quinta-feira, 19 de junho de 2025

A cidade de Ur e a pátria de Abraão

 
A Caldeia, frequentemente mencionada no Antigo Testamento, era a região histórica do Sul da Mesopotâmia, no Médio Oriente, que, hoje, corresponde ao Iraque e a partes da Síria e da Turquia. Em rigor, situa-se na zona contígua ao golfo Pérsico, entre o deserto da Arábia e o delta do rio Eufrates. O prestígio dos reinados de Nabucodonosor II (605-562 a. C.) e de Nabodinus (556-539 a. C.) foi tal que a Caldeia se tornou sinónimo de Babilónia. E a cidade de Ur é uma das metrópoles mais antigas da Humanidade e a sua III dinastia construiu a capital de um reino muito poderoso.
Ur, cujo nome sumério era Urim, no princípio, ficava perto do mar, em zona pantanosa próxima do delta do Eufrates, mas, depois, tornou-se uma cidade do interior, correspondendo a uma área situada nas proximidades da atual cidade de Tell el-Muqayyar, a 16 quilómetros de Nassíria, na província de Dicar do Iraque. E o final do III milénio antes de Cristo (a.C.), em que Ur se transformou numa grande capital, é descrito como o início da Idade do Bronze, na Mesopotâmia, que terminou após o fim da III dinastia de Ur.

O sítio arqueológico de Ur carateriza-se pelas ruínas do Grande Zigurate de Ur, com o santuário de Nana (seu padroeiro), o deus da Lua, escavado na década de 1930. O templo foi edificado no século XXI a.C., no reinado de Ur-Namu, e reconstruído, no século VI a.C., por Nabonido. As ruínas abrangem uma área de 1200 metros de Noroeste a Sudeste e de 800 metros de Nordeste a Sudoeste, e elevavam-se a 20 metros acima do nível atual da planície local.

De acordo com o livro bíblico dos Génesis, foi a residência de Abraão, patriarca dos Hebreus, e considerada a maior cidade da época. Na sua peregrinação, Abraão saiu de Ur e foi para Harã e, de lá, para Canaã. Ao tempo, muitos clãs migravam para o Crescente Fértil.

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Franco D’agostino e Gabriella Spada, em artigo intitulado “Hoje, viajamos até Ur, a capital da antiga Mesopotâmia”, publicado na National Geographic online, a 14 de junho, dão-nos conta do interesse histórico da cidade, pela vida dos seus habitantes e pela relação com outros povos. 
Aqui se deixam as linhas gerais do seu conteúdo.
A III dinastia governava um dos reinos mais ricos e poderosos que a Mesopotâmia conhecera, até então, e cuja recordação perduraria durante largo período na História da Mesopotâmia como o exemplo mais perfeito de estrutura estatal e de poder régio.
A cidade controlava um vasto território dividido em 14 províncias que, além das terras do Sul e do Norte da Mesopotâmia, incluía regiões da Síria e do Irão (antiga Pérsia) correspondentes ao reino de Elam. Dos cinco soberanos que fizeram a História deste período, os que deixaram marca mais profunda foram o fundador da dinastia, Ur-Nammu (entre cerca de 2047 a.C. e 2030 a.C.), e o seu filho, Shulgi, protagonista de um reinado de quase 50 anos. Este foi tão poderoso que se autointitulou de “rei das quatro partes da Terra”. E os reis dos séculos posteriores, incluindo os de civilizações vizinhas, assumiram, como modelares, as reformas de Shulgi, designadamente, a padronização dos pesos e das medidas e a divinização em vida.

Porém, nenhum remédio evitou o  trágico final do período mais glorioso de Ur, abandonada pelos deuses. Ibbi-Sin, o V soberano da III dinastia, reinou durante 24 anos, até à derrota pelos exércitos elamitas, provindos do Irão, que puseram fim à dinastia e a todo o mundo sumério. Ur foi uma das poucas cidades da Baixa Mesopotâmia que sobreviveu nos milénios seguintes (esteve habitada até ao início do século V a.C.), mas a região nunca recuperou o fulgor. O poder passou para o Norte, para a cidade de Babilónia, onde o rei Hammurabi (1792-1750 a.C.) se inspirou na III dinastia de Ur para organizar um império que dominou grande parte do Próximo Oriente. E, até à década de 1920, Ur era praticamente desconhecida. Após escavar Karkemish na companhia de T.E. Lawrence (da Arábia), Sir Leonard Woolley concentrou a atenção em Ur, entre 1922 e 1934. Entre as suas muitas descobertas, Wooley escavou túmulos reais datados de cerca de 2700 a.C., que expuseram um enterro sacrificial do séquito de um rei falecido.

Embora Ur não voltasse a ser o centro de um reino poderoso e rico, a recordação da sua grandeza figurou na tradição histórica e literária do Mundo babilónico e assírio, até ao final da civilização mesopotâmica. E, com os lampejos da glória de Ur, os antigos textos legaram-nos um aviso que permanece atual, quatro mil anos depois, segundo o qual a Ur foi atribuída a realeza, mas não um reino eterno, pois, desde os tempos antigos, a terra foi organizada e as gentes multiplicaram-se, mas nunca se viu “um reino cujo poder fosse eterno”. 

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A organização da sociedade caldaica era a seguinte: O reino dos soberanos de Ur era Estado patrimonial que eles governavam como proprietários da terra e de todos os meios de produção. Como se fossem pais de ampla família, outorgavam regalias aos súbditos. A figura que os assistia no governo era o “grande vizir”; e ocupava-se da minuciosa administração do reino uma imensidão de funcionários, em que preponderavam os generais (shagina), que dirigiam a classe militar, e os governadores (ensi) de província. Os assuntos religiosos estavam a cargo do sumo-sacerdote (en), que perdeu relevância com a decisão de Shulgi de se julgar um deus, prática seguida pelos sucessores. E havia os sacerdotes, que eram os responsáveis pelos templos (sanga).

A vida na corte da III dinastia de Ur surpreendia pela importância económica e pela política assumida pelas rainhas. A mais famosa foi Shulgi-simti, (a significar “Shulgi é a minha honra”), esposa do rei Shulgi, provavelmente, de origens do Norte da Mesopotâmia, talvez de Eshnunna, pois era muito apegada ao culto das divindades desta cidade, pelo que o seu casamento teria sido ditado por razões diplomáticas. Shulgi-simti tinha implicação direta nas atividades empresariais e estava vinculada a uma fundação que se ocupava da gestão do gado, que chegava a Ur, graças a ela, destinado aos comensais reais e ao culto dos deuses. É de recordar que, desde Shulgi, algumas princesas eram escolhidas para sumas-sacerdotisas de Nanna.

A Shulgi-simti atribui-se uma canção de berço, a única conhecida da tradição suméria. Nela, a rainha dirige-se a um dos filhos, desejando que se tornasse grande, como a árvore irina, com raízes fortes.” Como qualquer mãe, Shulgi-simti imagina um belo futuro para o seu rebento: promete escolher-lhe uma esposa, que dará um filho muito doce e descansará no ardente regaço do marido. O filho do casal fará felizes a mãe e o pai e descansará nos braços estendidos deles.

A documentação contém muitos nomes de filhos de Shulgi, gerados tanto com Shulgi-simti como com as numerosas concubinas que faziam parte do seu harém. A existência de filhos nascidos fora da união real podia ser problemática, após a morte de um soberano, quando a presença de muitos aspirantes à sucessão podia desencadear uma crise política. 

O grosso da população dividia-se em homens livres (lu) e semilivres (eren). Estes trabalhavam, durante metade do ano, para o Reino e, na outra metade, podiam dedicar-se a projetos individuais. Havia, ainda, a condição dos escravos, que incluía os prisioneiros de guerra e os que não conseguiam pagar as dívidas, podendo toda a família do devedor ser escravizada.

O escravo era propriedade absoluta do amo, que o podia vender, legar ou libertar. Podia casar e ter família, mas os filhos eram escravos. Porém, a sociedade suméria e a sua economia não se baseavam na exploração do trabalho servil, mas na população numerosa e produtiva.

Na sociedade assim organizada, destacava-se a atividade relevante dos grandes comerciantes.

A cidade dividia-se em distritos ligados por largas ruas. Ur dispunha de duas zonas portuárias que a ligavam às terras de Magan (Omã) e às de Meluhha, no Norte da Índia. Os navios sumérios que navegavam para aquelas longínquas paragens eram chamados “barcos negros”, por serem revestidos de espessa camada de betume negro para melhor impermeabilização. Transportavam mercadorias de luxo, como especiarias, cerâmicas e produtos naturais – madeira, diorite (útil na estatuária) e cobre – de que o argiloso solo da Mesopotâmia carecia.

Por sua vez, as caravanas terrestres rumavam para Leste, até Elam (Irão), à Ásia Central e ao Afeganistão, donde traziam o ouro e o lápis-lazúli (pedra semipreciosa muito procurada, por se parecer com o céu estrelado governado pelos deuses). A alguns quilómetros do Grande Zigurate de Ur, havia um subúrbio que os arqueólogos chamaram “Diqdiqqah” e que era habitado por artesãos estrangeiros que trabalhavam, com grande destreza, os materiais importados trazidos pelos grémios de mercadores em cansativas e perigosas travessias marítimas.

Ao invés, os numerosos funcionários da administração ou do culto religioso viviam em grandes zonas residenciais, perto dos edifícios mais importantes da cidade: o palácio, onde residia o soberano com a sua corte e com as suas numerosas concubinas; e a zona dos templos, cujo monumento mais conhecido e mais bem preservado é o zigurate. 

Com uma planta de 63 metros por 43 e com uma altura de mais de 15 (alguns autores sustentam que, originariamente, media o dobro), esta enorme construção designava-se “Etemenniguru”, em Sumério, ou seja, “o templo cujas bases inspiram reverência”. Fazia parte do “Ekishnugal”, “a casa sem luz”, um complexo de templos consagrados a Nanna, deus da Lua, o patrono.

 

Apesar do relevo da atividade comercial, a agricultura era a atividade económica mais relevante da vida suméria. A partir do VI milénio a.C., escavou-se em toda a Mesopotâmia uma densa rede de canais artificiais que irrigaram grandes extensões de campos. Deste modo, obtinham-se colheitas consideráveis, com que se alimentava a população das cidades e cujos enormes excedentes eram armazenados em grandes silos.

O cereal mais importante, para os habitantes da Mesopotâmia era a cevada, elemento essencial das rações alimentares, que incluíam, em média, dois litros de cevada, por dia. Também a cevada era a base da produção de cerveja, invenção suméria fundamental pois, além de ligeiramente alcoólica, apresentava um valor nutricional importante. A sua importância na vida quotidiana dos habitantes de Ur era tão grande que era utilizada como meio de pagamento e como medida de valor para os bens. Por isso, era objeto de empréstimo e de troca, assumindo, a função económica e financeira da prata. Enfim, uma espécie de fisiocracia!

Outro elemento fundamental no quotidiano de Ur eram os animais. Era variada a fauna que partilhava o espaço com os habitantes. Além dos animais domésticos, como os cães, as ovelhas, as cabras, as vacas e os equídeos, que ofereciam segurança e companhia, lã, leite, carne e outros bens, havia espécies semidomesticadas, como o onagro (subespécie do burro) e o gato. E havia animais selvagens como, macacos, leões e ursos. Os ursos eram usados, até aos dois anos, como atrações, por domadores, por malabaristas e por acrobatas, que os levavam de cidade em cidade. Era já o circo. Só faltava o pão ao binómio romano “panem et circenses”!

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O grande interesse dos Sumérios era o culto, que absorvia muitos recursos económicos. Os quase quatro mil deuses do panteão exigiam fornecimento diário de bens e de serviços.

Segundo mitologia suméria, no início dos tempos, cada deus tomara posse de uma cidade. Ali vivera Nanna com a consorte, com os filhos e com uma multidão de auxiliares num templo, ao qual, no final do III milénio a.C., foi acrescentado um zigurate. Havia duas categorias de deuses: superiores (em Sumério anunna) e inferiores, ou igigi, servos dos primeiros. Havia sete anunna, destacando-se Enlil, o deus principal do panteão, que residia em Nippur, e Enki, o mais antigo, deus da água doce subterrânea e da adivinhação, padroeiro da cidade de Eridu. Estes deuses e muitas mais divindades adoradas em Ur recebiam, diariamente, rações de cevada e de outros bens, enquanto os sacerdotes desenvolviam inúmeras atividades rituais: vestiam as imagens de culto, transferiam-nas para os templos de outras cidades onde viviam os membros da sua família, levavam-nas em procissão em festividades regulares e, em casos de emergência, entoavam lamentações para apaziguar o coração dos deuses enfurecidos.

Todo este empenho respondia a uma motivação concreta: a vida do ser humano e a prosperidade das cidades dependiam da caprichosa vontade dos deuses, os quais controlavam o bem-estar, a saúde e a morte das pessoas e dos reinos. Neste âmbito, o tratamento das doenças tinha profundas repercussões sociais. O bem-estar espelhava-se na boa relação da pessoa com o mundo dos deuses e com o seu deus afetivo, implicando a doença a quebra desta relação positiva, que se devia ao incumprimento da vontade dos deuses por parte do ser humano. Toda a realidade estava impregnada da vontade divina. Por conseguinte, qualquer mudança era sinal que os deuses enviavam às pessoas para que o interpretassem e deduzissem o comportamento a adotar. Nestes termos, a doença era um sinal proveniente dos deuses, e a cura do doente requeria, além de médicos e de medicina, a compreensão de qual era a causa divina para a interrupção da relação positiva, de forma a poder ser restabelecida a harmonia.

Assim, na cidade de  Ur de finais do III milénio a.C., quem se sentisse indisposto teria de seguir os passos certos para se curar. Antes de mais, devia procurar um naturopata (em Sumério, asû) que lhe acalmasse a dor, com terapêuticas obtidas de plantas e de outras substâncias naturais. Uma receita encontrada em Nippur dá luz sobre as práticas médicas: triturar e esmagar uma carapaça de tartaruga e, a seguir, esfregar a abertura ou a ferida com azeite e massajar a pessoa e untá-la com cerveja de boa qualidade. Porém, como o asû não libertava o paciente da doença, mas só lhe curava os sintomas, era necessário o sacerdote conjurador (em Sumério, mašmašu), uma figura complexa, que levava o doente a compreender o motivo da ira dos deuses, que permitira que um demónio possuísse o corpo do indivíduo, e que era a pessoa capaz de expulsar o demónio que se apoderara do doente.

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Ur é considerada por muitos estudiosos a cidade de Ur Kasdim mencionada no Livro do Génesis, terra natal do patriarca Abrão, que teria nascido, segundo a tradição, no II milénio a.C. É mencionada, por quatro vezes, na Thorah e no resto do Antigo Testamento, com a distinção de “Kasdim/Kasdin”, traduzido como “Ur dos Caldeus”. Os Caldeus já habitavam a região por volta de 850 a.C., e o seu nome é mencionado em Génesis (Gn 11,28; 11,31; 15,7). No Livro de Neemias (Ne 9,7), é parafraseada uma passagem do Génesis que menciona Ur. E o Livro dos Jubileus afirma que Ur terá sido fundada em 1688 Anno Mundi, por ‘Ur, filho de Kesed’, descendente de Arfaxade, vincando que, nesse ano, teriam sido travadas, na Terra, as primeiras guerras. “E ‘Ur’, o filho de Kesed, construiu a cidade de ‘Ara dos Caldeus’, dando-lhe este nome em homenagem ao seu próprio nome e ao nome do seu pai [Kasdim]” (Jubileus 11,3).

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A civilização mesopotâmica não difere muito de outras civilizações coevas, nem das que nesta se inspiraram. Todavia, é de reter que o modelo de sociedade não se ancorava no trabalho servil, que os escravos podiam casar e aplicar-se a projetos individuais, ao invés de outras civilizações, em que os escravos trabalhavam, sob chicote, para os senhores, sujeitando-se a todos os seus caprichos, não tinham qualquer autonomia, nem podiam casar (mas teriam os filhos que o senhor quisesse); ou em outras cujo servo era vinculado à gleba, sendo vendido com ela.

2025.06.19 – Louro de Carvalho

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