrema-esquerda e da extrema-direita.
Inicialmente, foi rejeitada a proposta da França Insubmissa (LFI), por só 271 deputados terem votado a favor, quando eram necessários 289 votos para o governo cair. E a segunda moção, proposta pelo Reagrupamento Nacional (RN), também foi rejeitada, pois obteve 144 votos, um valor abaixo da anterior, já que não contou com o apoio da extrema-esquerda.  
Estes resultados foram possíveis depois de Lecornu ter conseguido apoio crucial do Partido Socialista (com 86 deputados), graças à sua proposta de adiar a polémica reforma das pensões do presidente Emmanuel Macron, até depois das presidenciais de 2027 – uma sugestão também de um dos laureados com o Prémio Nobel de Economia, o economista Philippe Aghion.
A este respeito, o presidente do RN, Jordan Bardella, escreveu, no X: “Uma maioria formada através de negociações conseguiu, hoje, salvar as suas posições, à custa do interesse nacional.”
Contudo, apesar de ter logrado temporária tábua de salvação, esta votação mostrou a fragilidade do governo de França, que tem pela frente difíceis semanas de negociações para fazer aprovar o Orçamento do Estado para 2026, durante as quais poderá ser afastado do cargo por novas moções de censura, caso o Partido Socialista ou os Republicanos mudem o seu sentido de voto, se não conseguirem o que pretendem, nas negociações.
Na verdade, foi deste modo que, em menos de um ano, os primeiros-ministros Michel Barnier e François Bayrou foram afastados. “Os franceses precisam de saber que estamos a fazer todo este trabalho, para lhes darmos um orçamento, porque é fundamental para o futuro do nosso país”, declarou Yael Braun-Pivet, presidente da Assembleia Nacional (AN) e aliada de Emmanuel Macron, mostrando-se “satisfeita”, por ver uma maioria na AN que “opera com o espírito de trabalho, [de] procura de compromisso, [do] melhor esforço possível”.
Era o resultado antecipado, depois de o novo Executivo de Lecornu ter cedido, no dia 14, aos socialistas, ao suspender a reforma das pensões, até janeiro de 2028. Aprovada em 2023, a reforma prevê o aumento da idade da reforma de 62 para 64 anos, mas a sua suspensão era apontada como condição inegociável para os socialistas não apresentarem, também eles, uma moção de censura. Apesar da cedência, houve sete deputados da bancada socialista que votaram a favor da moção apresentada pela LFI.
Lecornu deixou a promessa de não recorrer ao artigo 49.3 – um poder constitucional especial que permite fazer passar uma proposta de lei sem votação, na AN, no orçamento de 2026.
No entanto, sobre a suspensão da reforma, o chefe do governo advertiu, “muito claramente”, que “suspender por suspender não faz sentido” e frisou que não se trata de fazer “qualquer coisa”, pelo que esta suspensão terá de “ser compensada”, pois “custará 400 milhões de euros, em 2026, e 1,8 mil milhões, em 2027”.
Como explicou o primeiro-ministro, “esta suspensão beneficiará, em última instância, 3,5 milhões de franceses”, mas deverá ser compensada, financeiramente, inclusive através de medidas de redução de despesas”. Isto, para evitar “um défice maior” e para não “colocar em risco a credibilidade do país e, mais ainda, de todo o nosso sistema de pensões”.
O chefe do governo propôs organizar, nas próximas semanas, uma conferência sobre pensões e sobre trabalho, em acordo com os parceiros sociais, “antes das eleições presidenciais”. Se a conferência chegar a conclusões, o governo transporá o acordo para a legislação e o parlamento decidirá. Caso contrário, caberá aos candidatos presidenciais apresentar propostas.
O primeiro-ministro assegurou que, “em todos os casos”, o défice público do país ficará abaixo de 5% do produto interno bruto (PIB), em 2026, “uma vez concluída a discussão parlamentar” do orçamento, e que, para este ano, o objetivo é um défice de 5,4% do PIB.
“É urgente cumprir o calendário de adoção do orçamento e votar o melhor orçamento possível”, enfatizou Lecornu, sendo relativamente aplaudido, ao fim de 30 minutos, na tribuna.
A seguir, propôs aos deputados avançar para “cumprir a missão” do executivo que “representa a renovação”, apesar de ser constituído por figuras do governo anterior de François Bayrou, como Aurore Bergé, Gérald Darmanin ou Maud Bregeon. Além disso, defendeu que “não há desculpas” para derrubar, “a priori”, com uma moção de censura, “um governo que deixará de governar por decreto” e que está a preparar um orçamento de 2026 “sério e fiável”, para a França.
“Alguns querem que a situação se transforme numa crise de regime, mas isso não acontecerá”, assegurou o chefe do governo, enquanto prometeu “partilhar o poder com os deputados”.
Com a continuidade de Lecornu enquanto chefe de governo assegurada, para já, segue-se novo teste ao presidente francês. A presidente do LFI, na Assembleia Nacional, Mathilde Panot, afirmou que o partido apresentará nova moção de destituição de Emmanuel Macron. “Lançamos um apelo solene à resistência popular e parlamentar para que continuem a lutar contra estes orçamentos cruéis”, declarou.

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Sébastien Lecornu é o sexto primeiro-ministro do presidente francês, Emmanuel Macron, em dois anos, e o terceiro (ou o quarto, se se contar a sua binação), num ano.
A 16 de setembro, enquanto trabalhava na elaboração do orçamento e na formação do governo, Sébastien Lecornu anunciava a intenção de acabar com os privilégios de antigos primeiros-ministros e de ministros considerados sensíveis, como os do Interior. “Não podemos pedir aos franceses que façam esforços, se aqueles que estão à frente do Estado não os fizerem. A reforma não é sempre para os outros, pois isso cria desconfiança”, declarou, numa entrevista à imprensa regional. Tal declaração foi reforçada, num tweet, a 15 de setembro.
Segundo fontes do Ministério do Interior citadas pela France Info, o ministério defende a revisão, caso a caso, da proteção policial concedida aos antigos ministros. Até agora, os antigos primeiros-ministros beneficiavam de vários privilégio, como a proteção policial, conforme os riscos enfrentados, assegurada pelo SDLP (Service de la protection); um secretário particular, durante 10 anos e até aos 67 anos; um carro com motorista disponível para toda a vida, a qualquer momento, financiado pelo Estado; e a indemnização de 15 mil euros brutos, durante três meses, após deixarem o cargo.
A proteção policial será limitada a três anos e renovada, em caso de ameaça; o privilégio do carro com motorista será reduzido para apenas 10 anos; e os outros privilégios ficam inalterados.
Este regime não se aplica aos antigos primeiros-ministros que dispõem de tais recursos, em virtude de mandato parlamentar, de mandato local ou de função pública. Era o caso, em 2024, de Laurent Fabius, presidente do Conselho Constitucional, de Edouard Philippe, presidente da Câmara de Havre, e de Jean Castex, presidente da Régie Autonome des Transports Parisiens (RATP), entre outros. Em todo o caso, em 2024, o custo anual, para o Estado, dos privilégios dos antigos primeiros-ministros e ministros foi estimado em cerca de 4,4 milhões de euros, dos quais quase metade para os custos de proteção policial.
Quanto aos ministros do Interior, a proteção policial será efetiva durante dois anos e mantida, em caso de ameaça particular.
De acordo com a Jornal Oficial da AN, de maio de 2025, Dominique de Villepin custou ao Estado 207072 euros; Bernard Cazeneuve, 198290 euros; Jean-Pierre Raffarin, 158208 euros; Lionel Jospin, 157657 euros; Édith Cresson, 157223 euros; e François Fillon, 149089 euros.
No campo presidencial, a decisão foi saudada. O deputado Laurent Saint-Martin (Renaissance) elogiou a medida, considerando-a a concretização de promessa há muito mencionada, mas raramente implementada. Já à esquerda, a secretária-geral da Confederação Geral do Trabalho (CGT), Sophie Binet, expressou reservas, frisando que a medida não será suficiente para compensar outras decisões orçamentais consideradas injustas, no futuro orçamento. Por fim, do lado do RN, o deputado do Norte, Sébastien Chenu, considera a medida “muito boa”, mas sustenta que Lecornu está a fazer “publicidade”.

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Antes de perfazer uma mês da sua nomeação, Sébastien Lecornu, após ter anunciado o seu elenco governativo, prevendo que o programa não passaria na AN, apresentou ao presidente o pedido de demissão do cargo de primeiro-ministro, a 6 de outubro. Emmanuel Macron, embora tenha aceitado o pedido de demissão, encarregou-o de diligenciar no sentido de promover a constituição do novo governo, o que ele aceitou, mas garantindo que não voltaria ao cargo, quaisquer que fossem os resultados.
Contudo, a 10 de outubro, o presidente reconduziu o primeiro-ministro cessante, numa decisão chocante que pôs fim a dias de especulação e a intensas negociações com o objetivo de resolver o impasse político que se agravava no país. O anúncio seguiu-se a consultas finais com representantes dos principais partidos políticos. Com efeito, o chefe de Estado reuniu os líderes partidários no Palácio do Eliseu, no início do dia, com exceção dos da extrema-esquerda (LFI), e da extrema-direita (RN).
A reunião, dissera o Eliseu, no início do dia, “deve ser um momento de responsabilidade coletiva”.
A nomeação marca um momento crucial na presidência de Macron, que se estende até 2027. Sem maioria na AN e com críticas crescentes, tanto da oposição como dentro das suas próprias fileiras, o chefe de Estado tem pouca margem de manobra política. A crise agravara-se no início daquela semana, quando Lecornu se demitiu abruptamente, poucas horas depois de ter anunciado o seu novo governo. A sua chocante saída levou a novos apelos de figuras da oposição para que Emmanuel Macron se demitisse ou convocasse eleições antecipadas.
Porém, na noite do dia 10, em mensagem divulgada nas redes sociais, Lecornu escreveu que aceitava, “por dever”, a missão que lhe fora confiada pelo presidente de “tudo fazer para dar à França um orçamento até ao fim do ano e [para] responder aos problemas da vida quotidiana dos nossos patriotas”. E vincou: “É preciso pôr um fim a esta crise política que exaspera os franceses e a esta instabilidade nociva para a imagem de França e [para] os seus interesses.”
A turbulência remonta à decisão surpreendente de Emmanuel Macron, em junho de 2024, de dissolver a AN. As eleições antecipadas subsequentes deram origem a um parlamento à mercê da negociação, não deixando nenhum bloco político com maioria.
O primeiro-ministro enfrenta, agora, a difícil tarefa de navegar nessa paisagem fraturada e de fazer aprovar o plano orçamental altamente controverso de 2026, o qual é questão urgente para a França e cujo que o prazo de apresentação terminava a 13 de outubro.
Reconduzido pelo presidente, depois de uma semana de caos político, Sébastien Lecornu apelou à calma e ao apoio dos partidos políticos, para que seja elaborado um orçamento para a segunda maior economia da União Europeia (UE), antes do fim do prazo.
O recém-reconduzido primeiro-ministro disse, no dia 11, durante uma visita a uma esquadra de polícia, no subúrbio parisiense de L’ Hay-les-Roses, que não havia “muitos candidatos” para o seu cargo e apelou a um governo livre de políticas partidárias. “Não creio que houvesse muitos candidatos. […] Cumprirei o meu dever e não serei um problema”, declarou, avisando que o seu gabinete “não deve ser refém de interesses partidários”.
Por outro lado, admitiu que poderia não durar muito no cargo, dadas as profundas divisões políticas do país. Todavia, a nomeação de Sébastien Lecornu, de 39 anos, é vista como a última oportunidade de Emmanuel Macron para revigorar o seu segundo mandato, que vai até 2027. O campo centrista carece de maioria, na AN, e o presidente enfrenta críticas crescentes, mesmo dentro das suas fileiras.
Entretanto, os rivais da extrema-direita e da extrema-esquerda criticaram a decisão de Macron de renomear Lecornu, o quarto primeiro-ministro, em apenas um ano. O líder do RN, Jordan Bardella, classificou tal recondução como “piada de mau gosto” e prometeu que tentaria, imediatamente, remover o novo gabinete, o que não conseguiu. Os Republicanos (centro-direita) decidiram, no dia 11, não participar no novo governo de Sébastien Lecornu, comprometendo-se, durante uma reunião do gabinete político, órgão que reúne as principais figuras do partido apenas a dar “apoio texto a texto” ao executivo.
“O gabinete político afirma o seu apoio ao governo, texto a texto”, acentuando que, “nesta fase, não estão reunidas a confiança e as condições, para que Les Républicains participem no governo”, declarou o partido, em comunicado.
O Partido Socialista, que pode fazer de fiel da balança no parlamento, disse não haver acordo com Lecornu e ameaçou derrubar o governo, se este não concordasse em suspender a reforma das pensões de 2023, que aumenta a idade da reforma de 62 para 64 anos, tendo conseguido tal suspensão – razão por que votou contra as duas censuras apresentadas na AN.  

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A crise política surge num tempo em que a França se debate com desafios económicos e com uma dívida crescentes. A crise política está a agravar os problemas e a fazer soar o alarme em toda a UE, cujos líderes, dizem, hipocritamente, que ainda não é alarmante.
Lecornu, que se demitiu, após apenas cerca de um mês no cargo, concordou em regressar, devido à “necessidade urgente de encontrar soluções financeiras para a França”, mas garantiu que só ficaria, enquanto as condições estivessem reunidas, e pareceu reconhecer o risco de ser derrubado numa moção de censura pelo parlamento fraturado. “Ou as forças políticas me ajudam e nos acompanhamos mutuamente... ou não”, afirmou.
Não dizia quando esperava formar novo governo nem quem o integraria, mas dizia que não incluiria ninguém que esteja a concorrer às eleições presidenciais de 2027. Não abordava as exigências da oposição da eliminação a lei que aumenta a idade da reforma.
Os governos minoritários de Emmanuel Macron caíram, uns atrás dos outros, ao longo do último ano, pondo França em estado de paralisia política e a lidar com taxa de pobreza crescente, com défice excessivo e com uma dívida que alarmou os mercados e os aliados da UE.
Por fim, nem os partidos garantem, a necessidade longevidade do governo até 2028, nem o primeiro-ministro, que avança, recua e avança, admitindo que pode cair a qualquer momento, dá garantias de estabilidade ao país que, juntamente com a Alemanha, é considerado um dos motores do projeto europeu. E a suspensão da lei que aumenta a idade da reforma não resolve o problema de fundo, apenas garante o cumprimento do mandato de Emmanuel Macron.
Assim vai a França!

2025.10.19 – Louro de Carvalho

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