sexta-feira, 10 de outubro de 2025

Casos mediáticos ensombram Procuradoria-Geral da República

 

Há quase um ano na liderança do Ministério Público (MP), o procurador-geral da República Amadeu Guerra, cuja nomeação esperançosa transformaria, a nível atitudinal, a Procuradoria-Geral da República (PGR) – do que nunca me convenci, em razão da idade e da desvinculação do MP por parte do magistrado e da sua duvidosa consonância com a lei, como referi então –, já tem um currículo polémico. Por exemplo, a Operação Influencer está por decidir, a investigação ao juiz Ivo Rosa causa preocupações a muitos, o caso Spinumviva está em erupção e os magistrados do MP fizeram uma greve nacional.
Assim, já se pode fazer um balanço do mandato, que não será favorável para o titular de investigação criminal que sucedeu a Lucília Gago, a qual foi alvo de críticas constantes, desde que adicionou a um comunicado um parágrafo que azou a demissão do ex-primeiro ministro socialista, António Costa. Aliás, as críticas já vinham de antes, por comparação oportuna ou importuna com a sua antecessora Joana Marques Vidal, mas agudizaram-se e alastraram, a partir de 7 de novembro de 2023, um mês depois de começar a guerra em Gaza.
Não teria sido muito difícil a Amadeu Guerra superar as expectativas, depois dos seis anos de Lucília Gago, mas não as superou e até se mostra desgastado e até com declarações que mais parecem hesitação do que decisão.

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Em dezembro de 2024 (tinha tomado posse em 12 de outubro) em entrevista ao Expresso, uma das suas prioridades era a decisão da Operação Influencer, nomeadamente, no respeitante a António Costa. Dizia querer olhar os magistrados responsáveis “olhos nos olhos” como forma de pressão para levar a uma decisão. Em maio deste ano, disse ter pedido celeridade no andamento do processo, incluindo aos órgãos policiais, admitindo que já teria insistido na conclusão de perícias e solicitado ao diretor do Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP), a colocação de procuradores em exclusividade. Porém, quase dois anos depois de António Costa se ter demitido do cargo de primeiro-ministro, por suspeitas no âmbito da Operação Influencer, pouco aconteceu. O ex-secretário-geral socialista, atual presidente do Conselho Europeu, foi ouvido, como declarante, mas nem foi constituído arguido.
É de recordar que, a 7 de novembro de 2023 a “Operação Influencer” chegou à ribalta mediática por buscas à residência oficial do primeiro-ministro, a residências de ex-membros do governo e de outras figuras públicas. Levou à detenção de cinco arguidos, incluindo o chefe de gabinete do primeiro-ministro, Vítor Escária. E soube-se que um antigo secretário de Estado Adjunto e da Energia e, depois, ministro das Infraestruturas, foi alvo de escutas policiais, durante quatro anos, foi constituído arguido, mas nunca foi ouvido pelo MP. 
Porém, nem há acusação aos arguidos, nem arquivamento do processo e a situação do ex-primeiro-ministro continua na mesma, não tendo sido constituído arguido, nem se sabendo o ponto da situação de qualquer investigação. No entanto, um tribunal superior declarou não haver qualquer indício criminal contra ele. Por outro lado, o MP arquivou o processo atinente a uma pen-drive alegadamente entregue no seu gabinete, por o caso já ter sido julgado noutro processo e em observância do princípio “ne vis in idem”.
É certo que o superior dirigente do MP melhorou a PGR, quanto a comunicação e a esclarecimentos à opinião pública, quer em comunicados quer em declarações à comunicação social. Contudo, a celeridade na resposta tem timings diferentes, conforme o assunto ou polémica.
Por exemplo, recentemente, foi conhecida a investigação de que o juiz desembargador Ivo Rosa – enquanto juiz de instrução criminal (JIC) no Tribunal Central de Instrução Criminal (TCIC) – terá sido alvo de investigação, durante três anos, por parte do MP, mas, para o líder da PGR reagir, foram precisos cinco dias e muitas críticas por parte da opinião pública.
Em comunicado, adiantou que o DCIAP recebeu uma denúncia em que era visado o agora desembargador Ivo Rosa, a qual foi analisada, tendo sido decidida, a 16 de fevereiro de 2021, a instauração de inquérito, no âmbito do qual “não foram efetuadas quaisquer interceções telefónicas”, como assegurou o MP, salientando que tais diligências “respeitaram todos os direitos, liberdades e garantias legalmente consagrados”, tendo sido submetidas a prévia autorização judicial e/ou validadas por um juiz, como previsto na lei. Porém, não negou que terá havido acesso à faturação, à localização do telemóvel e às contas bancárias do então JIC. O processo-crime foi aberto, meses antes de o JIC anunciar, em abril desse ano, a decisão instrutória do processo Operação Marquês, em que deixou cair a maioria dos crimes constantes da acusação do MP, tendo o Tribunal da Relação de Lisboa revertido, mais tarde, a decisão.

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Em julho, realizou-se uma greve nacional dos magistrados do MP, da qual, de acordo com o Sindicato dos Magistrados do Ministério Público (SMMP), resultaram paralisações que “chegaram a registar uma adesão de cerca de 90%, com picos de 100%, em diversas comarcas, [com] diligências e julgamentos adiados, de Norte a Sul, ilhas incluídas”. O protesto era contra o movimento anual dos magistrados do MP, em conformidade com a deliberação do Conselho Superior do Ministério Público (CSMP) que o SMMP contesta por considerar que impõe rotação e acumulação de funções. Esta deliberação, colocando “em risco a especialização dos magistrados do Ministério Público e a qualidade da justiça disponível para o cidadão”. Porém, Amadeu Guerra manteve a sua posição, deixando um lastro de crítica do sindicato; e, a partir de setembro, os magistrados passaram a assegurar diferentes competências em diversos tribunais, devido à crónica falta de recursos humanos no MP, agravada por numerosos pedidos de reforma-jubilação e pela insuficiência de vagas nos cursos de formação de magistrados.                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                ***

Contudo, é o caso da Spinumviva, empresa familiar do primeiro-ministro (PM) que a atuação do líder da PGR se torna mais problemática. Se, no caso de Ivo Rosa, demorou cinco dias a reagir, no dia 7 de outubro, demorou pouco mais de uma hora para limpar a imagem do chefe do governo.
Segundo a revista Sábado e a CNN Portugal, está em causa o facto de os responsáveis pela averiguação preventiva (AP) à atividade daquela empresa familiar, à construção da casa de Espinho e à origem dos fundos para aquisição de dois apartamentos em Lisboa (tudo propriedades da esfera patrimonial do PM) terem a convicção de que o caso só poderá ser esclarecido em sede de processo-crime, podendo estar em causa crimes de recebimento indevido de vantagens e de branqueamento de capitais. De facto, após o MP já ter analisado, ao detalhe, todas as denúncias e queixas relativas à empresa familiar do PM, os magistrados responsáveis pela AP defendem que deve ser aberto inquérito-crime a Luís Montenegro, cabendo a palavra final ao procurador-geral da República; e, se este concordar, o inquérito, mal seja registado, será titulado por um magistrado do MP junto do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) e decorrerá na secção do MP.
Porém, um comunicado da PGR esclareceu que a AP relacionada com a empresa Spinumviva se encontra em curso, pois o MP aguarda ainda documentação que será analisada. Não há, pois, qualquer convicção formada que permita encerrar a referida averiguação preventiva, nem nada foi proposto ao procurador-geral da República, neste domínio. Isto sucedeu, depois de, no final de junho, Amadeu Guerra assumir que esperava que a AP ao caso estivesse concluída até 15 de julho. Com efeito, em entrevista à Radio Observador, falou da “admiração por Luís Montenegro”, mas garantiu que, se houver fundamento para abrir inquérito, haverá inquérito, “como acontece para todos os cidadãos”.
Depois, a 19 de setembro, em declarações ao jornal Nascer do Sol, revelou que foram pedidos pelo MP elementos adicionais ao PM, no âmbito da AP à Spinumviva. Nesse mesmo dia, Luís Montenegro fez declarações aos jornalistas em que se comprometia a aproveitar, “a tarde de hoje, para tentar reunir os documentos que foram solicitados e enviá-los o mais rápido possível”. Tais documentos, porém, ainda não foram entregues. Nessa investigação estarão também em causa umas férias, realizadas em 2024, de Luís Montenegro e da família, no Brasil. O MP tem dúvidas se terá sido usado dinheiro da Spinumviva para financiar a viagem e as demais despesas dessas férias. Caso se confirme, pode estar em causa o crime de recebimento indevido de vantagem, por eventual violação do regime de exclusividade a que o PM está obrigado.
No dia 8 de outubro, o PM – conhecidas as notícias referidas – fez saber que deve prestar todos os esclarecimentos, diretamente, ao MP, esperando que este órgão fale consigo, diretamente, e não através da imprensa. Em declarações aos jornalistas, à chegada a uma iniciativa autárquica em Castelo Branco, Luís Montenegro foi questionado sobre os pedidos de vários partidos para que preste mais esclarecimentos sobre a Spinumviva. Porém, antes, assumia-se “estupefacto e mesmo revoltado” com as notícias de que os procuradores responsáveis pela averiguação preventiva à Spinumviva, defendem a abertura de um inquérito-crime. “É uma pouca-vergonha”, declarou, à entrada para um comício em Albufeira, sem direito a mais perguntas.
A revista Sábado confrontou Luís Montenegro e a Spinumviva – cujos donos são, atualmente, os dois filhos do PM – sobre esta situação, mas não obteve resposta.
No entanto, o líder do Partido Social Democrata (PSD), dizendo-se “completamente tranquilo” e pede aos portugueses que não se deixem levar por “manobras obscuras”, a poucos dias das eleições autárquicas. O PM fala em “deslealdade processual” e em “vulnerabilidades”, “fragilidades” da democracia, em que se lançam “suspeitas” e “insinuações” por fontes não identificadas. “Não me intimido”, afirma o chefe do governo, que garante que todos os esclarecimentos têm sido facultados ao MP.
É claro que Luís Montenegro tem mostrado algum desconforto com a comunicação social. Ninguém esquece a sua “irritação” pelo facto de os jornalistas lhe fazerem perguntas sopradas, na hora, no telemóvel, pelas redações, ou o facto se lhe fazerem perguntas que são, afinal, a resposta.
Compreende-se que seja incómodo estas notícias surgirem em plena campanha eleitoral das eleições autárquicas, podendo baralhar as contas das candidaturas. Porém, nada pode condicionar a autonomia do MP, nem a liberdade de imprensa, da rádio e da televisão.
O líder do Partido Socialista (PS) já veio pedir, em declarações aos jornalistas no dia 7, que se evitem “precipitações em matérias desta sensibilidade para o interesse do país”. José Luís Carneiro espera que Luís Montenegro dê os esclarecimentos exigidos pelas autoridades judiciárias e mantenha o “sentido de Estado”.

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Há, ainda, a considerar relatórios do MP sobre o Plano de Recuperação e Resiliência (PRR). Mónica Silvares, a 2 de julho, o ECO online, sustenta que o relatório atinente ao 5.º pedido de pagamento – entregue em Bruxelas, a 3 de julho de 2024, e à PGR, a 10 de outubro, só foi publicado a 9 de dezembro. O documento coincidiu com as mudanças de titulares na PGR. Amadeu Guerra tomou posse no dia 12, mas, só passados dois meses, publicou o relatório que acusa a Inspeção Geral de Finanças (IGF) e a Comissão de Auditoria e Controlo (CAC), onde está a presidente da Agência para o Desenvolvimento e Coesão (AD&C), de “obstaculizar” o seu trabalho de prevenção criminal, “por não ter tido acesso a toda a documentação solicitada”.
O documento apontou o dedo à IGF, por não ter “concluído qualquer auditoria” aos sistemas de controlo interno do PRR entre a apresentação do 3.º e do 4.º pedidos de pagamento, em outubro de 2023, e a apresentação do 5.º pedido, em julho de 2024. Isso causou algum mal-estar, com o Ministério das Finanças a negar que a IGF tenha sonegado algum documento ao MP e a justificar a inexistência destas auditorias com o plano definido com Bruxelas.
Também a 17 de setembro, Mónica Silvares, no ECO online, escreve que o MP, no relatório de acompanhamento do MP na CAC do PRR, relativo ao 6.º pedido de pagamento, divulgado nesse dia, apesar de concluído a 13 de março, diz que, “entre a apresentação do 3.º e 4.º pedidos de pagamento, em 4 de outubro de 2013, e a apresentação do 6.º pedido de pagamento, em 14 de novembro de 2014 (que foi pago a 30 de junho de 2025), não foi concluída qualquer auditoria, por parte da IGF ou da DG ECFIN [Direção-Geral dos Assuntos Económicos e Financeiros], sobre o sistema de controlo interno do PRR”.
“Não obstante a definição e aprovação pela Estrutura de Missão Recuperar Portugal de novos procedimentos relativos ao sistema de controlo interno do PRR, que abrangem uma multiplicidade de minutas, formulários, declarações, checklists e fichas, assim como de comunicações desta estrutura de missão dirigidas aos diferentes beneficiários sobre matérias relacionadas com a prevenção do duplo financiamento, do conflito de interesses, da fraude e da corrupção, a inexistência de relatórios de auditoria sobre o sistema de controlo interno do PRR, não permite concluir sobre a efetiva aplicação de tais procedimentos por parte da estrutura de missão, beneficiários, intermediários diretos ou finais”, lê-se no relatório.
“Inexistindo outras auditorias concluídas pela IGF”, desde abril de 2023, “que tenham por objetivo a verificação do efetivo funcionamento dos sistemas de controlo interno do PRR, desconhecem-se os resultados dos procedimentos e verificações eventualmente realizados por aquela entidade, desde então, no que respeita ao cumprimento das medidas e procedimentos de controlo definidos e destinados à prevenção, deteção e correção da fraude, da corrupção, do conflito de interesses e do duplo financiamento”, sublinha o relatório.

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É de questionar como levou tanto tempo a publicação de um relatório do MP, como se partiu para uma averiguação preventiva a comportamentos de Luís Montenegro e a Pedro Nuno Santos e não para inquérito e porque a deste teve conclusão célere ao invés da do PM.
Amadeu Guerra chega, assim, ao fim do seu primeiro ano de mandato, com várias pontas soltas e com um MP longe de estar pacificado internamente e com a imagem de eficiência e de imparcialidade, perante a opinião pública. Apesar das elevadas expectativas do início do mandato, com exceção de alguns progressos na comunicação externa da PGR, a maioria dos problemas persiste e alguns agravaram-se. Nem tudo depende de Amadeu Guerra, mas, segundo Paulo Lona, líder do SMMP, a desmotivação dos magistrados do MP atingiu níveis inéditos, “agravada pelo excesso de trabalho e pelo crescente número de acumulações de serviço não remuneradas”. Estão por implementar a medicina do trabalho e as recomendações do Observatório da Justiça. Faltam magistrados e oficiais de justiça nas secretarias do MP. E a autonomia financeira do MP permanece uma autêntica miragem.

2025.10.10 – Louro de Carvalho


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