terça-feira, 5 de agosto de 2025

Reforma do Estado: apocalipse ou mudança para ficar tudo quase igual?

 

O Conselho de Ministros, a 31 de julho de 2025, de acordo com o respetivo comunicado, propôs-se iniciar a tão prometida reforma do Estado.
Do que ficou estabelecido, neste âmbito, em que o mote é a simplificação e a guerra à burocracia, apenas sobressai a aprovação de “uma resolução do Conselho de Ministros, que “estabelece os princípios e compromissos para a reforma dos ministérios e as metodologias para a sua concretização”, e a aprovação de um decreto-lei, que “procede à reestruturação da Agência para a Modernização Administrativa, I. P. (AMA), “garantindo que tem as atribuições e a estrutura adequadas para uniformizar a estratégia tecnológica e digital do Estado, transformando-a em Agência para a Reforma Tecnológica do Estado, I. P. (ARTE, I. P.)”.
Lateralmente, o governo aprovou um decreto-lei que “estabelece o novo Regime Jurídico da Mobilidade Elétrica (RJME) alinhado com o Direito da União Europeia [UE]”. Prevê-se que o novo RJME assegure “a liberalização do mercado, a interoperabilidade e o acesso universal a todos os pontos de carregamento, tornando o modelo mais flexível, transparente, competitivo e acessível”. Por outro lado, são “impostos sistemas de carregamento ‘ad hoc’, sem necessidade de contrato com comercializadores de energia”, prevendo-se “diferentes formas de pagamento eletrónicos alterativos, como QR Code ou cartão bancário”.
Em suma, para já, sabemos de uma resolução, cuja especificação conheceremos aquando da sua publicação em Diário da República, e da criação, para breve, da ARTE, I. P., que mais não é do que a antiga AMA.
Já foi alinhavado o travejamento da reforma, cujas linhas orientadoras passam por “uma reforma orgânica e [por] uma transformação organizacional dos ministérios, de forma a melhorar os serviços prestados aos cidadãos e [às] empresas, através da simplificação de processos, [da] diminuição dos tempos médios de resposta ao cidadão e [do] reforço da capacidade tecnológica das entidades”. E também já ficou estabelecido que “as atribuições da ARTE, I. P. asseguram a sua capacidade de intervir, transversalmente, em todas as entidades da Administração Pública (AP), em matérias relacionadas com as infraestruturas tecnológicas, sistemas, dados e aplicações”, tal como teremos o cargo do Diretor de Sistemas e Tecnologias de Informação da Administração Pública, o CTO do Estado (chief technology officer), para assegurar uma liderança estratégica e operacional transversal, capaz de consolidar a transformação digital da AP.
Não obstante, a guilhotina está a preparar-se para cortar, por decreto-lei, na orgânica do Ministério da Educação, Ciência e Inovação (MECI), ‘generosamente’ (muito obrigado), “para garantir a igualdade de oportunidades no acesso a uma Educação de qualidade em todo o território nacional, bem como [para] gerar e transformar talento e conhecimento em valor social e económico”. Para isso, não era necessária a reforma da orgânica, mas a afinação das estruturas. Porém, o objetivo é o corte, não em funcionários, mas na “estrutura”, que “passa de 18 para sete entidades e de 45 para 27 dirigentes, com uma nova organização funcional”. Contudo, não se especifica que entidades e que dirigentes. Diz-se apenas que alguns organismos serão extintos e outros suprimidos por fusão, bem como outros passarão a integrar as comissões de coordenação e desenvolvimento regional (CCDR). 
Nos termos do projeto de decreto-lei, “no ensino não superior, passam a existir duas entidades: o Instituto de Educação, Qualidade e Avaliação (EduQA) e a Agência para a Gestão do Sistema educativo (AGSE); no ensino superior, ciência e inovação, criam-se o Instituto para o Ensino Superior (IES) e a Agência para a Investigação e Inovação (AI2)”. Em contrapartida, extingue-se a Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT) e a Agência Nacional de Inovação (ANI).
Esta reforma visa, segundo o Conselho de Ministros e o titular da pasta da Educação, “maior eficiência, agilidade, valorização dos recursos humanos e melhor serviço às comunidades educativa e científica”.
Temo que tudo não passe de mudança de designações e de algum (des)afinamento de estruturas. Só em termos do Ministério da Educação, já vi a passagem de direções-gerais a departamentos ou a institutos, de gabinetes a departamentos e a institutos, fusões de direções-gerais; já vi a criação e a extinção de centros de área educativa, de direções regionais, de direções distritais, de delegações escolares e de muitas escolas e a criação de muitos agrupamentos.       

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Ânia Ataíde, grande repórter, escreveu um texto intitulado “Do PRACE ao guião de Portas. Como as reformas do Estado repetem promessas (e Gonçalo Matias não é exceção)”, que o ECO online publicou a 4 de agosto, em que denuncia o facto de o governo não ter, para a reforma do Estado, palavras diferentes de outros governos, que não sejam “simplificação e desburocratização”. Além disso, critica a falta de indicadores que impede uma avaliação do programa de reforma.
Quase todos os governos anunciaram a reforma do Estado, a reforma administrativa ou a modernização administrativa. Lembro-me de que o primeiro titular de uma pasta ministerial com a designação de Reforma Administrativa foi Rui Pena. O segundo governo de Cavaco Silva empreendeu três reformas de vulto: a fiscal, a educativa e a do território. Já Passos Coelho fez uma reforma administrativa que se reduziu à eliminação dos governos civis, à supressão de mais de um milhar de freguesias, à obrigatoriedade de todos os funcionários do Estado cumprirem um horário de, pelo menos, 40 horas semanais, à extinção das direções regionais de Educação, à enorme redução de funcionários públicos e à privatização de empresas estratégicas.
A grande repórter sustenta que, entre os dois projetos deste século – o Programa de Reestruturação da Administração Central do Estado (PRACE), de 2005, e “guião para a reforma do Estado” conhecido por “Reforma de Paulo Portas”), de 2013 – e a reforma anunciada pelo ministro-adjunto e da Reforma do Estado, Gonçalo Matias, “há objetivos e expressões que se repetem, como se o doente apresentasse, repetidamente, os mesmos sintomas”.
Vamos mexer no Estado como nunca se mexeu”, garantiu, na conferência de imprensa do dia 31 de julho, não sendo, no dizer de Ânia Ataíde, “o primeiro a prometê-lo. Com efeito, continua a grande repórter, “ao longo dos anos, vários governos anunciaram o compromisso com essa missão”, ora “com programas estruturados”, ora “com iniciativas mais pontuais”.

Ânia Ataíde recorda que, em 2005, o governo de José Sócrates apresentou o PRACE, como “a primeira reforma, em muitos anos, de natureza abrangente, sistémica, que procurava reestruturar e racionalizar as estruturas do Estado, com uma redução prevista das mais de 500 entidades do Estado”, prometendo: “modernizar e racionalizar a Administração Central [AC]; melhorar a qualidade de serviços prestados pela Administração aos cidadãos, empresas e comunidades; [e] colocar a Administração Central mais próxima e dialogante com o cidadão.”

Mais tarde, no governo de Pedro Passos Coelho, o vice-primeiro-ministro, Paulo Portas, elaborou um “guião” para a Reforma do Estado, que teve, segundo a articulista, “direito a duas versões – uma primeira, em outubro de 2013, e a final, em outubro de 2014” –, mas com “um universo mais abrangente do que a de 2005”, pois, entre os eixos e mais de 100 medidas, previa um PREMAC 2 [Plano de Redução e Melhoria da Administração Central 2]” e, ainda: “simplificar a relação dos cidadãos e das empresas com o Estado; eliminar as estruturas sobrepostas na estrutura do Estado, reduzindo o número de organismos e entidades; [e] desburocratizar e organizar um Simplex 2.” Desta feita, como sublinha Ânia Ataíde, Gonçalo Matias avança com uma transformação “orgânica” e “organizacional”, prometendo uma reforma dos ministérios e mudanças na legislação, como o código do procedimento e do processo administrativos ou o código da contratação pública. E os objetivos anunciados são: “tornar o Estado mais eficaz e eficiente; reformar, uniformemente, todas as áreas governativas; [e] simplificar e promover a digitalização de processos, orientados [para os] cidadãos e [para as] empresas.”

A grande repórter sustenta que a grande questão que se levanta para avaliar tal reforma é “quem é que vai ser incomodado com esta reforma” ou, de outro modo (pergunto eu), com quem vai ser feita essa reforma. Só o governo não a conseguirá fazer.   

Considerando que, entre as linhas estratégicas do PRACE, se incluía a aposta na modernização da Administração Pública (AP) e a criação programa plurianual de redução da dimensão da Administração Central, Ânia Ataíde, elenca, em retrospetiva, os diversos itens do Simplex, de 2006, bem como o emagrecimento do Estado, pela saída de 75 mil funcionários públicos em quatro anos e a redução de, pelo menos, 15% no total das estruturas orgânicas dependentes de cada ministério e de 40% das estruturas da AC; e anota a saída de perto de 80 mil funcionários públicos, em 2014, “como resultado do Plano de Redução e Melhoria da Administração Central do Estado (PREMAC), no âmbito da Troika.

Gonçalo Matias, na conferência de imprensa de 31 de julho, rejeitou a receita de Paulo Portas de que, apesar de “reformar” ser diferente de “cortar”, a opção ser “um modelo de Administração Pública que tenha menos funcionários, mas mais bem pagos”. Assim, embora o ministro-adjunto e da Reforma do Estado tenha anunciado, com o ministro Fernando Alexandre, a redução de 45 para 27 do número de dirigentes superiores e a de 18 para sete do número de entidades que integram os serviços centrais do MECI, garantiu que, neste momento, não está previsto nenhum programa de despedimentos.

Ora, a experiência mostra que, ao invés do prometido pelos governos, o número de dirigentes públicos não diminui, em definitivo, acabando por aumentar. E, mais tarde, lá se cria mais um organismo ou uma comissão, sob a qualificação de independente, ou se recorre à terceirização, porque, supostamente, os organismos existentes não dispõem de pessoal suficiente ou de know-how para algumas tarefas. Recordo-me de simplificações consideráveis que foram torpedeadas – algumas ainda o são – nos serviços desconcentrados ou a nível do poder local.

Apenas dois exemplos. Em 1985, António Almeida Santos, o principal cabeça de lista do Partido Socialista (PS) às eleições legislativas, prometia que uma das primeiras medidas do seu governo (se ganhasse as eleições) seria a eliminação do papel selado. O governo de Cavaco Silva procedeu à eliminação do papel selado. Porém, algumas câmaras municipais obrigavam à aposição de vinheta aos requerimentos dos munícipes, vinheta que era paga. E, só mais tarde, António Guterres acabou com o imposto de selo de recibo.

Recordo também que José Sócrates prometeu a constituição de “empresa na hora” e até houve casos de sucesso. Porém, como refere Ânia Ataíde, em Portugal, são necessárias, em média, 356 horas para abrir uma empresa e 391 horas, por ano, para cumprir todas as obrigações legais e administrativas”, e “os investidores consideram as licenças e autorizações comerciais particularmente onerosas, apesar da recente simplificação e consolidação de procedimentos, por exemplo, no licenciamento industrial e ambiental”. A Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) assinala que há espaço para avançar, ainda mais, nas práticas de avaliação de impacto regulatório e na simplificação da documentação. E Gonçalo Matias comprometeu-se em executar o “princípio só uma vez”, previsto na legislação, desde 2014, e que não chegou a ser aplicado.

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“A reforma do Estado não se faz num dia” é a frase com que Gonçalo Matias visou refrear, de algum modo, as expectativas, quanto ao calendário da reforma que foi apontada como a prioridade do governo, que tem, segundo consta, um “plano muito consistente”, que mas “levará algum tempo” a produzir os efeitos pretendidos. As medidas aprovadas são os “primeiros passos” e traduzem-se em linhas orientadoras da reforma do Estado. Todavia, caiu como uma bomba a extinção de várias entidades, no MECI (cerca de um terço dos organismos), como a FCT, assim como a criação da ARTE, I.P.

A insistência na criação de agências e a omissão da palavra “ciência” parecem remeter a Educação e a Ciência para o domínio do Marketing e para a tecnologia, o que faz lembrar a não muito antiga tendência para governar o país com a folha de Excel. Ora, na Educação, aliás como em todo o serviço público, estamos em relação com pessoas, não com números. Os números são instrumentais, o que, por vezes, os governantes parecem esquecer. Mesmo a burocracia, revela a existência de pessoas habituadas a registar tudo em vários papéis, a passar papel a superiores e receber deles papel. A cada passo, as decisões são remetidas para patamares superiores, a não ser que a resposta mais fácil seja o “não”.     

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O partido Livre diz-se surpreendido com o anúncio da extinção da FCT e da ANI, por deixar grande parte da comunidade científica “ansiosa” e com “inúmeras dúvidas”. Segundo a deputada Patrícia Gonçalves, que pede esclarecimentos ao governo, “a ausência da palavra ‘ciência’ no nome da nova agência” é preocupante. Por outro lado, assinala que, na conferência de imprensa, se falou “apenas em ‘impacto, impacto, impacto’, ignorando a base científica que sustenta qualquer inovação duradoura”, e advertiu que é fundamental que não se deixe “reduzir a Ciência a um ativo de mercado”, reconhecendo-lhe sempre o “contributo para o progresso” e para o “desenvolvimento humano”.
O secretário-geral do PS, que apoia uma reforma do Estado, considera “incompreensível” a extinção da FCT e da ANI, sem diálogo prévio, com as instituições do ensino superior, com os investigadores e “com aqueles que têm, ao longo das últimas décadas, garantido que Portugal tem estado no ranking dos países que faz da investigação um dos seus principais motores do desenvolvimento social e do desenvolvimento económico”. E revelou que, após falar com “algumas pessoas que representam o setor”, notou a “incredulidade com que viram o anúncio de medidas de extinção de instituições, sem um diálogo com os seus representantes, sem um diálogo com os seus trabalhadores, sem um diálogo com os investigadores que fazem a ciência e o conhecimento do nosso país”.

Por sua vez, o Presidente da República avisou: “Se achar que o diploma como um todo é uma boa ideia, se vier para promulgação do Presidente da República e é possível que venha, eu promulgo, sem dúvida nenhuma, sem angústia nenhuma. Se tiver dúvidas sobre um ponto que seja desse diploma, que seja muito importante, peço ao governo para repensar. Já aconteceu várias vezes.”  

A 2 de julho, Gonçalo Matias defendeu, no XIII Fórum Lisboa, que a reforma é prioritária, sendo a “burocracia excessiva” um “obstáculo silencioso” ao progresso. Sustentando que a confiança dos cidadãos no Estado se constrói “na capacidade de garantir eficiência, transparência e qualidade de resposta”, diz que a reforma assenta na simplificação, na digitalização, na articulação e na responsabilização. Assim, o objetivo é “fortalecer a sua relevância e legitimidade”, pois a máquina pública não pode ser um labirinto onde se perde tempo”.

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O ministro começou sem diálogo e sem documento estruturado para consulta pública.  

2025.08.05 – Louro de Carvalho


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