segunda-feira, 13 de outubro de 2025

As eleições autárquicas de 2025 merecem uma reflexão pós-eleitoral

 

 

Em véspera de eleições, Portugal costuma entrar num período de reflexão em que não pode aflorar qualquer ato de campanha partidária ou, no caso das eleições para órgãos do poder local, de grupos de cidadãos (independentes).
Há quem julgue que essa norma, criada no período revolucionário, já não faz sentido, até porque há eleições em que o eleitor pode usufruir da possibilidade do voto antecipado e da possibilidade de votar em qualquer ponto do território onde se encontre. Discordo, obviamente, desse juízo. A uma campanha eleitoral ativa, às vezes, truculenta, nem sempre esclarecedora, deve suceder um tempo de acalmia e de convocação do discernimento.
É certo que a noite do período de reflexão serve, em alguns casos, para a visita oportuna ou importuna a alguns eleitores a pedir o voto, a troco de alguma promessa, assim como a distribuição de algumas ofertas. Porém, salvam-se as aparências.   
Ao mesmo tempo, parece-me excessiva a proibição de enaltecer, ainda fora do estrito período da campanha eleitoral, obras em curso, projetos em carteira e, até, de proceder a inaugurações. É a hipocrisia institucionalizada. E não havia necessidade. A este respeito, recordo um novo edifício dos Paços do Município e de uma nova escola que não firam inaugurados por pruridos eleitorais.     
Todavia, do meu ponto de vista, não foi boa ideia revogar a proibição da publicação de sondagens, quanto às intenções de voto, nos dias de estrita campanha eleitoral. Essa publicação diária pode baralhar eleitores ou condicionar o voto, assim como criar desânimo (pois o meu partido vai perder) ou a acomodação (já não é preciso ir votar, porque o partido já ganhou).
Já não digo o mesmo das projeções de resultados, logo a seguir ao fecho das urnas, distribuídas pelas diversas candidaturas, com aqueles intervalos a que nos habituou, há muito tempo, José Carlos Serras Gago, um dos mais destacados especialistas em sistemas políticos e sondagens eleitorais, temas que marcaram a sua atividade académica no ISCTE - Instituto Universitário de Lisboa e noutras instituições.
O período de reflexão pré-eleitoral, desta vez, teve uma feição peculiar. O Presidente da República (PR), na sua habitual mensagem de apelo ao voto consciente, porque não devemos abdicar da nossa capacidade de escolha, nem deixar que outros escolham por nós, acenou com uma razão adicional: os fundos europeus, nomeadamente, os atinentes ao Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) e a outros programas financeiros, como o Portugal 2030, cuja aplicação passa, em grande parte, pelos detentores do poder autárquico – situação irrepetível para Portugal.
Foi um apelo demasiado materialista, para o meu gosto, e dispensável, pois, embora parte significativa da aplicação dos fundos passe pelas autarquias, há (ou deve haver) controlo por parte do poder central, em Lisboa, e nos serviços desconcentrados, como são as comissões de coordenação e desenvolvimento regional (CCDR). E não é crível que os autarcas que estavam em exercício, como os novos autarcas e os que o seriam, se tivessem sido eleitos, estivessem apostados no esbanjamento dos fundos europeus. O que sucede é que todos eles sentem o peso dos encargos e a falta de meios, face à magnitude das necessidades. Quanto a eventuais erros, é bom não confundir algumas árvores com a floresta.
Depois do seu exercício do direito de voto, esse apelo de sabor financeiro levou Mariana Leitão, presidente da Iniciativa Liberal (IL), sem o desvalorizar, a mostrar-se preocupada com um futuro em que Portugal não seja contemplado com esses fundos.
Também achei deslocado, num sistema de contenção e de imparcialidade, ter o presidente do Partido Social Democrata (PSD) e primeiro-ministro, depois do seu exercício do direito de voto, vindo referir-se a esses fundos comunitários, na esteira do PR, e tecer loas ao seu partido, sublinhando a sua vocação e presença autárquica. Além de descabida a referência partidária, antes de conhecidos os resultados, pode ser injusta, já que o PSD ganhou muitas presidências de câmaras municipais e de juntas de freguesia também à custa de outros partidos que se coligaram consigo, em vários concelhos e freguesias do país.
O mesmo tipo de reparo é de fazer ao secretário-geral do Partido Socialista (PS), por discurso análogo, em relação ao seu partido. Não deixa de ter razão, ao frisar que o PS está de volta e que está no terreno, como grande partido autárquico. Porém, dizê-lo enquanto decorre a votação, tem, pelo menos, a aparência de condicionamento do voto. 
Também foi dito por alguém que o poder local é exercido pelos que estão mais perto dos cidadãos, conhecem os seus problemas e resolvem mais depressa, se quiserem, os problemas das pessoas. Cocegando-me no ouvido a ressalva “se quiserem”, lembrei-me de casos, como os de municípios que demoram dois ou mais anos a aprovar um empreendimento ou os dos que negam benefícios a populações em localidades em que os resultados eleitorais não lhes são favoráveis. Há redes de dependências criadas, favoritismos, caciquismos e outras situações indesejáveis. Esta proximidade pode ser tóxica, se houver tudo, para os amigos, nada, para os adversários, e o rigor da lei, para os outros.

***

Bem, não era esta a reflexão pós-eleitoral que me propus fazer, embora ela seja pós-eleitoral, a nível circunstancial. Aliás, a reflexão que se impõe tem a ver com os resultados e com as suas projeções, logo a seguir ao encerramento da votação.
A 10 de outubro, o Expresso publicou um estudo de Fernando Freire de Sousa, economista e professor da Faculdade de Economia da Universidade do Porto, em que antecipava, como maior probabilidade a de o PSD sair “vencedor da contenda concelhia em questão”, sem que o PS tivesse “uma derrota muito marcante” e com o partido do Chega a ficar-se pelas 14 presidências (de câmara municipal).
Desde já, é de referir que o académico tem razão, nas suas primeiras conjeturas, e não a tem, na terceira, pois o Chega obteve apenas três presidências.
Freire de Sousa decidiu avançar na tentativa de projetar resultados para o dia 12 de outubro, embora “limitado ao item das presidências de câmara”, após “madura reflexão sobre o caldeamento entre os riscos em causa e as potenciais vantagens analíticas e de contributo para o debate político”, baseada na “informação decorrente da aritmética eleitoral do passado recente (e de algum passado que permita estabelecer normativos potenciais)”. No entanto, propôs-se matizá-la “com elementos de ordem política e afins (partidos concorrentes nos vários concelhos, coligações realizadas, sondagens, caraterísticas do local, dados factuais com incidência local, aspetos de natureza pessoal, etc.)”.
Como cenário base expectável para o número de presidências, por partido ou grupos de cidadãos independentes, previa, para o PSD, 149 câmaras (48% das 308), num intervalo de 113 a 184; para o PS: 128 (41,6%), num intervalo de 102 a 173; para o Chega: 14 (4,5%), num intervalo de sete a 36; para os grupos de independentes: 11 (3,6%), num intervalo de sete a 17; para o Partido do Centro Democrático Social (CDS): cinco (1,6%), num intervalo de quatro  a cinco; para o Juntos pelo Povo (JPP): uma (0,3%), num intervalo de zero a uma; e, para a Coligação Democrática Unitária (CDU): nenhuma, num intervalo de zero a duas.
A maior probabilidade era a de o PSD sair vencedor da contenda concelhia, com 149 de 308 presidências, um valor não muito afastado dos 50%), logrando reconquistar ao PS a presidência da Associação Nacional de Municípios Portugueses (ANMP). Tem razão, quanto à vitória, mas não quanto ao número de presidências que foram 135 (44%), menos 14 do que o projetado.
Acertou, ao prever que o PS não teria derrota muito marcante; e, quanto ao número de presidências só lhe deu mais uma, pois são 127 (mais de 40%), em vez das 128 previstas.
Não acertou, em relação ao Chega, que se ficou pelas três presidências (0,9%), em vez das 14 previstas (aqui, nem foi respeitado o intervalo previsto de sete a 36) – como dizia, “bastante aquém das vitórias concelhias obtidas nas legislativas de 18 de maio (menos de um quarto) e das 30 desejadas por [André] Ventura (menos de metade).
Falhou no prognóstico para a CDU, a qual, em vez de perder todas as presidências que possuía (19), manteve 12, bem como no caso dos grupos de cidadãos independentes, que lograram 20 presidências, em vez das 11 projetadas (ultrapassaram, por excesso o intervalo definido: de sete a 17). Já o CDS só conseguiu mais duas presidências do que as previstas: sete, em vez de cinco. 
Como projetado, o JPP mantém a única presidência que detinha, mas o Livre e o Nós Cidadãos (NC), para os quais não estava nada projetado, obtiveram uma presidência e duas, respetivamente.
Como indicava Freire de Sousa, os resultados saldaram-se num “certo regresso a um mapa eleitoral de Portugal”, em que o PSD continua maioritário, a Norte, e o PS, a Sul do país, apenas entrecruzado por alguns salpicos – enganadores, convenhamos... – do Chega, de movimentos de cidadãos independentes, de últimos bastiões do CDS e da originalidade JPP, na Madeira”.
O economista delineou cenários alternativos, com base nos valores máximos dos intervalos para os três maiores partidos, pois, se um deles sobe o outro ou os outros descem. Assim, se o PSD obtivesse 184 presidências, o PS obteria 102 e o Chega 11; se o PS obtivesse 173, o PSD obteria 113 e o Chega sete; e, se o Chega obtivesse 36, o PSD obteria 145 e o PS 110.    
Estes cenários representam apenas a hipótese meramente académica, de não se excluir, à partida, uma vitória global folgada do PS, o que ninguém, em boa verdade, pensava, graças à dinâmica de vitória que o PSD criou: a apresentação do Orçamento do Estado no Parlamento, em tempo de campanha eleitoral (há quem fale de adiamento das eleições para esta altura), com supostas novidades, sobretudo, a nível de impostos; o suplemento às pensões mais baixas; e, sobretudo, o que terá dito o ministro da Economia e da Coesão Territorial, na Universidade de Verão do PSD, de que votarão no partido, se tiverem dinheiro (mais uma vez, a obsessão do dinheiro).
Por outro lado, a hipótese de o Chega obter um número grande de presidências de câmara não era infundada, em virtude do seu dinamismo de crescimento e da mobilização que faz através das redes sociais. Todavia, o partido já desenganou alguns eleitores, nas atitudes parlamentares, no comportamento algumas das suas figuras de proa, nas leis restritivas da imigração e da nacionalidade e com alguns slogans excessivos.
Não obstante, o que conta são os resultados, com a ressalva de que, em política, tudo pode mudar de um momento para o outro. Na verdade, o PSD tem a maioria das presidências de câmara e de junta de freguesia, pelo que deverá passar a presidir à ANMP e também à Associação Nacional de Freguesias (ANAFRE). O PS tem menos oito do que o PSD. Os grupos de cidadãos independentes obtiveram mais presidências de câmaras do que em 2021.  A CDU baixou. O Chega, o NC e o Livre estrearam-se em presidências de câmara.
O PS, embora não possa cantar vitória, ressurgiu da hecatombe das legislativas de 18 de maio. Isso não o faz subir no Parlamento, mas mantém-no no poder local, com alguma força, apesar de algumas intrigas pessoais que afloraram em alguns concelhos, de alguma inépcia na sua postura pós-eleitoral desde maio e de alguns alegados casos.
O Chega está instalado a nível local. É certo que obteve poucas residências de câmara, mas em alguns municípios perdeu por muito pouco, foi a segunda força política em muitos lugares, integra muitas assembleias municipais e muitas assembleias de freguesia. Não cresceu tanto como fez crer, mas cresceu. Até já há quem sugira entendimento com o Chega, por parte da coligação liderada pelo PSD, ganhadora em Lisboa. E a direita radical não esmorece, porque não e porque os partidos de centro ainda não se decidiram a colmatar as necessidades das populações e a satisfazer as legítimas aspirações dos cidadãos; criaram a perceção de que estão a governar-se, em vez de governarem; parece que a Justiça os pretende condicionar na sua ação política e que eles estão contra a Justiça.
O PSD ganhou grande número de câmaras, por si mesmo, e muitas outras, em coligações de diferentes composições, ficando o eleitorado sem perceber a quem se devem, efetivamente, algumas vitórias eleitorais. Já o PS candidatou-se, na maioria dos casos, sozinho ou apresentando nas suas listas cidadãos não filiados.   
As projeções da Universidade Católica Portuguesa (UCP) ditaram vários empates técnicos entre o PS e outra força política – o PSD ou um grupo de cidadãos –, mas com ligeira desvantagem para o PS. O empate técnico foi desfeito contra o PS. O PSD reposicionou-se como um grande partido, mas não é único, nem a última palavra em política, nem em governança local.
Cumpre referir que os grupos de cidadãos independentes está a crescer, o que revela que o poder local não está refém dos partidos, mas é de anotar que muitos destes cidadãos não são independentes, mas desiludidos dos partidos a que pertenciam (dissidentes), desligados por questões pessoais ou incapazes de assumirem um compromisso político-partidário.
Baralham as contas do espectro partidário, embora revelem, aqui e agora, simpatia por este ou por aquele partido, e refugiam-se na asserção hipócrita de que o meu partido é a freguesia ou o concelho ou na de que não são políticos.
Estas eleições mostraram tudo isto. Seja como for, a democracia faz-se de tudo isto, da pluralidade de opções, de posturas e de mecanismos de governação diferentes. E não há partidos defuntos, nem personalidades políticas reduzidas a zero. Se hibernam temporariamente, podem levantar-se a qualquer momento.

É a força da política em democracia.

2025.10.13 – Louro de Carvalho

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