terça-feira, 22 de julho de 2025

Novamente, o sexo no confessionário

 

Remeter problemas políticos, nomeadamente, os respeitantes à Educação, para a área estritamente privada é a negação do serviço público e da atenção devida às pessoas.
É claro que estas asserções têm que ver com a questão da nova Estratégia Nacional de Educação para a Cidadania (ENEC), cuja proposta do governo está em consulta pública, com vista à sua alegada “desideologização” ou melhor, para a introdução de outra ideologia.  
A este respeito, o Expresso online publicou, a 22 de julho, um artigo da jornalista Joana Pereira Bastos sob o título “O governo tem um grande problema com a sexualidade e quer remeter o assunto, novamente, para o confessionário”.
O artigo fez-me recordar a leitura que, antanho, fiz do livro “O Sexo no Confessionário”, de Norberto Valentini e Clara di Meglio, publicado pela Editorial Futura, em 1974. Obviamente, o livro pouco tem a ver com a educação para a cidadania, pois o seu escopo era, através de relatos, supostamente fidedignos, denunciar as vivências de pessoas, sobretudo, de mulheres, no confronto com as diretrizes da Igreja Católica sobre a Moral Sexual, designadamente, no quadro da relação sexual do casal, por si, unicamente direcionada para a conceção.  
Igualmente, em 1975, a mesma editora publicou o livro “A Política no Confessionário”, de Norberto Valentini, que também li e que dá, alegadamente, conta de “um inquérito efetuado, durante 600 confissões, gravadas para conhecer a posição atual [na década de 1970] da Igreja Católica, perante os problemas que lhe são postos acerca da militância política, da liberdade ideológica, do divórcio e da conciliação da fé com a luta pelo ressurgimento fascista”.
Enfim, duas questões pertinentes – sexo e política – sobre as quais a Igreja Católica não fazia chegar a sua doutrina clara e a sua ação pastoral, encarnada e compreensiva, ao comum dos seus crentes, deixando que tudo fosse remetido para a casuística do confessionário. Por outro lado, a família e a escola falharam na educação da sexualidade, de que se fez tabu, passando os pecados em matéria sexual a ser considerados os mais graves de todos, até mais graves do que a idolatria.
Também os partidos políticos e a escola falharam, redondamente, em não promoverem uma larga e aprofundada educação cívica e política, deixando que a política se encurralasse nos diversos claustros político-partidários, a ponto de a democracia cristã e a social-democracia se apresentarem quase como inimigas, embora ambas combatessem o fascismo e o comunismo.          
Na remissão para a confissão dos assuntos que não se querem encarar, na discussão pública, recordo um episódio em que participei nos anos de 1987-1989.
A Câmara Municipal da área de uma das freguesias cuja paroquialidade estava ao meu cuidado pastoral, resolveu retificar a estrada municipal que ligava a tal freguesia à sede do concelho. A retificação implicava uma suposta variante ao aglomerado habitacional. Porém, não era uma verdadeira variante, pois atravessaria uma série de terrenos hortícolas, cada um de pequena dimensão, ocuparia uns bons metros do adro da igreja matriz, implicaria a remoção de um templete com um cruzeiro e, tecnicamente, desembocava na rua principal numa curva fechada, antes da igreja.
Além disso, havia outros problemas de ordem técnica a que o projetista não atendeu, em que sobressaía a estrutura altamente esponjosa dos respetivos terrenos.
Por motivos de zelo pelos bens da paróquia e por solidariedade, mais tarde, não aceite, para com os proprietários pobres dos terrenos hortícolas, meti-me na polémica, tendo conseguido o apoio do bispo da diocese e da Junta de Freguesia.
Com o decurso do tempo, os populares que estavam contra a localização da variante, para a qual havia duas alternativas – uma das quais veio a ser acolhida pela Câmara Municipal, mas já com outra composição partidária – foram retirando o apoio à contestação. Já nem com os membros da comissão da FIP (Fábrica da Igreja Paroquial) contava, pelo que, sempre me referia ao assunto, falava, unicamente, na qualidade de pároco da freguesia. Eu era apontado como pretendendo uma ponte aérea (tinha de ser feita uma ponte, porque a estrada tinha, em qualquer hipótese, de atravessar um alinha de água) – ao que respondia que todas as pontes são aéreas, ao invés dos túneis, que são travessias subterrâneas.               
Nestes termos, solicitei uma conversa com o presidente da Câmara Municipal e outra com um antigo vereador, supostamente capaz de intermediar. As conversas correram bem e eram promissoras. Porém, um dia, surgiu a notícia de que o projeto da estrada estava aprovado pela autarquia, que tinha a comparticipação dos fundos comunitários e que a variante seguiria como projetado inicialmente. Tive o atrevimento de escrever uma carta ao presidente da Câmara Municipal (isto, já no verão de 1989, ano de eleições autárquicas), a recordar-lhe a conversa havida entre nós, e salientava, laconicamente, os problemas abordados.
Esta personalidade dissera-me que tinha as eleições ganhas. E eu retorquia-lhe que, independentemente disso, uns 50 ou 30 cidadãos eram suficientes para criarem mal-estar político e social. Em resposta à minha carta, o líder da autarquia, esquecendo que os problemas a que eu aludia não eram pessoais, nem do quadro paroquial, mas políticos e económicos, respondeu-me que a estrada seguiria, dentro em breve, pelo traçado projetado. E acrescentou que, se eu tinha problemas com os paroquianos, que os resolvesse na confissão.   
Como os problemas políticos não se resolvem na confissão, que é reservada aos pecados, não houve confissões sobre a matéria; a estrada não seguiu conforme o projeto inicial; e o partido do então presidente perdeu as eleições.                      

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No seu texto, Joana Pereira Bastos dá voz a Rosa Monteiro, ex-secretária de Estado para a Cidadania e Igualdade e uma das autoras da ENEC ainda em vigor, a qual entende que “a retirada do currículo dos alunos de grande parte das matérias sobre sexualidade” representa “um retrocesso inimaginável” e uma “cedência às forças conservadoras radicais”, que estão a fazer uma “cruzada moral contra a escola”.
A ex-governante, sustentando que o “governo tem um grande problema com a sexualidade e quer remeter o assunto novamente para o confessionário”, classifica, em entrevista ao Expresso, a proposta do Ministério da Educação e da Ciência (MECI) como “um retrocesso inimaginável”.
Rosa Monteiro acusa o executivo de fazer desaparecer das novas aprendizagens essenciais da Cidadania e Desenvolvimento a sexualidade e a saúde sexual reprodutiva, conteúdos que tinham de ser abordados em, “pelo menos, dois ciclos do Ensino Básico”.
Agora, as matérias conexas com a orientação sexual e com a identidade de género, “que geraram grande contestação, nos últimos anos, junto da direita mais conservadora”, serão excluídas do currículo. E, a este respeito, o ministro da Educação alega que a questão da identidade de género é “uma matéria de grande complexidade” e que, “muitas vezes, as pessoas não estão sequer preparadas para lecionar”.
O governante tem o inexplicável atrevimento de duvidar da capacidade docente dos professores que representam o Estado e desempenham um múnus crucial na vida das pessoas, em cooperação com as famílias. Um ministro que não acredita na escola e nas instituições do ensino superior que papel desempenha na governação do país? 
Por mim, não creio que o professor ou a professora imponha qualquer ideologia ou orientação, quando tenta ajudar os alunos a compreender, a respeitar e a aceitar “a diversidade na sexualidade e na orientação sexual”, ao ensinar que “a identidade de género é a experiência interna e individual de género profundamente sentida por cada pessoa que pode, ou não, corresponder às expectativas sociais” e que os jovens não devem ser limitados no modo como se expressam a este nível.
E Rosa Monteiro defende: “As questões da identidade de género são muito sérias, estão consagradas na legislação e têm de ser devidamente tratadas. São questões que os alunos e as alunas, todos os dias, trazem para as salas de aula, querendo saber mais sobre o assunto.”
Segundo a ex-governante, “a área da Educação é, em todo o Mundo, o principal bode expiatório dos movimentos reacionários, conservadores, de direita radical e populista”, que fazem a “cruzada moral contra a escola”, por esta “ser um baluarte da emancipação das pessoas”.
O governo esquece o esforço que vem sendo feito, ao longo do tempo, pelo Estado, no que foi antecipado pelo pioneirismo de uma instituição da Igreja Católica, a Sociedade de São Francisco de Sales, cujos membros são conhecidos por Salesianos de Dom Bosco, que possuem escolas e um editora. E Rosa Monteiro lamenta os ultraconservadores não queiram “a formação de cidadãos esclarecidos que pensem pelas suas próprias cabeças e que não sigam toda a desinformação que veem nas redes sociais”, o que leva o governo a “promover a deseducação cívica”.

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Não, a educação cívica não se remete para o confessionário (embora este possa ter uma palavra de orientação e de reorientação, se o penitente a solicitar). A educação para a cidadania realiza-se, em privado, na família e, enquanto serviço público na escola, como se faz, em determinadas matérias, no clube, na associação cultural e na consulta médica ou psicológica.
No dia 21, à tarde, questionado pelos jornalistas sobre a nova ENEC, Fernando Alexandre afirmou que é “uma leitura apressada” deduzir que esta matéria desaparecerá do currículo e garantiu que, após a consulta pública, “em que vamos ouvir os pais, as famílias, as escolas, a sociedade”, se volta a falar. No entanto, para Rosa Monteiro, não é casual o facto de o ministro “dar a entender uma coisa e fazer outra”. Antes corresponde a uma tentativa “intencional” do executivo de “criar um alarido, para esconder insuficiências gravíssimas do governo”, nomeadamente, em áreas, como a Saúde e a Habitação. “Está a servir para tapar o sol com a peneira”, considera a ex-governante. Ou – digo eu – tenta distrair os cidadãos dos graves problemas do país e disfarçar a sua incapacidade de governação para lá da propaganda.  
A ex-secretária de Estado espera que possa haver uma “reponderação” da parte do MECI, mas entende que esta consulta pública, de tão breve horizonte temporal, “é uma vergonha” e não passa de “um simulacro de consulta”, pois decorre numa altura em que “a comunidade educativa está a finalizar o ano letivo e em que as próprias famílias estão desfocadas” do tema.
A também socióloga refere que “as forças conservadoras radicais” tentaram “criar um alarme social, em torno do que estava a ser lecionado nas escolas, ao nível desta disciplina”, sem terem sequer ouvido “os estabelecimentos de ensino e os professores”. E releva que a ENEC em vigor “foi um trabalho coordenado entre o Ministério da Educação e a tutela da Cidadania e da Igualdade”, tendo envolvido “a participação de múltiplas entidades”, “o que é “um garante de uma visão mais ampla e sustentada” destas matérias.
Todavia, a ex-governante reconhecendo que havia “algumas dificuldades na implementação da disciplina”, nomeadamente, “pela ausência de orientações precisas sobre os conteúdos a abordar, em que anos e de que forma”, admite que “era preciso consolidar orientações e fornecer mais estruturação dos conteúdos aos docentes e às escolas”, bem como “reforçar o tempo da disciplina”, visto que “continuam a existir relatos de jovens que dizem que a disciplina de Cidadania era usada pelos professores sobretudo para falar sobre assuntos disciplinares”. É a tentação do/a diretor/a de turma, a quem a disciplina, por norma, é confiada.
Não obstante, apesar de defender a necessidade de ajustes, Rosa Monteiro ressalva que “a consolidação de uma reforma exige tempo” e que, desde a aprovação da atual estratégia, as escolas passaram pela pandemia de covid-19, “um período altamente disruptivo em que emergiram, com nova intensidade, problemas a que tiveram de dar resposta”. “Isto carece do seu tempo e não podemos estar sempre a destruir tudo o que é criado para a educação”, concluiu.

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Todos os titulares de pastas governativas querem deixar a sua marca, especialmente, na área da Educação. Alguns, como Roberto Carneiro, procederam a uma reforma do Sistema Educativo; outros, como Maria de Lurdes Rodrigues, produziram um verdadeiro terramoto; e Fernando Alexandre arrisca ficar na História como o servidor da direita radical, ao nível da deseducação cívica, no contexto de um governo que se atreveu a conceder o prazo de um dia uma entidade pública, a fim de que ela desse parecer sobre propostas de lei. Aí, o ministro da Educação, Ciência e Inovação, protagoniza um progresso considerável – 11 dias, uma eternidade. Não é tão crente como o governo no seu todo, que pensa que, aos olhos de Deus, um dia vale por mil.

2025.07.22 – Louro de Carvalho

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