quarta-feira, 8 de outubro de 2025

Demissão do quinto primeiro-ministro mostra França ingovernável

 

O primeiro-ministro francês, Sébastien Lecornu, que foi nomeado, a 9 de setembro, demitiu-se a 6 de outubro, horas depois de ter apresentado os componentes do seu governo e menos de um mês após ter tomado posse, sendo o chefe de governo com o mandato mais curto, desde a V República, fundada em 1958. E o presidente francês, Emmanuel Macron, aceitou a demissão, de acordo com a imprensa francesa, citando fonte do palácio do Eliseu.
Lecornu, incumbido da difícil tarefa política de aprovar, no parlamento, um orçamento reduzido para conter o crescente défice do país, foi alvo de ferozes críticas do seu campo partidário e da oposição, após revelar o seu governo. Assim, aquele que deveria discursar na Assembleia Nacional (AN), no dia 7, para apresentar o roteiro do executivo, demitiu-se e a sua demissão precipitou a França em nova e turbulenta crise política, aumentando mais a pressão sobre Emmanuel Macron, que já presidiu com três governos minoritários fracassados.
O défice da França situava-se em 5,8% do produto interno bruto (PIB), em 2024, com uma dívida de 113% – ambos muito acima das regras da União Europeia (UE), que limitam o défice a 3% e dívida a 60%. Os críticos denunciaram a sua orientação política e a falta de renovação: 12 dos 18 ministros já tinham servido sob o seu antecessor François Bayrou, antes da sua destituição, a 8 de setembro. O próprio ministro do Interior conservador Bruno Retailleau, confirmado no cargo, afirmou, no dia 5, que a composição do governo “não refletia a rutura prometida”.
O líder da extrema-direita, Jordan Bardella, do Rassemblement National (RN), falando ao lado da líder Marine Le Pen, na sede do partido, pediu eleições legislativas antecipadas. “Não pode haver estabilidade sem um regresso às urnas e sem a dissolução do parlamento”, disse Bardella, frisando que “esperava” que tal medida fosse tomada rapidamente.
Mesmo dentro do campo presidencial, o descontentamento estava a crescer. Gabriel Attal, ex-primeiro-ministro e líder do partido Renaissance (Renascimento), lamentou que o método que propôs de proposto de chegar a um acordo sobre o orçamento, antes de nomear um governo não tenha sido seguido. Em mensagem ao seu grupo parlamentar, denunciou o “espetáculo medonho” dado por “toda a classe política”, na sequência deste governo de curta duração.

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Lecornu foi o quinto primeiro-ministro do presidente Emmanuel Macron, desde 2022, e o terceiro, desde as eleições legislativas antecipadas do verão de 2024, as quais deixaram a França com um parlamento dividido em três blocos: a aliança centrista do presidente, uma coligação de esquerda (LFI) e o Rassemblement National (RN), de extrema-direita. Nenhum deles dispõe de maioria viável e cada um está mais focado em reforçar a sua posição antes das eleições presidenciais de 2027 do que em chegar a entendimento.
A crise política insere-se no contexto de uma crise financeira, que a torna complexa. O défice de França é de cerca de 6% do PIB – o dobro do limite estipulado pela UE – e a sua dívida é das mais elevadas do bloco. A aprovação de um orçamento de austeridade na AN fragmentada já custou o cargo a dois dos antecessores de Lecornu, que percebeu, rapidamente, que teria o mesmo destino, pois a reação negativa contra a suas nomeações confirmou-o. Ao reconduzir muitos rostos conhecidos, irritou tanto os seus aliados como os seus opositores.
Para os conservadores, a composição do executivo não representava a prometida rutura com a política anterior e outros viram-na como prova de que o presidente continua a recusar-se a fazer concessões. Agora, o fardo recai, sobre o chefe de Estado, que tem poucas opções fáceis.
A medida mais imediata seria nomear outro primeiro-ministro. Em teoria, Emmanuel Macron poderia tentar, novamente, resolver a crise, com alguém da aliança centrista, mas a rápida queda de Lecornu mostrou a fragilidade dessa abordagem. Qualquer governo liderado, em exclusivo, pelo seu campo enfrentaria a mesma hostilidade da parte dos outros partidos.
Outra hipótese seria olhar para lá da sua base de apoio, nomeando uma figura moderada da oposição ou um tecnocrata visto como mais neutro. No entanto, tal medida comportaria riscos significativos. Uma nomeação de esquerda forçaria o presidente a fazer concessões nas reformas económicas, particularmente, na controversa reforma das pensões. Por outro lado, a escolha de alguém da direita poderia alienar a esquerda e provocar mais moções de censura. E, em ambos os casos, Emmanuel Macron estaria a apostar na boa vontade dos partidos que já estão a posicionar-se para a corrida presidencial de 2027.
Em vez da opção de nomear novo primeiro-ministro, o chefe de Estado poderia dissolver, novamente, a AN. Constitucionalmente possível, dado ter sido ultrapassado o limite de um ano após a última dissolução, a opção levaria os eleitores às urnas, no prazo de 20 a 40 dias. Porém, novas eleições reproduziriam, provavelmente, as mesmas divisões na AN, ou até fortaleceriam o bloco de extrema-direita ou o de esquerda.
As eleições antecipadas de 2024 foram amplamente consideradas um erro de cálculo, tendo dado origem ao atual impasse. E o presidente tem manifestado, constantemente, a relutância em apostar em nova dissolução, mas, se o impasse persistir e não for aprovado qualquer orçamento, tornar-se-á pertinente a pressão para dar a palavra aos eleitores.
Uma possibilidade mais radical é a renúncia de Emmanuel Macron, algo exigido por parte da oposição, sobretudo, pela esquerda. Se ele se demitisse, a Constituição prevê que o presidente do Senado, Gérard Larcher, assumiria temporariamente o cargo, com nova eleição presidencial a organizar dentro de 20 a 50 dias. Contudo, é cenário pouco provável, pois o chefe de Estado tem-se comprometido, repetidamente, a cumprir o seu mandato até 2027, sem desistência.
Um passo ainda mais além do que a renúncia seria a destituição do presidente pelo parlamento. Este cenário é defendido pelo partido de extrema-esquerda La France Insoumise (LFI), que, há muito, aduz que a liderança de Macron se tornou incompatível com o exercício do mandato. Tal solução está prevista no artigo 68.º da Constituição de 1958 (na redação que lhe foi dada pela reforma constitucional de 2007), que especifica que “o Presidente da República só pode ser afastado em caso de incumprimento das funções, de forma manifestamente incompatível com o exercício do mandato”. No entanto, quando se trata de levar esta norma à prática, o processo é muito complexo e, até agora, nenhum pedido de destituição foi bem-sucedido.
Relativamente ao Orçamento do Estado, a França está sob uma administração provisória. Tal como sucedeu após a queda do governo de François Bayrou, em setembro, Lecornu e os seus ministros apenas podem gerir os assuntos correntes, não podendo introduzir grandes reformas, nem fazer nomeações importantes. Nestes termos, a tarefa mais urgente que França enfrenta – a aprovação do orçamento para 2026 – não pode ser levada a cabo pela equipa de Lecornu. A sua demissão tornou obsoleta a apresentação do orçamento, a 6 de outubro, e um novo governo terá de elaborar e de defender novo projeto de lei financeiro no parlamento.
De acordo com a lei francesa, a proposta deve ser apresentada até 13 de outubro, para permitir o debate e a revisão constitucionalmente prevista. Porém, tal prazo é impossível de cumprir, mesmo que um novo primeiro-ministro seja nomeado rapidamente, já que a preparação de um orçamento revisto levaria semanas. O parlamento poderia votar apenas a parte do orçamento relativa às receitas, garantindo que o Estado possa continuar a cobrar impostos.
Outra solução de recurso seria a adoção de lei especial que prorrogasse, temporariamente, o orçamento do ano anterior, como aconteceu em 2025, medida que permitiria ao Estado continuar a financiar os serviços públicos, enquanto as negociações políticas se arrastassem.

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Poucas horas depois de se demitir, Lecornu aceitou o pedido de Emmanuel Macron para negociar um novo governo, até à noite do dia 8, mas disse-lhe que não regressaria ao cargo, mesmo que as negociações fossem bem-sucedidas. E, à medida que se aproximava o fim do prazo de 48 horas que o primeiro-ministro cessante, Sébastien Lecornu, teve para formar novo governo, a classe política e os cidadãos franceses preparavam-se para a próxima ação do presidente.
Em declaração divulgada na tarde do dia 7, Lecornu disse que tinha proposto ao socle commun, coligação informal de conservadores e centristas, que as discussões se centrassem em duas questões urgentes, “a adoção de um orçamento” e “o futuro da Nova Caledónia [tornar-se um Estado autónomo]”. Referiu que todas as partes envolvidas tinham “concordado com estas duas prioridades, com um desejo comum de encontrar uma solução rápida”. E confirmou que iria reunir-se com cada partido político, entre a tarde do dia 7 e a manhã do dia 8.
No entanto, as principais figuras da oposição rejeitaram a proposta de Lecornu. Os líderes da extrema-direita, que tinham participado em consultas anteriores, recusaram o convite, desta vez. Le Pen reiterou o apelo a eleições legislativas antecipadas, considerando-as “necessárias”, e Bardella declarou-se “pronto para governar”. “Estamos no fim do caminho, temos de parar. Ministros da direita, ministros da esquerda, nós paramos, e são os franceses que vão decidir”, afirmou Le Pen, para quem a dissolução é “absolutamente inevitável”, pelo que não precisa “de pedir” ao presidente que renuncie, mas considera que seria uma “decisão sábia”.
Mesmo entre a direita moderada, ouvem-se apelos à sua demissão, deixando o presidente cada vez mais isolado. “O interesse da França exige que Emmanuel Macron apresente a demissão”, escreveu o vice-presidente dos Republicanos (LR), David Lisnard, na rede social X.
Do outro lado do espetro político, os líderes do partido da LFI, Mathilde Panot e Manuel Bompard, também recusaram participar na reunião com o primeiro-ministro cessante.
Mathilde Panot, líder da LFI, escreveu nas redes sociais que “a contagem decrescente começou, Macron precisa de sair”, frisando a derrota de “três primeiros-ministros, em menos de um ano”. E a coligação anunciou, no dia 6, uma moção de destituição contra o presidente, apesar de ter poucas hipóteses de sucesso. “Macron é responsável pelo caos político. Ele tem de sair. Portanto, todos os partidos políticos na Assembleia terão de assumir a responsabilidade se permitirem que Emmanuel Macron continue a destruir o país”, declarou o coordenador da LFI, Manuel Bompard, depois de apresentar a moção de rejeição, acrescentando: “Tudo o que resta é a saída do Presidente da República, seja por demissão, seja por destituição.”
No dia 6, à noite, Gabriel Attal, antigo primeiro-ministro e velho aliado de Macron, manifestou a sua frustração com as decisões do presidente. […] Depois de uma sucessão de novos premiers, é altura de tentar outra coisa. Houve a dissolução [do parlamento]. Desde então, tem havido decisões que dão a impressão de uma determinação em manter o controlo” disse à emissora TF1.
O ex-primeiro-ministro Édouard Philippe, o primeiro chefe de governo de Macron, após a sua vitória em 2017, sinalizou a erosão da poderosa aliança de Macron. Efetivamente, no dia 7, em entrevista à estação de rádio RTL, declarou-se a favor de eleições presidenciais, devido ao caos espoletado pela demissão de Lecornu, o que “seria digno do cargo”.
Bruno Retailleau, líder do partido conservador Les Républicains, e ministro do Interior de Macron, queixou-se das escolhas de Lecornu e convocou uma reunião de emergência dos altos funcionários do seu partido.
Apesar das críticas e da pressão, Macron pode decidir nomear novo primeiro-ministro. Marine Tondelier, a líder do Partido Ecologista (Verdes), sustenta que “a coabitação com a esquerda é a última saída que Emmanuel Macron tem”. Porém, o RN já garantiu que vai censurar, “sistematicamente”, qualquer governo até à dissolução.
Os dois antecessores imediatos de Lecornu, Bayrou e Michel Barnier, foram expulsos pelo Parlamento, através de moções de censura, após confrontos sobre o plano orçamental para 2026, que incluía cortes controversos nas despesas. E o próximo primeiro-ministro terá de enfrentar a mesma tarefa: encontrar apoio suficiente para aprovar um projeto de lei sobre as despesas numa NA profundamente dividida.
O impasse político em França deixou Macron com poucas opções viáveis. Os opositores sugeriram três vias possíveis: demitir-se, convocar eleições ou nomear um primeiro-ministro de fora do seu campo político. Todavia, o presidente, cujos índices de aprovação estão num nível recorde, tem resistido tanto à demissão como à dissolução, insistindo que vai cumprir o mandato.
Entretanto, os problemas financeiros do país estão a agravar o caos político.  Assim, a aprovação de novo orçamento é essencial para evitar uma paralisação do governo, mas as hipóteses de o fazer parecem cada vez mais reduzidas.

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Sébastien Lecornu apresentou a demissão, poucas horas depois de revelar parte do seu governo e justificou a decisão com a falta de flexibilidade dos partidos, que foram bastante críticos do novo Executivo, da esquerda à extrema-direita, pelo que não tinha condições para continuar no cargo.
A demissão, aceite pelo chefe de Estado, mergulhou o país em novo caos político, a somar à instabilidade da França, desde junho de 2024, quando o presidente convocou eleições legislativas antecipadas, após o “crescimento” da extrema-direita, nas eleições europeias, pois não podia “fingir que nada estava a acontecer”. E quis, num “ato de confiança”, que o povo francês fizesse a “escolha certa para si e para as gerações futuras”, como justificou.
Desde o verão de 2024, foram primeiros-ministros Michel Barnier (durante 99 dias), François Bayrou (durante 270) e, até 6 de outubro, Sébastien Lecornu (durante 27). Este último teve o recorde do governo mais curto da História moderna francesa, tendo a sua demissão aberto a via para diferentes cenários, como a dissolução da AN, a convocação de eleições antecipadas (legislativas ou presidenciais) e o afastamento de Emmanuel Macron.
As críticas a Macron intensificaram-se, após ter decidido prolongar, até ao dia 8, a missão de Sébastien Lecornu à frente do executivo, com o objetivo de aprovar o orçamento e de formar “uma plataforma de ação” que proporcione estabilidade ao executivo e evite eleições antecipadas. Lecornu iniciou essa ronda de contactos, recebendo os líderes dos partidos da aliança macronista na sede do governo. Todos concordaram, quanto a estas urgências, com a vontade partilhada de encontrar rápida solução para a crise e os parâmetros de possível compromisso com as oposições. Todavia, pela reação dos partidos, parece que a solução fica pelo caminho.

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Esta é a situação que menos interessa à França. E os governos, obstando à onda neoliberal da UE, ou assumem a proteção dos pobres e da classe média, sacrificando os grandes interesses instalados, ou verão dois cenários: a rua a exigir a definição do orçamento, em prol de quem trabalha (a revolução de 1789 não surgiu em contexto pior), ou o crescimento do sebastianismo de extrema-direita a prometer tudo a todos, deixando tudo na mesma. Enfim, a França, se quiser, pode ser a força propulsora de uma nova UE, mas precisa de entendimento interno.

2025.10.07 – Louro de Carvalho

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