Ur, cujo nome sumério era Urim, no princípio, ficava perto do mar, em zona pantanosa próxima do delta do Eufrates, mas, depois, tornou-se uma cidade do interior, correspondendo a uma área situada nas proximidades da atual cidade de Tell el-Muqayyar, a 16 quilómetros de Nassíria, na província de Dicar do Iraque. E o final do III milénio antes de Cristo (a.C.), em que Ur se transformou numa grande capital, é descrito como o início da Idade do Bronze, na Mesopotâmia, que terminou após o fim da III dinastia de Ur.
O sítio
arqueológico de Ur carateriza-se pelas ruínas do Grande Zigurate de Ur,
com o santuário de Nana (seu padroeiro), o deus da Lua, escavado na década de
1930. O templo foi edificado no século XXI a.C., no reinado
de Ur-Namu, e reconstruído, no século VI a.C., por Nabonido.
As ruínas abrangem uma área de 1200 metros de Noroeste a Sudeste e de 800
metros de Nordeste a Sudoeste, e elevavam-se a 20 metros acima do nível atual
da planície local.
De acordo com o livro bíblico dos Génesis, foi a residência de Abraão, patriarca dos Hebreus, e considerada a maior cidade da época. Na sua peregrinação, Abraão saiu de Ur e foi para Harã e, de lá, para Canaã. Ao tempo, muitos clãs migravam para o Crescente Fértil.
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A III dinastia governava um dos reinos mais ricos e poderosos que a Mesopotâmia conhecera, até então, e cuja recordação perduraria durante largo período na História da Mesopotâmia como o exemplo mais perfeito de estrutura estatal e de poder régio.
Porém, nenhum
remédio evitou o trágico final do período mais glorioso de Ur,
abandonada pelos deuses. Ibbi-Sin, o V soberano da III dinastia,
reinou durante 24 anos, até à derrota pelos exércitos elamitas, provindos
do Irão, que puseram fim à dinastia e a todo o mundo sumério. Ur
foi uma das poucas cidades da Baixa Mesopotâmia que sobreviveu nos milénios
seguintes (esteve habitada até ao início do século V a.C.), mas a
região nunca recuperou o fulgor. O poder passou para o Norte, para a cidade de
Babilónia, onde o rei Hammurabi (1792-1750 a.C.) se inspirou na
III dinastia de Ur para organizar um império que dominou grande
parte do Próximo Oriente. E, até à década de 1920, Ur era praticamente
desconhecida. Após escavar Karkemish na companhia de T.E.
Lawrence (da Arábia), Sir Leonard Woolley concentrou a atenção em Ur,
entre 1922 e 1934. Entre as suas muitas descobertas, Wooley escavou túmulos
reais datados de cerca de 2700 a.C., que expuseram um enterro
sacrificial do séquito de um rei falecido.
Embora Ur não voltasse a ser o centro de um reino poderoso e rico, a recordação da sua grandeza figurou na tradição histórica e literária do Mundo babilónico e assírio, até ao final da civilização mesopotâmica. E, com os lampejos da glória de Ur, os antigos textos legaram-nos um aviso que permanece atual, quatro mil anos depois, segundo o qual a Ur foi atribuída a realeza, mas não um reino eterno, pois, desde os tempos antigos, a terra foi organizada e as gentes multiplicaram-se, mas nunca se viu “um reino cujo poder fosse eterno”.
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A organização da sociedade caldaica era a seguinte: O reino dos soberanos de Ur era Estado patrimonial que eles governavam como proprietários da terra e de todos os meios de produção. Como se fossem pais de ampla família, outorgavam regalias aos súbditos. A figura que os assistia no governo era o “grande vizir”; e ocupava-se da minuciosa administração do reino uma imensidão de funcionários, em que preponderavam os generais (shagina), que dirigiam a classe militar, e os governadores (ensi) de província. Os assuntos religiosos estavam a cargo do sumo-sacerdote (en), que perdeu relevância com a decisão de Shulgi de se julgar um deus, prática seguida pelos sucessores. E havia os sacerdotes, que eram os responsáveis pelos templos (sanga).
A vida na
corte da III dinastia de Ur surpreendia pela importância económica e pela
política assumida pelas rainhas. A mais famosa foi Shulgi-simti, (a significar
“Shulgi é a minha honra”), esposa do rei Shulgi,
provavelmente, de origens do Norte da Mesopotâmia, talvez de Eshnunna, pois era
muito apegada ao culto das divindades desta cidade, pelo que o seu casamento
teria sido ditado por razões diplomáticas. Shulgi-simti tinha implicação direta
nas atividades empresariais e estava vinculada a uma fundação que
se ocupava da gestão do gado, que chegava a Ur, graças a ela,
destinado aos comensais reais e ao culto dos deuses. É de recordar que, desde
Shulgi, algumas princesas eram escolhidas para sumas-sacerdotisas de Nanna.
A
Shulgi-simti atribui-se uma canção de berço, a única conhecida da tradição
suméria. Nela, a rainha dirige-se a um dos filhos, desejando que se tornasse
grande, como a árvore irina, com raízes fortes.” Como qualquer mãe,
Shulgi-simti imagina um belo futuro para o seu rebento: promete escolher-lhe
uma esposa, que dará um filho muito doce e descansará no ardente regaço do
marido. O filho do casal fará felizes a mãe e o pai e descansará nos braços
estendidos deles.
A
documentação contém muitos nomes de filhos de Shulgi, gerados tanto com
Shulgi-simti como com as numerosas concubinas que faziam parte do seu
harém. A existência de filhos nascidos fora da união real podia
ser problemática, após a morte de um soberano, quando a presença de
muitos aspirantes à sucessão podia desencadear uma crise política.
O grosso da população dividia-se em homens livres (lu) e semilivres (eren). Estes trabalhavam, durante metade do ano, para o Reino e, na outra metade, podiam dedicar-se a projetos individuais. Havia, ainda, a condição dos escravos, que incluía os prisioneiros de guerra e os que não conseguiam pagar as dívidas, podendo toda a família do devedor ser escravizada.
O escravo era propriedade absoluta do amo, que o podia vender, legar ou libertar. Podia casar e ter família, mas os filhos eram escravos. Porém, a sociedade suméria e a sua economia não se baseavam na exploração do trabalho servil, mas na população numerosa e produtiva.
Na sociedade assim organizada, destacava-se a atividade relevante dos grandes comerciantes.
A cidade dividia-se em distritos ligados por largas ruas. Ur dispunha de duas zonas portuárias que a ligavam às terras de Magan (Omã) e às de Meluhha, no Norte da Índia. Os navios sumérios que navegavam para aquelas longínquas paragens eram chamados “barcos negros”, por serem revestidos de espessa camada de betume negro para melhor impermeabilização. Transportavam mercadorias de luxo, como especiarias, cerâmicas e produtos naturais – madeira, diorite (útil na estatuária) e cobre – de que o argiloso solo da Mesopotâmia carecia.
Por sua vez, as caravanas terrestres rumavam para Leste, até Elam (Irão), à Ásia Central e ao Afeganistão, donde traziam o ouro e o lápis-lazúli (pedra semipreciosa muito procurada, por se parecer com o céu estrelado governado pelos deuses). A alguns quilómetros do Grande Zigurate de Ur, havia um subúrbio que os arqueólogos chamaram “Diqdiqqah” e que era habitado por artesãos estrangeiros que trabalhavam, com grande destreza, os materiais importados trazidos pelos grémios de mercadores em cansativas e perigosas travessias marítimas.
Ao invés, os numerosos funcionários da administração ou do culto religioso viviam em grandes zonas residenciais, perto dos edifícios mais importantes da cidade: o palácio, onde residia o soberano com a sua corte e com as suas numerosas concubinas; e a zona dos templos, cujo monumento mais conhecido e mais bem preservado é o zigurate.
Com uma planta de 63 metros por 43 e com uma altura de mais de 15 (alguns autores sustentam que, originariamente, media o dobro), esta enorme construção designava-se “Etemenniguru”, em Sumério, ou seja, “o templo cujas bases inspiram reverência”. Fazia parte do “Ekishnugal”, “a casa sem luz”, um complexo de templos consagrados a Nanna, deus da Lua, o patrono.
Apesar do
relevo da atividade comercial, a agricultura era a atividade
económica mais relevante da vida suméria. A partir do VI milénio a.C.,
escavou-se em toda a Mesopotâmia uma densa rede de
canais artificiais que irrigaram grandes extensões de campos.
Deste modo, obtinham-se colheitas consideráveis, com que se alimentava a população
das cidades e cujos enormes excedentes eram armazenados em grandes
silos.
O cereal mais
importante, para os habitantes da Mesopotâmia era a cevada,
elemento essencial das rações alimentares, que incluíam, em média, dois litros
de cevada, por dia. Também a cevada era a base da produção
de cerveja, invenção suméria fundamental pois, além de
ligeiramente alcoólica, apresentava um valor nutricional importante. A sua importância
na vida quotidiana dos habitantes de Ur era tão grande que era utilizada
como meio de pagamento e como medida de valor para os bens.
Por isso, era objeto de empréstimo e de troca, assumindo, a função económica e
financeira da prata. Enfim, uma espécie de fisiocracia!
Outro
elemento fundamental no quotidiano de Ur eram os animais.
Era variada a fauna que partilhava o espaço com os habitantes. Além dos animais
domésticos, como os cães, as ovelhas, as cabras, as vacas e os equídeos, que
ofereciam segurança e companhia, lã, leite, carne e outros bens,
havia espécies semidomesticadas, como o onagro (subespécie
do burro) e o gato. E havia animais selvagens como,
macacos, leões e ursos. Os ursos eram usados, até aos dois anos, como atrações,
por domadores, por malabaristas e por acrobatas, que os levavam de
cidade em cidade. Era já o circo. Só faltava o pão ao binómio romano “panem et
circenses”!
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O grande
interesse dos Sumérios era o culto, que absorvia muitos recursos económicos. Os
quase quatro mil deuses do panteão exigiam fornecimento
diário de bens e de serviços.
Segundo
mitologia suméria, no início dos tempos, cada deus tomara posse de uma cidade.
Ali vivera Nanna com a consorte,
com os filhos e com uma multidão de auxiliares num templo, ao qual, no final do
III milénio a.C., foi acrescentado um zigurate. Havia duas
categorias de deuses: superiores (em Sumério anunna) e
inferiores, ou igigi, servos dos primeiros. Havia sete anunna,
destacando-se Enlil, o deus principal do panteão, que
residia em Nippur, e Enki, o mais antigo, deus da água
doce subterrânea e da adivinhação, padroeiro da cidade de Eridu. Estes deuses e
muitas mais divindades adoradas em Ur recebiam, diariamente,
rações de cevada e de outros bens, enquanto os sacerdotes desenvolviam
inúmeras atividades rituais: vestiam as imagens de culto,
transferiam-nas para os templos de outras cidades onde viviam os membros da sua
família, levavam-nas em procissão em festividades regulares e, em casos de
emergência, entoavam lamentações para apaziguar o coração dos deuses
enfurecidos.
Todo este
empenho respondia a uma motivação concreta: a vida do ser humano e a
prosperidade das cidades dependiam da caprichosa vontade dos deuses, os
quais controlavam o bem-estar, a saúde e a morte das pessoas e dos
reinos. Neste âmbito, o tratamento das doenças tinha profundas repercussões
sociais. O bem-estar espelhava-se na boa relação da pessoa com o mundo dos
deuses e com o seu deus afetivo, implicando a doença a quebra
desta relação positiva, que se devia ao incumprimento da vontade
dos deuses por parte do ser humano. Toda a
realidade estava impregnada da vontade divina. Por
conseguinte, qualquer mudança era sinal que os deuses enviavam às pessoas para
que o interpretassem e deduzissem o comportamento a adotar. Nestes termos, a
doença era um sinal proveniente dos deuses, e a cura do doente
requeria, além de médicos e de medicina, a compreensão de qual era a causa
divina para a interrupção da relação positiva, de forma a poder ser
restabelecida a harmonia.
Assim, na
cidade de Ur de finais do III milénio a.C., quem se sentisse indisposto
teria de seguir os passos certos para se curar. Antes de mais, devia procurar
um naturopata (em
Sumério, asû) que lhe acalmasse a dor, com terapêuticas obtidas
de plantas e de outras substâncias naturais. Uma receita encontrada em Nippur
dá luz sobre as práticas médicas: triturar e esmagar uma carapaça de tartaruga
e, a seguir, esfregar a abertura ou a ferida com azeite e massajar a pessoa e
untá-la com cerveja de boa qualidade. Porém, como o asû não libertava o
paciente da doença, mas só lhe curava os sintomas, era necessário o sacerdote
conjurador (em Sumério, mašmašu), uma figura complexa,
que levava o doente a compreender o motivo da ira dos deuses, que permitira que
um demónio possuísse o corpo do indivíduo, e que era a pessoa capaz de expulsar
o demónio que se apoderara do doente.
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Ur é
considerada por muitos estudiosos a cidade de Ur Kasdim mencionada
no Livro do Génesis, terra natal do patriarca Abrão, que teria nascido,
segundo a tradição, no II milénio a.C. É mencionada, por quatro vezes,
na Thorah e no resto do Antigo Testamento, com a distinção de
“Kasdim/Kasdin”, traduzido como “Ur dos Caldeus”. Os Caldeus já
habitavam a região por volta de 850 a.C., e o seu nome é mencionado em Génesis (Gn 11,28; 11,31; 15,7). No Livro
de Neemias (Ne 9,7), é
parafraseada uma passagem do Génesis que
menciona Ur. E o Livro dos Jubileus
afirma que Ur terá sido fundada em 1688 Anno Mundi, por ‘Ur, filho de Kesed’, descendente de Arfaxade,
vincando que, nesse ano, teriam sido travadas, na Terra, as primeiras guerras.
“E ‘Ur’, o filho de Kesed, construiu a cidade de ‘Ara dos Caldeus’, dando-lhe
este nome em homenagem ao seu próprio nome e ao nome do seu pai [Kasdim]”
(Jubileus 11,3).
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A civilização
mesopotâmica não difere muito de outras civilizações coevas, nem das que nesta
se inspiraram. Todavia, é de reter que o modelo de sociedade não se ancorava no
trabalho servil, que os escravos podiam casar e aplicar-se a projetos
individuais, ao invés de outras civilizações, em que os escravos trabalhavam,
sob chicote, para os senhores, sujeitando-se a todos os seus caprichos, não
tinham qualquer autonomia, nem podiam casar (mas teriam os filhos que o senhor
quisesse); ou em outras cujo servo era vinculado à gleba, sendo vendido com
ela.
2025.06.19 – Louro de Carvalho
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